Tinha uma caverna no meio do caminho...
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- Neuza Rocha Bacelar
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1 Boletim Informativo das Pesquisas do Projeto Paleotocas Número 17 Julho de 2011 Site: Distribuição Dirigida Responsável: Prof. Heinrich Frank Contato: Fone: EDITORIAL Neste número o TocaNews se dedica ao resgate de uma ocorrência histórica de paleotocas na cidade de Casca (RS) no final da década de 70. A reconstituição do que aconteceu em Casca em 1978 demandou muito trabalho, pesquisa, viagens e conversas. A pesquisa das ocorrências históricas é fundamental para evitar que esse conhecimento se perca e para que possamos tirar as lições que aproveitaremos no nosso trabalho atual. Obrigado pela leitura. Tinha uma caverna no meio do caminho... Pesquisando paleotocas, volta e meia a gente recebe uma dica sobre uma Toca ou Caverna que poderia ser uma paleotoca. Na dúvida, visitamos. Foi assim que conhecemos a Toca da Cabrita, uma dica do Dr. Giovani Lucian, de Lajeado. Fica no município de Fazenda Vilanova, divisa com o município de Taquari, nas coordenadas 29º S, 51º W. O acesso se dá pela propriedade do Zé e da Vanda (29º S, 51º W). Foi o Zé que, muito prestativo, nos mostrou a toca. Não é uma paleotoca, mas sim uma enorme gruta, muito pitoresca e cênica. Se estivesse na Europa, já teria virado atração turística há muito tempo. Porque o nome Toca da Cabrita? Porque no morro, à direita da toca, no paredão de arenito Botucatu, tem uma mancha preta na pedra que lembra uma cabrita correndo. Poesia pura e singela do homem do campo.
2 NOVAS OCORRÊNCIAS 1 A fantástica história da cidade subterrânea de Casca RS Fazer uma pesquisa na Internet, usando uma palavra-chave e buscando aleatoriamente arquivos de texto, imagens, vídeos e qualquer outra coisa relacionada a ela você pode chamar de surfar ou zapear ou então, mais formalmente, de Prospecção Digital. Pois bem, estávamos realizando Prospecção Digital usando as palavras galeria, subterrânea, indígena quando nos deparamos com um texto que reproduzia uma curta matéria do jornal Correio do Povo de 1978 onde se mencionava uma cidade indígena subterrânea encontrada próximo à cidade de Casca, no Rio Grande do Sul. A descrição da ocorrência sugeriu da possibilidade de paleotocas. Entramos no site da Prefeitura de Casca e procuramos pelo Parque do Rio da Casca mencionado na matéria de jornal, onde estava localizada a cidade subterrânea. Não achamos nada nem ali nem em outros sites. Enviamos um para a Secretaria de Educação e outro para a Secretaria de Indústria, Comércio, Serviços e Turismo de Casca, solicitando informações. Nenhuma das duas se dignou a dar qualquer tipo de retorno. Cobrando diretamente por telefone uma posição da Secretária de Educação, ela apenas informou que reenviou o à Secretaria de Turismo. Desistimos do Poder Público e partimos para a iniciativa privada. Procurando no Google Earth, localizamos uma série de fotografias de Casca postadas por Lauro Finatto. Pesquisando um pouco, encontramos seu e entramos em contato. Ele imediatamente respondeu e se estabeleceu uma ativa troca de mensagens sobre o assunto. Muito cooperativo e investigativo, Lauro não só indicou o local onde ficava a cidade subterrânea, mas também a propriedade Maccarini, onde havia sítios arqueológicos que já foram pesquisados naquela época. Além disso, nos indicou a pessoa que possuía um arquivo sobre o assunto: o Prof. Paulino Spolti. Entramos em contato e ele logo se dispôs a colocar seu material à nossa disposição. Além disso, indicou outro local com uma galeria subterrânea, na propriedade de Olívia Toazza (Veja TocaNews 16). Por telefone nos apresentamos aos proprietários das 3 áreas e viajamos a Casca. Usando as reportagens do arquivo do Prof. Spolti, podemos reconstituir a história da cidade subterrânea indígena de Casca, em linhas gerais, como segue abaixo. Agradecemos à Profa Norah de Toledo Boor, com a qual conversamos em Passo Fundo, pela oportunidade da entrevista e pelo empréstimo de seu álbum de fotografias. Também agradecemos pelas suas dicas de outras galerias subterrâneas na região: uma já visitamos, a outra está nos aguardando. Se cometemos algum equívoco na reconstituição da história da ocorrência de Casca a partir das reportagens e da entrevista, não foi intencional e pedimos escusas desde já.
3 Em 1972, a Prof a Norah de Toledo Boor, formada em História na UFRGS e com especialização em Arqueologia, já lecionava História e Geografia na Universidade de Passo Fundo e desenvolvia pesquisas arqueológicas. Os sítios arqueológicos mais de surgiam em toda a região - nos municípios de Casca, Planalto, Passo Fundo, Tapejara, Soledade, Nonoai e outros. No ano de 1978, um caçador eventual, chamado Sérgio Franciosi, procurou a professora e informou que em Casca, nas terras de Eduardo Cervieri, existiam duas tocas de bugre ligadas por baixo da terra. A Prof a Norah, acompanhada dos colegas Ari Ribeiro Fernandes, Antônio Leal Boff e Adilson Mesquita, efetuou então uma visita ao local e teve uma enorme surpresa. Tocas de Bugre são chamados os buracos, com até 3 metros de profundidade e mais de 10 metros de largura, escavados pelos índios para fazer suas casas. No centro do buraco era fincado um poste de sustentação do telhado que cobria o buraco. Era como se fosse uma casa, mas para dentro da terra, sem paredes. Veja o Marlon Pestana, em Santa Catarina, explicando e mostrando casas subterrâneas em Na área indicada pelo caçador, em meio à mata virgem, encontraram duas feições que lembravam enormes buracos de tatu. Retirando o entulho caído nos buracos, o grupo encontrou um túnel que unia um buraco ao outro. Um dos buracos de tatu, que permitia o acesso a uma das galerias subterrâneas, já durante a fase das escavações. Imagem do arquivo pessoal da Prof a Norah Boor. A euforia tomou conta do grupo de professores, que descobriram estupefatos um labirinto de túneis entre 30 depressões de portes variados que pareciam salas subterrâneas desabadas. Empregando técnicas arqueológicas, escavaram as entradas e conseguiram se esgueirar pelos túneis. Reconstituindo algumas das salas, verificou-se que a distância média entre seu teto e a superfície
4 era de 1,5 metros. Em uma primeira fase da escavação, em abril de 1978, 20 dias foram dedicados à escavação de duas das salas desabadas, cada uma ligada a três galerias subterrâneas. Em setembro de 1978, nova etapa do trabalho permitiu a escavação de mais três salas subterrâneas, todas elas com túneis de ligação. No fundo do buraco de tatu, a entrada original, muito entulhada, para o sistema de túneis em subsuperfície. Imagem do arquivo pessoal da Prof a Norah Boor. O trabalho permitiu reconhecer que o complexo subterrâneo, que lembrava um formigueiro, era formado por 30 salas circulares e abobadadas com diâmetros entre 2 e 20 metros e alturas de 1,5 a 1,9 metros, interligados por túneis estreitos nos quais uma pessoa adulta passava apenas rastejando. Os túneis, com entre 50 e 70 cm de diâmetro, apresentavam formas cilíndricas e sempre eram sinuosos, com constantes aclives e declives. Além desses túneis de ligação, havia túneis que terminavam como beco sem saída, contra um paredão. A descrição de um trecho das galerias em uma matéria do jornal Zero Hora de permite imaginar a situação:...uma galeria com 20 metros de comprimento, sendo que 12,8 m são consecutivos, sem interrupção. Neste trajeto, encontram-se três câmaras: uma delas tem quatro metros de comprimento por 1m80cm de largura e a mesma medida em altura; a maior delas tem 2m50cm de altura por dois metros de largura e 3m20 de comprimento. A terceira, possui finalmente dois metros de comprimento para uma altura de 1m60cm e uma largura de 1m50cm,...
5 Fotografia de uma das galerias subterrâneas de Casca. Imagem do arquivo pessoal da Prof a Norah Boor. O ambiente no complexo subterrâneo era morno e úmido. O ar se renovava através de buracos verticais, com até 5 buracos de em média 30 cm de diâmetro em cada uma das salas. A disposição geral dos túneis e das salas lembrava uma ponta de flecha, ocupando aproximadamente 10 hectares. Foi coletada uma quantidade enorme de microlascas de ágata, teoricamente um subproduto da fabricação de pontas de flecha. Apesar disso, nenhuma ponta de flecha foi encontrada. Também não foi encontrada cerâmica nas escavações, apenas duas peças líticas acabadas: um furador e uma peça assemelhada a um machado de formato semi-lunar, com 30 por 40 cm. Em Casca, as condições de trabalho eram das mais precárias: acampados no mato, em duas barracas pequenas adquiridas em liquidação porque estavam com defeito, no meio do inverno, com muito frio as temperaturas chegaram a 2º C negativos - os pesquisadores gastavam dinheiro do seu próprio bolso. Algumas contribuições e doações foram obtidas, principalmente alimentos e alguns equipamentos. A equipe de 3 arqueólogos da Secretaria Estadual de Educação, que também passou 17 dias em Casca para acompanhar as escavações, dependeu da doação de comida por uma rede de supermercados gaúcha para não passar por necessidades. Trabalhavam não apenas em feriados e finais de semana, mas também em dias úteis. E a constante falta às aulas ameaçava os professores de demissão.
6 O acampamento montado na propriedade durante a fase de escavação dos túneis. Imagem do arquivo pessoal da Prof a Norah Boor. A descoberta teve uma enorme repercussão na mídia. Reportagens foram publicadas nos mais importantes meios de comunicação, como nos jornais Correio do Povo, O Estado de São Paulo e Zero Hora, além das revistas Manchete e Veja. Isso atraiu um grande número de curiosos ao local, que desejavam andar na terra e que penetravam nas galerias, mesmo com a presença dos professores no local. Em dias ensolarados, grupos de crianças trazidas pelos pais ou pelos professores brincavam dentro das galerias. Além disso, as pessoas pediam explicações aos professores, impedindo a continuidade das escavações. Mais tarde, ainda durante o ano de 1978, por imposição do arqueólogo Fernando La Salvia, do Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria Estadual de Educação, o trabalho foi interrompido por causa do frio. Não foi mais retomado sob a alegação de que dependia de um laboratório a ser montado no futuro prédio do Museu de Antropologia da Secretaria de Educação que nunca foi construído. Muitos anos mais tarde, a mata no local foi derrubada e a região toda transformada em lavoura de soja. Com o intensivo uso agrícola, a ação dos arados acabou por nivelar o terreno, hoje não restando mais vestígios da fantástica cidade subterrânea de Casca. Mas afinal, o que era então a cidade subterrânea de Casca?
7 A partir da década de 60, os arqueólogos pioneiros do Sul do Brasil, como Pedro Augusto Mentz Ribeiro, Igor Chmyz e os padres jesuítas João Alfredo Rohr e Pedro Ignácio Schmitz, entre outros, descobriram uma profusão de tipos diferentes de sítios arqueológicos, ou seja, locais criados ou freqüentados por indígenas. Sítios-moradia, sítios-acampamento, paradeiros, sítios précerâmicos, sítios cerrito-de-sepultamento, sítios-de-trincheiras, terreiros-de-dança, sítios-depetróglifos, abrigos-sob-rocha, aterros, sítios-oficinas, caminhos indígenas, montículos, casas subterrâneas, sambaquis e outros. Em meio a todos esses registros deixados pelos indígenas ao longo dos tempos surgiram as galerias subterrâneas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná. Sem qualquer outra explicação disponível na literatura científica para a origem das galerias, estas foram automaticamente atribuídas aos índios e classificadas como um novo tipo de Sítio Arqueológico. O que contribuiu ainda mais para essa associação é o fato de que em algumas das galerias (em Santa Catarina) foram encontrados petróglifos (inscrições rupestres), peças líticas e fragmentos de cerâmica. Os longos sulcos encontrados nas paredes destas galerias foram atribuídos a instrumentos pectiformes dos índios, apesar dos arqueólogos sempre ressaltarem que os sulcos lembram marcas de garra de animais. Cabe lembrar aqui que o conceito de paleotocas a possibilidade da existência de túneis cavados por animais pré-históricos e que se preservaram surgiu apenas em 1992 com Carlos Quintana, um paleontólogo argentino. Quintana publicou em uma revista científica argentina de Paleontologia um artigo em espanhol onde descreve um túnel desses encontrado na Argentina, atribuindo a autoria do túnel a um tatu gigante pré-histórico. E no Brasil a pesquisa sistemática dos túneis iniciou apenas em 2003 com o Prof. Francisco Buchmann, que estabeleceu o Projeto Paleotocas em Com o Banco de Dados montado pelo Projeto Paleotocas até o momento, contendo mais de 300 túneis entulhados de sedimentos (as crotovinas) e mais de 200 túneis abertos, nos 4 estados do Sul do Brasil, é possível entender a cidade subterrânea de Casca. O que a equipe da Prof a Norah Boor encontrou foram os restos de um labirinto de túneis construído provavelmente por tatus gigantes pré-históricos dos gêneros Pampatherium, Holmesina ou Propraopus. Pelo menos por enquanto, os integrantes do Projeto Paleotocas estão atribuindo os túneis menores, com ao redor de 80 cm de diâmetro, a tatus gigantes, enquanto os túneis maiores (com diâmetros entre 1,3 e 4,2 metros) são atribuídos a preguiças gigantes. O impacto sobre os túneis das raízes das grandes árvores que crescerem e morreram em superfície sobre os túneis ao longo dos séculos, provocou os desabamentos em muitos pontos das galerias. Cada raiz que atinge um túnel representa o início de um ponto de destruição. Inicia com água percolando ao longo da raiz, encharcando o solo e provocando pequenos desabamentos. Quando a árvore morre, no lugar da raiz fica um canal ( macroporo ) por onde a água corre livre, aumentando o canal e provocando mais desabamentos. Forma-se um respiradouro, depois uma cratera. O resto de túnel continua aberto ou entope de vez. Assim, cada um dos desabamentos é um ponto fraco na rede de túneis por
8 onde as águas das chuvas levam sedimentos, ano após ano, abrindo crateras que foram interpretadas como salas subterrâneas desabadas. Abrindo as salas, tem-se acesso aos restos de túneis que sobraram entre elas. Situações idênticas a essas de Casca estamos encontrando em Porto Alegre e Viamão só no Parque Saint Hilaire tem seis ocorrências dessas. Quando se encontra nestas situações um resto de túnel com feições originais, invariavelmente são túneis pequenos (com diâmetros inferiores a 80 cm) e muito longos com mais de 60 metros de comprimento. Chamar os restos desse labirinto de túneis de cidade subterrânea foi absolutamente correto no contexto dos conhecimentos científicos da época. Ainda hoje, muitos arqueólogos não estão convencidos de que os túneis foram escavados de animais pré-históricos. A equipe do Projeto Paleotocas, entretanto, visitou inclusive algumas das galerias descritas pelo Padre Rohr em Urubici Santa Catarina (SC-Urubici-10 e SC-Urubici-12), constatando que são autênticas paleotocas com a forma típica, as marcas de garras nas paredes, etc. Quando há sinais de ocupação humana nas galerias, elas constituem verdadeiros sítios arqueológicos. Se não houver, não são. A enorme importância do trabalho realizado em Casca decorre da raridade de túneis em solos de rochas vulcânicas alteradas e do resgate de uma ocorrência espacialmente muito grande dos túneis. Não existe nenhuma descrição na literatura científica de uma ocorrência tão extensa de túneis vários hectares percorridos por túneis interligados. Paleoecologicamente, evidencia que os animais construíam redes subterrâneas. Essas redes não podem ser atribuídas a apenas um único animal, mas precisam ser atribuídas a famílias de tatus gigantes que provavelmente ocupavam espaços bem localizados com insolação, sem a possibilidade de enchentes, mas próximos a água (o rio passa bem próximo) provavelmente durante muitas gerações. No próximo TocaNews, vamos trazer outra ocorrência histórica: a misteriosa caverna da Av. Bento Gonçalves em Porto Alegre. Semelhante a Casca, uma galeria subterrânea com muita história. Aguarde!
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