Relatório de Caso Clínico
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- Inês Caldas Pinto
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso: 2009/2/10 Procedência: HCV-UFRGS N o da ficha original: Espécie: canina Raça: Poodle Idade: 13 anos Sexo: macho Peso: 4,7 kg Alunos(as): Bárbara Moraes, Camila Carneiro Monteiro, Camila Reichak, Gabriela Ano/semestre: 2009/2 d'avila Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Raquel Kroetz ANAMNESE Na primeira consulta, realizada dia 5 de novembro, o proprietário relatou que o animal estava com otite há três meses, mas não estava em tratamento; o animal apresentava muita secreção ocular e nasal do tipo purulenta, inapetência, perda da visão, dispnéia, fraqueza, polidipsia e poliúria; urinou deitado no dia anterior à consulta; não apresentava tosse; não estava recebendo nenhuma medicação; quando começou com poliúria e polidipsia, o veterinário responsável na época indicou Paracetamol 750 mg (analgésico e antipirético); o cão havia recebido todas as vacinas (nacionais). EXAME CLÍNICO No exame clínico, o animal apresentava temperatura retal de 39,3 C (38,5 C a 39,5 C), mucosas rosapálidas, tempo de enchimento capilar de 3 segundos, desidratação leve, linfonodos sem alteração, frequência cardíaca de 120 bpm (70 a 120 bpm), otite purulenta bilateral, grande quantidade de cálculo dental, ceratoconjuntivite seca, catarata bilateral, úlcera de córnea bilateral (Figura 1), não reagia à palpação abdominal e na ausculta cardiopulmonar apresentava estertores; foi coletado sangue e urina para análise. EXAMES COMPLEMENTARES Ecografia abdominal: fígado com parênquima homogêneo e hiperecogênico; vesícula biliar com significativa quantidade de barro biliar; adrenal esquerda com aumento de volume (cerca 2 cm X 0,7 cm), adrenal direita não visualizada; os demais órgãos estavam sem alterações visíveis (Figura 5). Raio X torácico: pulmão com infiltrado bronquial de moderado a severo. URINÁLISE Método de coleta: cateterização Obs.: presença de aglomerados de células epiteliais. Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarelo fluida límpido 1,020 Exame químico ph (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos 5, n.d. Sedimento urinário (n o médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 1 Tipo: escamosas; de transição Hemácias: 0 Cilindros: 1 Tipo: hialinos Leucócitos: 5 Outros: 1 Tipo: bilirrubina; urato amorfo Bacteriúria: leve n.d.: não determinado BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 70,0 g/l (54-71) Glicose: 545 mg/dl (65-118) ALP: 650 U/L (0-156) Albumina: g/l (26-33) Colesterol total: mg/dl ( ) ALT: 162 U/L (0-102) Globulinas: g/l (27-44) Uréia: mg/dl (21-60) CPK: U/L (0-125) BT: mg/dl (0,1-0,5) Creatinina: 1,7 mg/dl (0,5-1,5) Frutosamina: 527,8 µmol/l ( ) BL: mg/dl (0,01-0,49) Cálcio: mg/dl (9,0-11,3) : ( ) BC: mg/dl (0,06-0,12) Fósforo: mg/dl (2,6-6,2) : ( ) BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)
2 Caso clínico 2009/2/10 página 2 HEMOGRAMA Leucócitos Eritrócitos Quantidade: /μL ( ) Quantidade: 4,51 milhões/μl (5,5-8,5) Tipo Quantidade/μL % Hematócrito: 27,0 % (37-55) Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 8,7 g/dl (12-18) Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 60 fl (60-77) Bastonados 0 (0-300) 0 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 32,2 % (32-36) Segmentados ( ) 96 (60-77) Morfologia: Policromasia 2+ Basófilos 0 (0) 0 (0) Eosinófilos 0 ( ) 0 (2-10) Monócitos 708 ( ) 2 (3-10) Linfócitos 708 ( ) 2 (12-30) Plaquetas Plasmócitos (0) (0) Quantidade: /μL ( ) Morfologia: Neutrófilos hipersegmentados, monócitos Observações: ativados 1+ TRATAMENTO E EVOLUÇÃO O animal foi internado para tratamento clínico; foi administrada solução fisiológica (NaCl a 0,9%), IV, de forma lenta e contínua; o paciente foi medicado com Plasil 2 mg/ml (cloridrato de metoclopramida, antiemético), na dose de 0,5 mg/kg, via SC, a cada 8 horas; Antak 25 mg/ml (cloridrato de ranitidina, protetor gástrico), na dose de 2 mg/kg, via SC, a cada 8 horas; Convenia 80 mg/ml (cefovecina sódica, antimicrobiano de amplo espectro e de longa ação, da classe das cefalosporinas), na dose de 1 ml/10 kg de peso, via SC, em dose única; Otomax (pomada otológica à base de clotrimazol e gentamicina), a cada 12 horas, em ambos os ouvidos, Tobrex (colírio antimicrobiano à base de tobramicina), 1 gota em cada olho, a cada 8 horas e Still (colírio anti-inflamatório à base de diclofenaco de sódio). Além disso, foi feito o monitoramento da glicemia do paciente, conforme a informação abaixo: Dia 05/11: Dia 06/11: Horário Glicemia (mg/dl) Tratamento 18:00 > 600 0,5 UI insulina regular, via IM 20: ,5 UI insulina regular, via IM 22: : ml glicose 50% em bolus Horário Glicemia (mg/dl) Tratamento 02: : : : : : ,5 UI insulina NPH, via SC 14: : O animal voltou a se alimentar às 12:00 do dia 06/11, possibilitando que a insulina regular fosse substituída pela NPH (0,5 UI, via SC, a cada 12 horas após as refeições). Devido à melhora do paciente, o proprietário optou por seguir o tratamento em casa (autorizado a deixar o HCV em 06/11). Foi orientado sobre a administração da insulina NPH: 0,5 UI, a cada 12 horas, por via SC, após as refeições. O animal deveria receber alimento 2 vezes ao dia. Caso não aceitasse, o proprietário não deveria aplicar a insulina. Deveria seguir com os colírios (Tobrex e Still) e com o Otomax. Além disso, foi acrescentada amoxicilina + clavulanato de potássio suspensão 250 mg/5 ml, na dose de 20 mg/kg, VO, a cada 12 horas; Genteal (hipromelose, colírio substituto da lágrima) 1 gota em cada olho, a cada 4 horas e atropina 1% (colírio midriático e cicloplégico) 1 gota em cada olho, a cada 12 horas; foi combinada reavaliação no dia 09/11; nesse dia, o proprietário relatou piora no quadro clínico do animal (anorexia e prostração) e optou por eutanásia.
3 Caso clínico 2009/2/10 página 3 NECRÓPSIA (e histopatologia) Patologista responsável: David Driemeier Exame macroscópico: os rins apresentaram cápsula aderida e superfície irregular; fígado friável, de coloração amarelada e acentuação do padrão lobular (Figura 3), hepatomegalia (Figura 2); vesícula biliar com bile grumosa; bexiga com pontos hemorrágicos na mucosa; adrenais com nódulos na cortical (Figura 4); pulmão com congestão, antracose, enfisema e edema. Exame microscópico: os rins apresentaram infiltrado leucocitário multifocal moderado, proliferação de tecido conjuntivo fibroso, dilatação tubular e formações císticas revestidas de epitélio pavimentoso; pulmão com edema e congestão difusa acentuada e calcificações focais; fígado com degeneração gordurosa; adrenais e bexiga sem alterações histopatológicas. Diagnóstico: nefrite intersticial crônica e lipidose hepática. DISCUSSÃO Urinálise: a cetonúria ocorre pelo aproveitamento deficiente de carboidratos, acompanhado de um aumento na utilização e metabolismo dos lipídeos (GARCIA-NAVARRO, 2005). Nos tecidos periféricos os ácidos graxos sofrem oxidação para render moléculas de acetil-coa que pode incorporar-se ao ciclo de Krebs para geração de energia. O acetil-coa também pode entrar em vias anabólicas ou pode originar corpos cetônicos (GONZÁLEZ e SILVA, 2006). A glicosúria ocorreu pela hiperglicemia acentuada e está associada à diabetes mellitus, mas não ocorre exclusivamente nesta doença, ocorrendo também na glicosúria renal primária, um defeito tubular renal que afeta a reabsorção de glicose, com a qual deverá ser realizada o diagnóstico diferencial. A hiperglicemia diferencia diabetes mellitus de glicosúria renal primária, enquanto a glicosúria diferencia diabetes mellitus de outras causas de hiperglicemia como estresse, hiperadrenocorticismo, terapia com glicocorticóides, entre outros (FARIA, 2007). A presença de pigmentos biliares pode ser normal, já que o cão possui baixo limiar renal para bilirrubina conjugada, o que resulta em reação positiva para bilirrubina na urina em cerca de 20% dos cães clinicamente normais. O aumento da bilirrubina na urina pode ocorrer também por doenças hepáticas (GARCIA-NAVARRO, 2005). A leve proteinúria pode ser causada por uma cateterização imprópria, leucocitúria, assim como, por infecção do trato urinário ou lesão glomerular, secundária à ruptura da membrana basal (ETTINGER, 1992). Os cilindros hialinos podem estar associados à proteinúria e representam, em geral, a forma inicial e mais leve da irritação renal. A leve bacteriúria pode ser devido a uma contaminação durante o procedimento de cateterização, já que a existência de uma infecção urinária deveria estar associada a um número elevado de leucócitos na urina, o que no caso não ocorre (leucócitos <5). Bioquímica sanguínea: o exame apresentou elevada atividade de ALT e de ALP, o que sugere lesão hepática devido a uma lipidose, que comumente está presente na diabetes mellitus e no hiperadrenocorticismo. A presença de glicose no líquido extracelular por um período de quatro a seis semanas leva a glicosilação não enzimática das proteínas gerando cetaminas estáveis. Estas cetaminas, também chamadas de frutosaminas, aumentam proporcionalmente com o aumento de glicose plasmática naquele intervalo de tempo, refletindo o valor médio da glicemia neste período (STRYER, 1996). A glicose elevada ocorre devido à inibição ou diminuição do ingresso e da utilização de glicose pelos tecidos periféricos, resultando em hiperglicemia (glicose = 545 mg/dl). Hemograma: Eritrograma: Os dados indicam a presença de anemia normocítica normocrômica com regeneração medular, o que pode ser observado pela policromasia. Leucograma: No hiperadrenocorticismo, há liberação excessiva de hormônios glicocorticóides. Na diabetes também ocorre uma liberação contínua desses hormônios devido ao estresse. Em ambos os casos ocorre leucocitose por neutrofilia com linfopenia e eosinopenia (do estresse), assim como a presença
4 Caso clínico 2009/2/10 página 4 de neutrófilos hipersegmentados, caracterizando um desvio nuclear neutrofílico à direita. A presença de monócitos ativados indica intensa destruição tecidual circulatória, que ocorre em algumas doenças inflamatórias, como infecções bacterianas severas e pode ter ocorrido por causa da pneumonia. Ecografia abdominal: o aumento de volume da adrenal esquerda (2 cm x 0,7 cm) pode evidenciar hiperadrenocorticismo; o fígado hiperecogênico revela uma possível lipidose hepática. Necropsia: a hepatomegalia é um achado frequente em casos de diabetes mellitus e hiperadrenocorticismo, na qual é responsável pelo aumento característico do abdômen. A degeneração gordurosa encontrada é característica da lipidose hepática que é comumente encontrada no cão ou gato diabético. Esta é uma consequência direta da deficiência da insulina e da resultante expansão das reservas hepáticas de triglicerídeos. A deficiência de insulina também diminui a secreção de triglicerídeos pelo fígado, permitindo maior acúmulo de lipídeos neste órgão. O infiltrado leucocitário multifocal e proliferação de tecido conjuntivo fibroso encontrados nos rins são achados histopatológicos compatíveis com a nefropatia diabética, mas inicialmente ela se manifesta como grave proteinúria e posteriormente resulta na ocorrência de azotemia e, eventualmente, uremia, o que não pode ser evidenciado neste caso. Em diabéticos com tratamento inadequado ou histórico de glicemia descompensada, os rins iniciam um processo de hiperfiltração, que está relacionado com o início e avanço de lesão renal, mas que pode ser reduzido com melhor controle glicêmico (ETTINGER, 1992). Os nódulos encontrados na cortical da adrenal podem ser responsáveis por um aumento na secreção de glicocorticóides, porém esta alteração ocorre comumente em cães idosos sem alterar a função do órgão. Sinais clínicos: a poliúria, a polidipsia e uma leve desidratação são sintomas comumente observados em casos de diabetes mellitus e hiperadrenocorticismo. A perda de glicose na urina exerce uma ação osmótica, retendo água nos túbulos renais e causando poliúria e desidratação, com a consequente polidipsia (GONZÁLEZ e SILVA, 2006). A presença de secreção nasal e a dispnéia aliadas ao resultado do raio X podem demonstrar uma possível pneumonia. O aparecimento da catarata está relacionado com a hiperglicemia que leva a uma saturação das enzimas glicolíticas (via glicolítica anaeróbica), resultando na metabolização da glicose através da via do sorbitol, que é convertido até frutose. Tanto a frutose quanto o sorbitol não são livremente permeáveis à membrana celular, em decorrência disso, se tornam potentes agentes hidrofílicos, causando um aporte de água para o interior do cristalino, o que leva à ruptura das fibras do cristalino (ETTINGER, 1992). A ceratoconjuntivite seca (CCS) é caracterizada pela deficiência da lágrima aquosa e pode ocorrer por predisposição genética; por doenças metabólicas sistêmicas como a diabetes mellitus, o hiperadrenocorticismo e o hipotiroidismo, entre outras causas. Uma forma de CCS muito aguda e severa é algumas vezes vista, na qual o olho torna-se agudamente doloroso em associação com ulceração corneana (GELATT, 2003). CONCLUSÕES De acordo com a anamnese, os sinais clínicos, os achados laboratoriais e de necropsia, o quadro mostrou-se compatível com diabetes mellitus complicada por presença de pneumonia, catarata, ceratoconjuntivite seca e úlcera de córnea. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ETTINGER, S.J. Tratado de medicina interna veterinária. 3 ed. São Paulo: Manole, v. FARIA, P.F. Diabetes Mellitus em cães. Acta veterinária brasílica, Natal, v. 1, n. 1, p. 8-22, GARCIA-NAVARRO, C.E.K. Manual de urinálise veterinária. 2 ed. São Paulo: Varela, GELATT, K.N. Manual de oftalmologia veterinária. 3 ed. São Paulo: Manole, GONZÁLEZ, F.H.D.; SILVA, S.C. Introdução à bioquímica clínica veterinária. 2 ed. Porto Alegre: UFRGS, STRYER, L. Bioquímica. 4 ed. São Paulo: Guanabara, 1996.
5 Caso clínico 2009/2/10 página 5 FIGURAS Figura 1. Exame clínico do olho esquerdo. Presença de úlcera de córnea. Figura 2. Exame clínico da cavidade abdominal. Hepatomegalia. Figura 3. Aspecto do fígado. Órgão com hepatomegalia, de coloração amarelada e acentuação no padrão lobular. Figura 4. Aparência da adrenal ao corte. Presença de nódulos na cortical. Figura 5. Ecografia abdominal. Adrenal esquerda aumentada e fígado com parênquima homogêneo e hiperecogênico.
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