TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA.
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- Natália Ximenes Rodrigues
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1 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 130 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA. Letícia de Faria Ferreira Universidade Federal da Fronteira Sul Jussemar Weiss Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande Introdução O presente artigo trata de descrições das atividades que exercem trabalhadores rurais do pampa, espaço cultural que atravessa as fronteiras do Uruguay, Brasil e Argentina e caracteriza-se por um certo modo de vida e ofício dos gaúchos. Apresentamos relatos que nos conduziram a esse modo peculiar - e quase extinto - de conciliar o trabalho, a lida do campo, o convívio com os animais, com a vida, os hábitos e os gostos. Assim, o recorte advém a partir da memória de um cantareiro trabalhador que reconstrói cercas de pedra nos campos da região da campanha. O nosso projeto de estudos vai traçando paralelos com o documentário etnográfico que filmamos sobre sua vida e trabalho, onde poderemos observar como, em seu oficio, algumas linhas transversais entre a técnica do passado e os artefatos do presente se hibridam. Mesmo que na fronteira de se extinguir, o ofício do cantareiro como de tantos outros domadores, alambradores, esquiladores são formas de trabalho que constituem certas identidades na região do pampa e dão sentido a vida de muitos desses trabalhadores.
2 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 131 Anotações sobre a memória. Diferentemente de outras fontes históricas, a memória é uma fonte carregada de contingências, podendo, no decorrer do tempo, ser atravessada por inúmeras variáveis. O conhecimento, como artefato da memória, é capaz de transportar em si diferentes momentos, circunstancias e eventos e colocá-los frente à luz de interpretação sempre renovadas. O relato de uma profissão, seus percursos e contextos talvez seja um campo interessante para se perceber as transversais que o decorrer de uma vida coloca para a história. Algo como uma espiral compõe o trabalho de um artesão na medida em que envolve vida, labor, tempo e gosto. No caso dos trabalhadores do pampa peões, campeiros, domadores ou simplesmente gaúchos essa transcorrência do tempo histórico foi bem observada por Bioy Casares quando diz El tema abunda en dificuldades. Las generalizaciones, las afirmaciones mismas, resultan problemáticas. Ante todo, El gaucho há tenido uma vida prolongada y, como todo longevo, ha cambiado mucho.[...]cuando no lo encontramos, no estaremos buscando al de nuestra infancia, o al de la tradición de nuestra casa y de nuestro libros? (Casares, 1999, p.37). Observar as narrativas dos atuais gaúchos pode parecer a princípio um labirinto onde certas trilhas já foram fechadas tornando-se um beco sem saída enquanto outras reinventam novas modalidades de trabalho, reapropriando-se de saberes do passado para compor outras modalidades de vida e trabalho, com técnicas e arranjos do presente. Assim, ao
3 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 132 percorrermos esses labirintos vamos encontrando explicações singulares para as escolhas de vida dos trabalhadores da campanha gaucha 22. A proposta deste artigo é apresentar a descrição do trabalho de um domador tradicional de cavalos que ainda persiste enquanto ofício, apesar das adversidades das novas técnica (diferente da modalidade atual chamada de doma racional). O DOMADOR Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós.(halbwachs, 2006, p.29). Morando em uma pequena casa dentro dos campos 23 que compõem a Fazenda Bela Vista onde trabalha, Basílio divide seu tempo entre os afazeres típicos de um campeiro sejam eles: tirar leite, cuidar das criações domésticas, camperiar, carnear ovelhas para o seu consumo e também da casa do patrão, cortar lenha, entre outros e a doma de 22 Estou chamando aqui de trabalhadores da campanha gaúcha aqueles peões que residem nas fazendas ou possuem pequenas propriedades e que intitulam sua profissão como de campeiros. 23 Campos: os campos são potreiros extensos que ocupam parte da propriedade agrária. A expressão campo advem do período anterior aos cercamentos do pampa. Neste momento o campo era a parte do pampa, da qual alguém se adonava. Usamos a expressão pampa para a região que abrange todo o pais Uruguai, as regiões da Argentinade Entre-Rios, Corrientes, Buenos Aires, Cordoba e Santa fé e La Pampa. No Brasil a região que compreende a fronteira do Estado do Rio Grande do Sul com o Estado do Uruguai, e com a Argentina até a região conhecida como missioneira.
4 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 133 cavalos ainda xucros. Cada desses seus afazeres mereceria uma descrição mais densa, mas neste texto optamos por descrever a doma, deixando para outro momento os relatos de suas outras tarefas. Enquanto o dia ainda mal e mal desponta é hora de levantar, o horário da natureza é incorporado, visto como o mais apropriado para as lides campeiras começando pela atividade de tirar leite. Em seguida tocar os cavalos, encilhar e sair para o campo para cuidar de afazeres relacionados com o gado e as ovelhas. A manha transcorre geralmente a trote de cavalo, no abrir porteiras e fechar porteiras, entrar em potreiro, laçar e curar algum animal eventualmente abichado (doente). Antecipa-se a todos esses momentos, a hora do mate. Movimento inicial, fazer o fogo no pequeno fogão à lenha e dependendo do tempo disponível esperar que a água aqueça para mate junto a chapa de ferro, porém, caso esteja com pressa, Basílio não hesita em acionar o fogão a gás para antecipar o horário do mate. Durante o ano, normalmente no período de verão Basílio recebe alguns cavalos para domar. Alguns são provenientes da própria fazenda onde trabalha, outros são trazidos vizinhos ou outros que reconhecem seu trabalho de domador. Domar um cavalo que ainda não teve nenhuma ou pouca domesticação, requer cerca de um ano de trabalho. Sendo normalmente iniciada no verão para que o animal resista mais, considerando que quando o potro (cavalo em fase de doma), não é racionado com alimentação especial e ficando apenas a campo como dizem ( ou seja, em sua maioria os potros ficam soltos no campo nativo, alimentando-se apenas do pasto) pois sofre um processo de degradação física intenso pelo esforço e pelo frio e, muitas vezes, a atividade precisa de um intervalo nos meses mais rigorosos do inverno. Em janeiro iniciou a doma da égua Geada. Pouca domesticada, apenas algumas vezes foi trazida a mangueira onde recebia alguma atenção. As primeiras ações de Basílio com a potra é amarrá-la a um forte poste que fica estrategicamente situado na saída da mangueira. Por cerca de dois ou três essa é a prática, deixá-la ali várias horas, como se estivesse se curtindo, o que segundo Basílio tem o efeito de deixá-la menos resistente por que ao forçar contra o poste com a cabeça presa a um buçal acaba ficando mais sensível por estar já sentida de se golpear solita, explica nosso domador. O segundo
5 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 134 passo do que Basílio chama de doma rústica é envolver quase todo o corpo da égua Geada com tiras de couro conhecidas como maneador. Esse passo tem como finalidade não só de ir acostumando-a com os arreios como também tirar as cócegas e deixá-la mansa para ser tocada em qualquer parte, das patas as orelhas. Uma espécie de litania quieta, calma, calma, psit, não te judia etc vai sendo proferida pelo domador enquanto agilmente envolve o animal com o maneador. Para um observador que não está acostumado com as lidas, o conjunto de ações que compõe o processo de doma, aparece como exercício da violência, mas é preciso notar que está prática se insere em um estilo de vida na qual a rusticidade é um elemento cotidiano.neste sentido a aproximação do domador do cavalo,é também uma aproximação com sentido humano, isto é, procura conhecer, julgar o outro, para saber com quem se está lidando. O Gado, O Cavalo e o Homem na formação da Cultura do Pampa Com a chegada do cavalo e do gado vacum a partir dos séculos XVI e XVII começou um processo de constituição do que chamamos de cultura do pampa. Esta cultura esteve centrada na estância, na pecuária e na utilização do cavalo. O tipo humano que vai caracterizar essa cultura é o gaucho, gaúcho 24. Este sujeito é resultado de um conjunto de variáveis sócioculturais e psicológicas que vão moldar sua forma de ser e de viver. Vivendo longe das cidades em meio ao pampa tocando o gado e montando os cavalos que encontrava disperso em manadas o gaucho vai construir um estilo de vida que trás a marca da relação que ele mantem com um tipo especifico de ecosistema, isto é, o pampa. É inegável que sem a presença das imensas pradarias que se tornaram próprias a cultura da pecuária, ou seja, a criação de bovinos, ovelhas e cavalos, o gaucho enquanto uma construção particular e singular da prática da cultura do vaqueiro, não teria existido. Como sabemos houveram outras formas de vaquejar, as quais não seria correto nomear o sujeito que a faz como gaucho, gaúcho. 24 Usaremos ora gaúcho, ora gaucho, entendemos que englobam a mesma prática.
6 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 135 Esta cultura se desenvolve em meio, então, a uma constante disputa com a natureza, no sentido em que, o gaucho tem que cotidiamente arrancar o seu sustento. O seu sustento, isto é,sua alimentação, vestimenta, e meio de locomoção, como também a moradia,ele fazia a partir de um conjunto de habilidades que se constituíram a partir mesmo da vivencia naquelas paragens. O gaucho surge como resultado da penetração do gado no pampa, surge como um sujeito que dispõe de si,sem precisar empregar-se para sobreviver, o que na época, em outras partes do mundo seria impossível, na Europa, por exemplo, começava o longo processo de constituição do trabalho assalariado, que é total submissão do sujeito trabalhador as demandas da produção. Esta possibilidade de viver sem ser condicionado por algum tipo de relação oficial se dá partir da presença de grandes rebanhos nas regiões do pampa. Com alimento farto a sua volta com os meios de locomoção também a disposição, o sujeito que se constituirá em gaucho, precisa apreender as formas de interagir com a natureza. Dessa interação entre o humano e o pampa, habitado pelos rebanhos de gado e cavalo, brotará esse tipo humano: O gaucho, gaúcho. As Vaquerias que nada mais eram que caça ao gado cimarron, são momento do desenvolvimento do aprendizado da prática guachesca na visão de Coni 25. Nestas caçadas ao gado os gauchos foram desenvolvendo as habilidades necessárias ao tipo de vida que se inaugurava naqueles momentos Esta interação é o desenvolvimento de habilidades necessárias a reprodução da existências nestas áreas de pradarias: saber montar é uma prática muito importante, pois com se venceria enormes distancias em busca do gado, ou mesmo, para simples locomoção de um lugar a outro,por isto a equitação pampeana se torna uma arte no que ao conjunto de saberes e habilidade que ela envolve. Depois desse saber ligado a montaria, o conhecimento do terreno, da natureza. Em meio a um mar verde, como orientar-se, a não ser a partir de uma habilidade de marcação visual de pontos de apoio que servem de balizas nas travessias desses campos. O vaqueano, nome dado aquele sujeito que sabe locomover-se com 25 Coni,Emilio. História de las Vaquerias de Rio de La Plata: Buenos Aires, Devenir,1956
7 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 136 segurança no imenso território do pampa. Mas não basta saber atravessá-lo, é preciso conhecê-lo, se assim posso dizer por dentro, isto é, conhecer os arroios, as passagens naturais entre as coxilhas, os lugares nos quais os rios dão vão, enfim este conhecimento se constitui em um processo de experimentação concreta e cotidiana na qual o sujeito se faz ao apreender esse saberes e modifica o seu entorno ao saber. Em um mundo ainda sem cercas artificiais, o conhecimento de possíveis limites naturais é vital na formação do rodeio. As habilidades acima formam um conjunto de saberes que permitem a vida nesta região, mas é preciso ressaltar que este conjunto se realiza a partir de uma mediação violenta, pela violência. A violência era a forma, o jeito da realização dessas práticas, poderia se dizer a violência no meio do pampa instaura uma forma de vida. Notamos o choque que causa aos viajantes que passaram pelo pampa em várias épocas essa vida violenta. Violência na condução dos animais, violência na forma do abate, violência no estilo da doma, e por fim a presença da violência no convívio humano. De todas as formas de violência comuns a vida do gaucho no pampa a que mais longeva tenha sido a doma. As formas de abate se modificaram, ninguém mais usa desgarrodear, ou degolar em meio ao campo,como também ao se tocar o gado de campo a campo ou para potreiros os rebenques e relhos perderam seu lugar para uma conduta mais calma e que protege o animal,isto é, o investimento do dono, do estresse. A Doma Mas a doma persiste, não, apenas, por que as formas de doma racional aparecem ao redor da segunda metade do século XX, mas em função da forma como o gaucho constitui sua humanidade. Escrevemos mais acima que a vida do gaucho se constitui pela violência, isto é, é ela que articula as práticas e os sentidos da vida. Ela a violência, está presente em todos os momentos: na lida, nos conflitos entre os sujeitos, na relação direta dos humanos com a natureza, em suma a violência ou uma versão bruta da convivência tornam possível a existência no pampa. Mas esta violência não é uma guerra constante, não estamos nos referindo a isso, mas um estilo áspero, agressivo mesmo de convívio, no cotidiano.
8 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 137 A doma é um conjunto de habilidades que se constituíram ao longo de uma prática de mais de dois séculos de convívio com as manadas de cavalos selvagens no pampa. O processo de domesticação envolve mais do que habilidades,digamos práticas, apenas, mas um tipo de tato,de sensibilidade que faz com que o domador seja uma artesão especial, dono de um saber particular, embora circule entre todos. O que queremos dizer é que todo o gaucho pode domar,o que é lógico em meio ao pampa não poderia esperar por alguém que só realizasse este serviço, mas logo o processo da doma tornou-se um tipo de especialização no universo da gauchesca. Existem certos domadores que são requisitados pelas suas habilidades em preparar o cavalo, deixa-lo pronto, ou de uma forma rápida reconhecer aquele animal no qual a doma não terá o resultado desejado. Esses domadores,são portadores de um saber no qual mesclam a violência com uma serena capacidade de escutar e perceber as fases da doma na qual o cavalo está passando. O domador percebe a partir de suas habilidades para o cavalo está indo na doma, todos os seus gestos, que vistos de fora parecem ou descabidos ou mera violência gratuita,seguem um método concreto no qual a experiência acumulada durante anos se reverte em saber que mostra segurança no que faz. Mas a doma não é apenas uma realização de um saber geracional, passado de pai para filho, é como todo trabalho do artesão uma relação. Relação no sentido em que,que não se restringe a aplicação de técnicas das quais resulta o cavalo domado, é antes de tudo um convívio com o cavalo a ser transformado. Este convívio espelha a luta do humano na construção de sua humanidade, de seu lugar no imenso outro que chamamos de natureza. Esta luta, de combates agressivos e de afagos demorados, de quebra de queixo e de terno contato, revela uma luta silenciosa na qual o humano tranformando o cavalo-fera, em cavalo-homem, isto é apto as lidas, também passa por um processo de modificação encontrando seu lugar particular no mundo. Podemos dizer como faz Clastres ao estudar os Guaxaki em relação a caça a caça é o momento da revelação do talento do caçador,ele vai a caça pois precisa,não apenas pela questão nutricional, mas fundamentalmente por que não pode deixar de ir,já que ela instaura o seu
9 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 138 mundo. O mundo humano, da habilidade,singular diante do imenso outro, natureza, estranho que lhe faz eco em todos os momentos 26. Assim o gaucho ao domar penetra no imenso outro e sai diferente, singular, dono de si, sabedor de seu lugar no cosmos.dessa forma domar é conquistar sua humanidade ameaçada, ela animalidade do cavalo,que sintetiza todo o perigo que ronda a vida humana singularno interior desse ser desconhecido:a natureza. Basilio é isto um domador instaurador de humanidade, seu saber prepara o cavalo-fera para penetrar no mundo da lida, isto é, mundo humanizado, e ao mesmo tempo, revela o humano em sua diferença, na sua singularidade. Embora possamos notar as várias modificações pelas quais passou e passa o processo de doma, ele sempre é um processo que instaura no que realiza, o ato de domar, uma diferença. É esta diferença que precisa ser mantida, pela doma, para que o humano não pereça enquanto particularidade. Basilio nos mostra outras formas de construção do humano,marcadas pela vivencia em mundo no qual a habilidade prática, particular e não articulada por nenhum livro, define a própria existência. Referências Casares, Adolfo Bioy. Memoria Sobre La Pampa Y los Gauchos. Buenos Aires, Emecé,1999. Clastres, Pierre. Crônica dos Índios Guaxaki. Rio de janeiro, Ed. 34, 1995 Coni, Emilio. Historia de las Vaquerias de Rio de La Plata. Buenos Aires, Devenir, Eiade, Mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa, Ed.Lisboa, Clastres, Pierre. Crônica dos Índios Guaxaki.Rio de Janeiro, Ed , p. 21
10 TRABALHO E MEMÓRIA NA CAMPANHA GAÚCHA 139 Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Centauro,2006. LÉVI- STRAUSS, Claude. A lição de sabedoria das vacas loucas. Estudos Avançados 23 (67), Pinto, Anibal. De las Vaquerias ALAlambrados. Montevideo, Ediciones Del Nuevo Mundo,1967.
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