Traduzindo Paulo Bezerra

Transcrição

1 Traduzindo Paulo Bezerra O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define a tradução como uma operação que consiste em fazer passar um enunciado emitido numa determinada língua (língua-fonte) para o equivalente em outra língua (língua-alvo), ambas conhecidas pelo tradutor; assim, o termo ou discurso original torna-se compreensível para alguém que desconhece a língua de origem. É exatamente o fato de seguir à risca esta definição que faz de Paulo Bezerra, paraibano natural de Pedra Lavrada, um dos tradutores mais procurados pelas grandes editoras do país. Atualmente, Paulo Bezerra vem se consagrando como um dos mais requisitados para traduzir a obra do russo Dostoiévski. A literatura russa, aliás, fascina o tradutor. Para se ter uma idéia, ele já traduziu cerca de 50 obras, sendo 18 de ficção, só desta língua. Ele explica que seu fascínio pela literatura russa vem de uma preocupação profunda e permanente com os problemas reais que afligem o ser humano e marcam sua luta pela existência. Isto, constata, sem resvalar no panfleto, coisa comum na literatura de cunho social. Tomemos dois exemplos: Tolstói e Dostoiévski. Tolstoi enfocou o tema da alienação, particularmente em Kholstomer e A morte de Ivan Ilitch, como degenerescência da essencialidade do ser humano no sistema de posse e consumo da sociedade capitalista, no qual o homem passa de sujeito a objeto robotizado desse processo, desnaturando-se em sua essência como ser criador e livre. Dostoiévski embasa toda sua obra num postulado: o homem é um mistério que precisa ser desvendado, a missão da literatura é desvendá-lo e só realizando esse postulado o escritor justifica sua condição humana. É esse imperativo filosófico de profundo envolvimento com o ser humano e seu destino que me fascina em Dostoiévski e justifica o sacrifício de traduzi-lo. Sacrifício prazeroso, poderia dizer Paulo Bezerra. No caso de Dostoievski, por exemplo, um trabalho difícil por vários fatores, entre os quais a perfeita sintonia entre o estado de espírito das

2 personagens e a estrutura de sua linguagem. Quando uma personagem dostoievskiana entra crise, ressalta Paulo, esta se manifesta imediatamente em sua linguagem. Em O idiota, o príncipe Míchkin sofre um ataque epiléptico. Está falando no salão dos Iepántchin, e súbito sua linguagem começa a desestruturar-se, a sintaxe vai se tornando descontínua, sinuosa, as palavras se atropelam, tudo fica obscuro, caótico. É o que eu chamo de clareza obscura: por trás desse caos existe uma lógica criada conscientemente pelo autor, a lógica da representação da desestruturação do psiquismo motivada pelo ataque epiléptico. O caos da linguagem é o caos do psiquismo de Míchkin. Nas traduções indiretas esse caos da linguagem desaparece, e tudo corre com fluidez: o leitor não percebe na linguagem a crise da personagem. Essa é uma das dificuldades maiores de traduzir Dostoiévski. Paulo Bezerra ficou em segundo lugar no Jabuti com a tradução de Os Demônios, perdendo para Ivan Junqueira. Premiações assim são importantes para o reconhecimento de um trabalho literário?, pergunto-lhe. Ele responde que sim, que os prêmios sempre ajudam a divulgar o trabalho porque os premiados ganham alguns dias de destaque na imprensa. Contudo, o mais importante é o reconhecimento dos leitores, quer na própria imprensa, quer na chuva de s que recebo dos leitores. Veja-se o caso de Crime e castigo. Publicado em 2001, já está na décima edição, na casa dos 30 mil exemplares vendidos. Recebi mais de uma centena de e- mails de leitores. Ano passado, Paulo Bezerra traduziu e analisou o conto Bobók, de Dostoievski. O trabalho é fruto de uma tese sua na USP. Para ele, Bobók é um dos textos mais difíceis de Dostoiévski. Nele, diz, há frases inteiras construídas só com partículas, sem um único substantivo, um único verbo, o que cria obstáculos de dificílima superação. Para quem não se lembra (ou não conhece), Bobók, é uma resposta do escritor russo às críticas que recebeu pelo Os

3 Demônios. Uma a sátira ao mundo literário que continua atual, na visão de Paulo Bezerra. Neste sentido, lembra que a literatura é um diálogo permanente com sua atualidade e seus antecedentes. Em Bobók, Dostoiévski polemiza com seus críticos de Os demônios, e igualmente com a literatura, a filosofia, o pensamento sociológico da época. E polemiza, principalmente, com uma crítica de forte teor sociológico que, ao dar exclusividade aos aspectos políticos, resvala constantemente no reducionismo em detrimento da obra como arte. Conciliar o social e o estético na análise de uma obra é dever essencial da crítica, e neste sentido Bobók é atualíssimo, comenta. Paulo Bezerra diz, ainda, que há mais relações deste conto com outras obras do escritor, além de Os Demônios. E ressalta que Bobók é uma viagem pela obra de Dostoiévski, assim como de Púchkin, Gógol, Odóievski, Sêneca, Luciano de Sasósata. Enfim, um diálogo com a tradição e a atualidade da literatura russa e universal. Isto está em minha análise. Traduzir clássicos da literatura, ainda mais um Dostoiévski não é fácil, já foi dito neste texto. Então, deve existir algum método particular para traduzir diretamente do original russo essas obras mencionadas aqui? Paulo Bezerra confessa que sinceramente não sabe se existe este método. O que existe, segundo entende, é o empenho, o comprometimento ético com a palavra do outro, que é inviolável. O que talvez se aproxime de um método eu chamo de estratégia do processo tradutório: o tradutor procura penetrar em todos os desvãos da intenção criadora do autor, nas armadilhas de sua linguagem, nos arcaísmos, nas variantes regionais, na coerência da significação de cada palavra com o momento de sua enunciação, do nível intelectual do falante com a complexidade da palavra pronunciada, em suma, procura penetrar no laboratório da criação, sondar suas fórmulas e, a partir delas, trazer para o leitor um texto que ele leia sem sentir que está lendo tradução. E ser tradutor no Brasil é mais difícil que em outros países ou as dificuldades são comuns em qualquer parte do mundo?

4 - Em termos de trabalho criador, sim, em termos financeiros as dificuldades variam muito de país para país. Em países como França, Inglaterra, Alemanha, e Itália o tradutor goza de um respeito especial, e isto se reflete em sua condição financeira. No Brasil, a tradução é vista constantemente como bico, do que se aproveitam alguns editores desonestos para pagar mal o trabalho de tradução e não ligam para sua qualidade, muitas vezes péssima. Para os que dizem que o tradutor é um escritor frustrado, Paulo Bezerra tem a resposta na ponta da língua: Claro que não. E cita Bocage, Manuel Bandeira, Drummond, Mário Quintana como exemplos de excelentes tradutores. Não me consta que tenham sido escritores frustrados, arremata. Já outros dizem que o tradutor atua como um co-autor dos livros que traduz. Paulo Bezerra concorda? Bom, ele acredita que o tradutor é uma consciência criadora que trabalha, elabora o produto de outra consciência criadora primária. Isto já o coloca na condição de recriador de algo criado por outro, o que não elimina sua condição de criador ainda que secundário. Há muita criação no trabalho do tradutor, principalmente no campo da palavra, da linguagem, mas a linguagem é o modus vivendi de um conjunto que envolve história, filosofia, antropologia, psicologia, sistema literário, e esse conjunto tem uma fonte chamada autor, de onde bebe o tradutor. Por mais criativo que seja, o tradutor será sempre um recriador, o que, aliás, não diminui sua importância como parceiro do original. Paulo Bezerra saiu de João Pessoa para São Paulo em Foi quando trabalhou em granja, bares, padarias, e enquanto isso fazia curso de soldagem e desenho mecânico à noite. Em 1963, já ativista sindical e membro do Partidão, foi enviado para um curso de marxismo em Moscou, o que mudou radicalmente sua vida. Com o golpe militar de 1964, ficou impossibilitado de voltar. Concluído o curso de marxismo, que envolvia filosofia, economia e história do PCUS e do movimento operário internacional, foi para a

5 Universidade Lomonóssov onde estudou língua e literatura russa e teoria e prática de tradução. Retornou ao Brasil em 1971, fez Letras Português Literatura na Universidade Gama Filho aqui no Rio, mestrado e doutorado em Letras na PUC/Rio e Livre-docência em literatura russa na USP. Hoje leciona Teoria Literária na UFF em Niterói, traduz e escreve ensaios. Iniciou a atividade de tradutor já em 1971, com o livro de epistemologia da ciência Fundamentos lógicos da ciência, de P. V. Kopnin, que mostrava haver filosofia na URSS além dos manuais de popularização de Iúdin-Rosental e Afanássiev. A conquista do espaço de que hoje desfruto foi um processo longo, construído com muita, paciência e perseverança, com algo que sempre me moveu e move: a consciência de que somos todos muito limitados, de que a pesquisa permanente é a única saída, e a esperança. Apesar de estar distante hoje da Paraíba, Paulo Bezerra vem acompanhando a literatura paraibana contemporânea. Cita, com carinho, a obra de Marilia Arnaud desde Sentimento marginal e atestando seu crescimento, sua transformação em contista das melhores da literatura brasileira. Seu conto Girassóis no inferno, de O livro dos afetos, pode figurar, sem nenhum favor, numa eventual antologia dos melhores contos brasileiros. O mesmo se pode dizer, para Paulo Bezerra, de Aldo Lopes com seus contos surpreendentes pela densidade temática em espaço gráfico tão diminuto. Aliás, eu sempre disse ao Aldo que sua alma de narrador não cabe no espaço de um conto. E isso ele acaba de demonstrar com seu romance O dia dos cachorros, que vai dar muito o que falar na crítica brasileira. Gostou muito, também, de A ferrugem e o mármore de Edônio Alves, livro que, segundo analisa, é um protótipo de um contista promissor, que espera que continue escrevendo. Além disso, lê com atenção a poesia paraibana. Gosto muito da poesia paraibana: Sérgio Castro Ponto, W. J. Solha com o impressionante Trigal com corvos, Hildeberto Barbosa, João Antonio Assunção, a simplicidade de Jomar Morais. O que me causa espécie é a chatice de uma

6 poesia metalingüística muito em voga, que revela pendores para trabalhar a superfície da linguagem mas incapacidade de penetrar na essencialidade profunda do ser humano. Aliás, a literatura paraibana integra também meu trabalho acadêmico. Há alguns anos orientei uma dissertação de mestrado sobre A pedra do reino, do Ariano Suassuna, e agora estou orientando uma tese de doutorado sobre Zé Lins do Rego. Paulo Bezerra faz menção, também, ao livro de Carlos Newton Júnior Vida de Quaderna e Simão, que questiona o mito acadêmico segundo o qual só professor universitário pensa. Concordo plenamente com o que Newton diz a esse respeito. No momento, Paulo Bezerra está traduzindo Os irmãos Karamazov e escrevendo um livro sobre a poética do dialogismo em Machado de Assis. (Matéria publicada no Correio das Artes em junho de 2006)