Direitos Humanos e Bioética: análise sobre a gestação de substituição 1
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- Sebastião Guimarães Gabeira
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1 - SEPesq Direitos Humanos e Bioética: análise sobre a gestação de substituição 1 Cristiane Avancini Alves 2 1. Introdução A atenção aos conceitos e fundamentos adquire grande importância no debate a respeito do início e fim de vida, na medida em que o rápido desenvolvimento das técnicas que envolvem esses contextos desafiam o jurista quanto ao enquadramento do caso concreto. O conceito de saúde, definido pela Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) após a Segunda Guerra Mundial, retrata a importância da totalidade da pessoa humana e, assim, o cuidado e proteção inerentes à formação social. Esse aspecto associa-se ao campo bioético, que potencializa a interdisciplinariedade do debate sobre a vida e às práticas biomédicas a ela relacionadas. A clareza ou o acesso às alternativas e aos conceitos que podem auxiliar na delimitação do processo decisório são elementos fundamentais neste contexto. No âmbito do início da vida, especificamente quanto à gestação de substituição, busca-se efetuar a análise entre diferentes países que tanto permitem quanto proíbem esta prática, além de se visualizar aqueles que não a definem, o que suscita diferenciadas possibilidades práticas debatidas nesta pesquisa. Este panorama torna-se elemento interessante de análise para o Brasil, na medida em que a ausência de legislação específica sobre o tema remete a novas situações. A regulamentação existente, emanada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), suscita reflexões e a necessidade de efetivo debate sobre o assunto. 2. Metodologia Utiliza-se o estudo bibliográfico e jurisprudencial em razão das diferentes formas e perspectivas empregadas em diversos países quanto à regulamentação ou aos procedimentos adotados na ausência de legislação sobre o assunto. O levantamento realizado, que visa estabelecer a conexão entre a teoria e a prática, indica que não há respostas conclusivas ou hegemônicas sobre o panorama analisado. 1 O presente trabalho é parte do Programa Institucional de Pesquisa Edital 01/2013 Edital de Pesquisa Docente Modalidade 1 (M1), Projeto de Pesquisa Direitos Humanos e Acesso à Saúde: análise jurídica e bioética quanto ao início e fim de vida, coordenado pela autora. 2 Mestre em Direito pela UFRGS e Doutora em Direito pela Scuola Superiore Sant Anna di Studi Universitari e di Perfezionamento, Pisa, Itália. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis. Contato: cristiane_alves@uniritter.edu.br
2 - SEPesq 3. Resultados e Discussão A gestação de substituição é uma técnica que decorre do avanço dos estudos relativos à reprodução assistida. O elemento que diferencia essa prática reside na participação de uma terceira pessoa, especificamente de um ventre de terceiro 3, que irá compor a relação entre o casal que deseja ter seu filho, mas que não pode, efetivamente, gestar e, assim, participar do desenvolvimento físico da gravidez. A definição dessa técnica é de grande importância, pois tem-se verificado uma certa variedade de expressões que podem levar à ambiguidade ou à interpretação errônea dessa possível prática em relação ao ordenamento jurídico brasileiro. A expressão gestação de substituição é utilizada na Resolução CFM nº 2013/13, em seu item VII. Entre parênteses, ao lado dessa nomenclatura, lê-se doação temporária do útero, e se verifica que o item VII não mais se utiliza de gestação de substituição, passando a referir, nos demais tópicos do item, doação temporária do útero. Não há uma explicação definida, no documento, a respeito dessas duas denominações, o que deixa uma inadequada abertura na interpretação da técnica, em virtude de termos que possuem diferentes significados. Falar em gestação de substituição remete à palavra de língua inglesa surrogacy, que advém de surrogate : um substituto, alguém que irá substituir outra pessoa em alguma específica situação ou tarefa 4. Remete-se a origem dessa palavra ao século XVII, do latim surrogatus, particípio passado de surrogare, que quer dizer eleito como um substituto. Na passagem do tempo e através das transformações sociais, culturais e tecnológicas, os casos que chegaram pela primeira vez a conhecimento do público e dos tribunais ocorreram na década de 1980, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O denominado caso Baby Cotton retrata o primeiro caso comercial de gestação de substituição na Inglaterra, quando Kim Cotton recebeu 6.500,00 para ter um bebê para um casal de estrangeiros, em um acordo intermediado através de uma agência americana. Kim Cotton não conheceu o pai norteamericano que entregou seu material genético para fertilização. O caso ocorreu em 1985, e a criança foi mantida sob a guarda do tribunal depois de seu nascimento e cuidada por enfermeiras até a decisão judicial que determinou que ela deveria ser adotada pelo casal, pois o juiz considerou que Cotton tinha 3 ASCH, Adrienne and MARMOR, Rebecca. Assisted reproduction. From Birth to Death and Bench to Clinic: The Hastings Center Bioethics Briefing Book for Journalists, Policymakers, , p Surrogate: a substitute, especially a person deputizing for another in a specific role or office (Oxford Dictionaries).
3 - SEPesq voluntariamente renunciado dos seus direitos e que não havia ninguém melhor preparado para cuidar da criança do que o pai biológico e sua esposa 5. O caso conhecido como Baby-M ocorreu nos Estados Unidos, também em 1985, quando os casais Whitehead e Stern formalizaram um acordo em que a técnica seria utilizada para a formação de uma criança. Eles possuíam uma estável situação econômica, e o desejo de terem um filho com caracteres genéticos de um deles, especialmente pela origem judia de William, fizeram com que procurassem o Infertility Center of New York, um Centro de Infertilidade inaugurado em Em contrato estabelecido com Richard e Mary Beth Whitehead, o casal Stern pagou U$ ,00 ao casal Whitehead, com o propósito de realizar inseminação artificial de esperma de William para gestação de Mary Beth, sendo que, em caso de gravidez, a criança seria entregue ao casal Stern ao nascer. O procedimento já era, então, conhecido como traditional surrogacy 6 (substituição tradicional). O dilema que envolve esse caso reside no fato de que Mary Beth se negou a entregar a criança (uma menina) ao casal Stern após seu nascimento. Houve uma forte repercussão do caso no país, com ingresso de ação judicial e decisão da Suprema Corte de New Jersey, que considerou ilegais os contratos que envolviam a gestação de substituição, mas concedeu a custódia da menina para o casal Stern, com fundamento no denominado melhor interesse da criança 7. No Brasil, conforme acima referido, a Resolução do CFM sobre o tema utiliza-se da expressão doação temporária de útero. É importante ressaltar, inicialmente, a palavra doação e o instituto jurídico a ela relacionado. O art. 538 do Código Civil considera a doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. Portanto, tem-se uma espécie contratual em que há a transferência de bem ou vantagem. A reflexão que deve ser feita, nesse contexto, é a caracterização (ou não) do útero como um bem ou uma vantagem (pois a expressão é clara em falar do útero, e não da criança em gestação). Aqui surge, inicialmente, uma dificuldade de interpretação quanto à transferência do útero, pois ele não será retirado do corpo da mulher que irá se dispor a gestar (e, assim, não será entregue para outra pessoa). Talvez, portanto, a Resolução refira-se, logo após, ao termo temporária. Contudo, essa inclusão não esclarece o instituto 5 EDELMANN, Robert J. Psychological assessment in surrogate motherhood relationships. In COOK, Rachel, SCLATER, Shaley Day and KAGANAS, Felicity. Surrogate motherhood: international perspectives. Oregon: Hart Publishing, 2003, p SANGER, Carol. Developing markets in baby-making: in the matter of Baby-M. Harvard Journal of Law & Gender, vol. 30, 2007, p Maiores referências quanto a este caso em: SANGER, Carol. Developing markets in babymaking: in the matter of Baby-M. Harvard Journal of Law & Gender, vol. 30, 2007, p. 69.
4 - SEPesq em si, pois falar em doação temporária remete a uma espécie de cláusula de reversão da doação, que existe no âmbito jurídico, mas que se caraceriza como uma espécie de doação condicional 8, o que, portanto, se torna de difícil aplicação a esse caso. Pensa-se que, sendo assim, é possível chegar a uma confusão entre os caminhos adequados dessa prática: se a doação temporária é do útero, e se for requerida, em algum momento, a revogação dessa doação, como será ela possível se houver, em processo, uma gestação? Será possível não querer mais a criança que está no ventre doado temporariamente? Soma-se, a estas observações, uma prática que tem sido analisada em âmbito internacional. O acesso às técnicas e inovações na área biomédica pode levar da inclusão à exclusão: tem-se o denominado turismo procreativo, ou seja, a possibilidade de casais com elevados recursos financeiros de terem verdadeiro acesso à gestação de substituição em outros países, quando o seu próprio país não autoriza esta prática. Desta forma, o procedimento igualitário e amplo no âmbito da formação social desvirtua-se e, inclusive, pode levar a discussões de nacionalidade. Um dos problemas que decorre dessa prática é o registro civil da criança nascida desse procedimento, especialmente quando ocorrido em país estrangeiro. Há países que permitem, proíbem ou que se encontram em posição intermediária a respeito dessa prática. Essa constatação demonstra, por exemplo, que o debate referente à gestação de substituição não possui um panorama hegemônico. Um estudo comparativo realizado pelo Parlamento Europeu descreve, em seu resumo ( abstract ), que o trabalho fornece uma visão preliminar da ampla gama de preocupações políticas relacionadas com o tema, considerado uma prática que atua em âmbitos nacionais, europeus e globais, e conclui que é impossível indicar uma tendência legal específica para toda a União Europeia. No entanto, todos os Estados-Membros parecem estar de acordo sobre a necessidade de uma criança ter claramente definidos seus pais legais e estado civil 9. 4) Conclusões A preocupação primordial que se estabelece na relação entre a gestação de substituição e os direitos humanos reside na não-instrumentalização das partes envolvidas nesse procedimento. A ausência de legislação específica sobre o 8 Espécie de doação referida por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery em Código Civil Comentado, indicando, ainda, o art. 547 neste sentido: O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver o donatário. NERY JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Título: A Comparative Study on the Regime of Surrogacy in EU Member States. European Parliament, manuscript completed in May European Union, Disponível em: Acesso em 30 de janeiro de 2014.
5 - SEPesq tema, bem como a inserção, na Resolução nº 2.013/13, de temas delicados que dizem intrinsecamente respeito com as relações humanas (por exemplo, união homoafetiva e limite de idade gestacional) sem um maior debate ou esclarecimento efetivo de como o procedimento será, efetivamente, realizado, impelem à reflexão. Há, nesse sentido, elementos que necessitam ser delineados para uma adequada normatização sobre o tema. A preservação dos aspectos éticos e humanos envolvidos na formação de gerações futuras é meta necessária para o equilíbrio entre o uso de novas tecnologias e a formação da própria sociedade. Para tanto, visa-se delinear diretrizes que possam auxiliar em uma possível estruturação legislativa sobre o tema. 5) Palavras-chave Direitos humanos; Bioética; Gestação de substituição Referências bibliográficas ANDORNO, Roberto. The Oviedo Convention: a European legal framework at the intersection of human rights and health law. JILB, Vol. 02, ASCH, Adrienne and MARMOR, Rebecca. Assisted reproduction. From Birth to Death and Bench to Clinic: The Hastings Center Bioethics Briefing Book for Journalists, Policymakers, EDELMANN, Robert J. Psychological assessment in surrogate motherhood relationships. In COOK, Rachel, SCLATER, Shaley Day and KAGANAS, Felicity. Surrogate motherhood: international perspectives. Oregon: Hart Publishing, GOLDIM, José Roberto. Revisiting the Beginning of Bioethics: the contribution of Fritz Jahr (1927). Perspectives in Biology and Medicine, volume 52, number 3 (summer 2009):377 80, by The Johns Hopkins University Press. JADVA, V., BLAKE, L., CASEY, P. and GOLOMBOK, S. Surrogacy families 10 years on: relationship with the surrogate, decisions over disclosure and children s understanding of their surrogacy origins. Human Reproduction, Vol. 27, No. 10, pp , NERY JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, SANGER, Carol. Developing markets in baby-making: in the matter of Baby-M. Harvard Journal of Law & Gender, vol. 30, 2007.
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