Da Fixidez à transição: Um estudo sobre as trans-sexualidades
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- Ágata Caetano Lima
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1 Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Da Fixidez à transição: Um estudo sobre as trans-sexualidades Eveline Rojas 1 Corpo, gênero, trans-sexualidades. ST 61- Sexualidade, Corporalidade e Transgênero: Narrativas fora da Ordem Partindo das discussões teóricas onde, identidades e corpos são compreendidos enquanto construções sociais. Vê-se que as identidades e os corpos são desnaturalizados, o binarismo natureza/cultura deixa de fazer sentido. Compreende-se a impossibilidade de isolar a natureza ou o ponto no qual se inicia a cultura. Nesse sentido, se faz mister compreender, como nos diz Butler (2003), que lidar com identidade necessariamente implica, e exige, lidar com gênero. Butler (2003) consolida o argumento afirmando que a discussão de identidade e identidade de gênero deve ser feita de modo inter-relacionado, uma vez que os sujeitos só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero. Conseqüentemente, a identidade de gênero seria, então, a identidade-chave do sujeito. Esta mesma identidade que por muito tempo teve relação direta com os órgãos sexuais sobre a base biológica natural. Esses avanços e/ou mudanças de paradigma não necessariamente implicaram numa transformação social, no abandono dos binarismos, nas relações sociais cotidianas. Ainda somos imaginados e concebidos dentro da possibilidade cultural bipolar de ser menino ou menina, com todas as características socialmente aceitas e dominantes do ser masculino ou ser feminino. O corpo ainda é generizado e culturalmente definido pelas genitais. As transformações são possíveis, mas cotidianamente fundadas na mesma dicotomia. No campo das análises teóricas, as tentativas de compreensão continuam. Primeiro, o essencialismo apresentava a visão de um lócus original, biológico ou psíquico, determinando e fixando as identidades. Depois, o construtivismo, por sua vez, nos levou a possibilidade de que tudo era construído discursivamente e até mesmo à idéia de que o sujeito teria a liberdade para formar a sua sexualidade da maneira que lhe conviesse (Butler, 2003). Ademais, o pós-estruturalismo se lança na tentativa de propor novas saídas para os dilemas da identidade de gênero e temáticas correlatas. Butler (2003) desenvolve uma teoria, que tem como um de seus conceitos-chave, o de performance; através de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva e sua proliferação além da estrutura binária. O conceito
2 2 de performance não se constitui enquanto um ato particular ou deliberado, mas antes como uma prática que faz referência e reitera através da qual o discurso produz os efeitos que nomeia. A materialidade dos corpos, ou ainda, a materialidade do sexo seria construída através da ação performativa das normas reguladoras. A atuação performativa das normas sociais materializaria, pois, a diferença social, ambicionando a manutenção de uma matriz heterossexual (Butler, 1993). Consoante a isto, o gênero seria então, para Judith Butler, como um tipo de imitação que se passaria como real repetidamente. Ou ainda, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora inflexível, que se cristalizaria no tempo produzindo a aparência de substância real ou natural de ser. O gênero seria um aparato, uma matriz de inteligibilidade cultural, não seria nem ele nem o sexo biológico, recipiente passivo de uma cultura dominante inquestionável e imponente. Ademais, Butler (2003) torna a construção de gênero independente do sexo, possibilitando a existência do masculino em um corpo feminino, do feminino em um corpo masculino. Quebrando os binarismos, permitindo as mais diversas relações entre as categorias de homem, mulher, feminino e masculino. Embora, dentro dessas formulações, Judith Butler ainda nos mostra a existência de gêneros inteligíveis. Gêneros inteligíveis, como sendo aqueles que mantêm e instituem relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo (Butler, 2003). Tendo o corpo como sendo um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas (Butler, 2003). A heterossexualidade normativa se apresenta aqui como sendo uma via de regulação, responsável pela produção e fixação dos limites de inteligibilidade corporal (Butler, 1993). Embora as transgressões, os corpos que escapam, também sejam possibilidades criativas de subversão, uma vez que as reproduções dadas no interior da matriz heterossexual dominante ofereçam aos sujeitos a possibilidade de ultrapassar e expandir os limites da inteligibilidade cultural. Fato este, que daria origem as matrizes rivais e subversivas de gênero para além de uma heterossexualidade compulsória; reinscrevendo, também, as fronteiras do corpo em consonância com o desenvolvimento de novas linhas culturais (Butler, 2003). Deste modo, objetivando que a diferença fosse vista como parte dos sujeitos, e não como algo exterior, oposto ou ameaçador. A coerência das identidades hegemônicas seria então posta em questão. Gyle Rubin (2003) também nos ajuda a pensar as identidades, ou melhor, as sexualidades hegemônicas e desviantes. Rubin (2003) nos apresenta o conceito de estratificação sexual chegando a postular um sistema hierárquico de valor sexual nas sociedades ocidentais. Nessa estratificação, poderíamos falar em sexualidades boas como sendo a normal, natural, ou ainda, as de acordo com um modelo heterossexual. Em oposição, teríamos as más, nas quais estariam classificadas as práticas sexuais de travestis, transexuais, fetichistas, sadomasoquistas, o sexo comercial, entre gerações. Sendo
3 3 assim, Rubin também tenta nos levar a perceber a relevância das sexualidades não reprodutivas no domínio da sexualidade. A idéia de que existem práticas sexuais boas e más expressa por Rubin, pensa o sexo como um vetor de opressão que atravessa vários modos de desigualdade social, como classe, raça e gênero. Rubin nos leva a questionar sobre a relevância do pensar em termos analíticos o conceito de estratificação sexual, a distinção insistentemente afirmada por esta linha de pensamento entre gênero e sexualidade, sexualidade e reprodução (Piscitelli, 2003). Ainda diante da distinção entre sexo e gênero, no tocante às sexualidades nãoreprodutivas, algumas teorias tentam mostrar os limites teóricos, políticos e epistemológicos da insistência em manter os binarismos; buscando do mesmo modo, apontar outras alternativas analíticas. Repensando a dicotomia natureza/cultura, nas teorias fundamentadas nas identidades e nos sujeitos, para chegar a construção de uma teoria focada na materialização dos corpos e subjetividades. Não obstante, Donna Haraway (2004) afirma a necessidade de uma teoria da diferença cuja geometria, paradigmas e lógica escapem aos binarismos, à dialética, aos modelos natureza/cultura de todo tipo. Pois, ainda segundo Haraway (2004), se a distinção sexo/gênero permitiu se argumentar contra o determinismo biológico e a favor do construcionismo social, o mesmo impediu a desconstrução dos corpos, incluindo os corpos sexuados e racializados. Ademais, devemos perceber que as teorias pós-modernas ou pós-estruturalistas não se arvoram a lançar fora os fundamentos mas, antes, tentam destituir a idéia de que estes são o ponto de partida analítico natural, existente dado. Passam a compreendê-los enquanto práticas discursivas, localizadas em um determinado contexto, que também operam na materialização dos corpos e na produção das subjetividades dentro das matrizes discursivas de poder. Estaríamos, pois, pensando de igual maneira, a ação do sujeito sobre o que é visto tido, como estruturalmente dado (Kehl, 1996). Contestando as formas de normalização, podemos falar sobre a figura da drag-queen. Como um sujeito que, explicitamente, assume fabricar seu corpo para, a partir dele, pensar o quanto os demais sujeitos também o fazem no cotidiano, ao expressar no e pelo seu corpo os signos e códigos da cultura dominante. A drag-queen propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, as marcas corporais, os comportamentos, atitudes e vestimentas. Contudo, não o faz na tentativa de se fazer passar por uma mulher, mas sim com o propósito de exercer uma paródia de gênero (Butler, 2003). A drag repete e exagera, aproxima-se, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia (Louro, 2003). A paródia não significa a imitação ridicularizada, mas sim uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança (Hutcheon,1991:.47). O que vem gerar uma apropriação dos códigos daquele que se parodia para ser capaz de reproduzi-los, tornando-os mais evidentes e passíveis de subversão, critica e desconstrução.
4 4 Sendo assim, a paródia permite repensar ou problematizar a idéia de originalidade ou autenticidade (Louro, 2003). A drag-queen põe sob questionamento a essência das dimensões de gênero e sexualidade, nos levando a uma reflexão sobre a construção das mesmas. Nos levam, de igual maneira, a perceber a instabilidade dos corpos e as possibilidades de experimentação dos mesmos para além das fronteiras firmadas pelas normas dominantes (Butler, 2003). Todavia, esses mesmos sujeitos de contestação das normas de regulação social passam a ser tratados como desviantes, anormais, ilegíveis. Mas a possibilidade de transgressão nem por isso é rejeitada. Alguns ousam se lançar no lugar de trânsito e/ou de mudança de gênero e sexualidade. A experiência transgênero também nos ajuda a pensar nesse sentido, além de ser uma das temáticas que têm gerado novas reflexões sobre as teorias de gênero e feministas, uma vez que os questionamentos suscitados por essa prática giram em torno do caráter artificial e fabricado do gênero e das diferenças de gênero (Butler, 2003). Pat Califia (1997) vai afirmar que a transexualidade é profundamente política, não em termos de um grupo "oprimido" atingindo sua liberdade, mas sim de indivíduos que descobrem a possibilidade de libertação fazendo uso de novas maneiras de pensar a respeito de suas identidades sexuais. A tecnologia agiria aqui como uma espécie de prótese mental. A simples possibilidade da cirurgia de mudança de sexo serviria como uma ferramenta psico-social através da qual o repensar das identidades sexuais se dá, mesmo que muitos não precisem ou façam uso da cirurgia. Já para Le Breton (2003), o transexualismo seria uma marca corporal, pois "a marca corporal traduz a necessidade de completar, por iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal". O transexualismo estaria inscrito dentro das práticas de individualização, que levam a uma recriação de si. O corpo não se torna nada mais que uma extensão do eu, ou ainda, a parte visível do "ego". A feminilidade e a masculinidade, longe de serem evidentes, são objeto de uma produção permanente pelo uso apropriado de signos e, desta forma, tornam-se um vasto campo de experimentação (Le Breton, 2003). Avançando na análise, é preciso observar como a modificação corporal, no caso do processo para tornar-se transgênero, pode ser compreendida de formas diferentes. Para a pessoa em transição, o seu corpo é um espaço onde a prática de transformação vai gerar um processo de normalização, embora não se negligencie a carga de ansiedades. Para alguns observadores, essa transformação pode ser entendida como uma prática de transgressão. Como se existisse um dado biológico que vem a ser desnaturalizado, alterado, transgredido. Em ambos os casos, os limites do corpo estão em questão, que ao invés de ser tratado como algo dado, deve ser antes algo a ser
5 5 descoberto, dada a instabilidade dos corpos e das subjetividades (Shildrick,1999). A cirurgia transexual pode ser entendida como uma das ferramentas que possibilitam a construção de uma outra subjetividade. Nesse sentido, as pessoas poderiam manipular a sua identidade sexual, desafiando a máxima que "biologia é o destino" e que o destino é binário: ou menino ou menina (Gray,1995). As crenças em uma imutabilidade do gênero e do sexo têm sofrido uma série de questionamentos, desde o enfrentamento dos estudos feministas aos papéis sexuais, o surgimento do "novo" homem que troca fraldas e expressa seus sentimentos; a possibilidade de escolha do próprio gênero; o movimento dos direitos dos homossexuais; o movimento transexual; até a revolta dos intersexuados (Gray,1995). Uma análise mais cuidadosa é capaz de destituir a visão de mundo binária, até chegarmos a compreensão de que sexo é um contínuo vasto, infinitamente maleável que desafia as limitações categóricas. Nos voltando mais uma vez para uma análise dos transexuais, percebemos que a cirurgia e o tratamento hormonal se propõem a minimizar a visibilidade de um sexo que não corresponda ao designado, mas, não soluciona o problema da ambigüidade do ponto de vista social (Machado, 2005). Os transexuais continuariam dentro do universo de gênero não inteligível, em desalinho com a coerência imposta pela matriz heterossexual. Os transexuais estariam na posição de resistência a uma classificação binária, exigindo um sistema que permita a polifonia, a reação mista (diferença na mesmidade, repulsão na atração) e a resistência na integração (Cohen, 2000). O transexual se apresentaria, então, como uma espécie de híbrido que perturba e desestrutura o pensamento binário e, com isso, nos leva conseqüentemente a uma reflexão sobre a arbitrariedade da constituição de uma normalidade. Normalidade que estaria constituída, pela diferença expressa na transexualidade, nos corpos transexuais; da matriz dominante, da heterossexualidade compulsória. Deste modo, o impensável seria reconhecido, estaria dentro da cultura dominante, mas de forma excludente, marginalizada ou patologizada (Butler, 2003). Mais uma vez, o corpo pode ser compreendido enquanto materialidade da sexualidade, ou seja, é sobre ele que se estabelecem os limites do possível e as projeções do desejável. Por conseguinte, o corpo se apresentaria enquanto base significante de condensação das subjetividades dos sujeitos, servindo como ponto de reconhecimento de si e dos outros; onde todas as relações seriam produzidas a partir da diferença. A saída para a heterossexualidade compulsória, a matriz discursiva dominante, assenta-se na sua própria constituição. Os repetidos atos de performance e a descontinuidade entre eles abririam espaço para as possibilidades de transgressão para a proliferação das mais diversas paródias em relação ao sexo, gênero, desejo, práticas sexuais, que constituem a coerência inteligível. Sabendo que da
6 6 mesma forma que as normatizações do sexo se consolidam, desestabilizam-se. Teríamos, a partir disso, corpos dinâmicos e instáveis que seriam o produto de uma fantasia, criatividade, ou mais especificamente, segundo Butler (2003), da liberdade. A partir dos sujeitos incoerentes, repensamos a idéia de sujeito com uma identidade fixa, coerente e contínua da modernidade e passamos a adotar outras formas de subjetividades que não aprisionem os sujeitos em uma identidade una e única, mas antes os abram para as possibilidades. A performatividade nos parece ser um conceito importante capaz de nos levar ao exercício da liberdade e/ou libertação, uma vez que a sua variabilidade traz consigo as várias identificações do eu operando performativamente na ordem da fantasia, realizando os mais diversos desejos. Desta forma, não acabando com a definição de sujeito, mas buscando uma nova possibilidade de definição, ou melhor, de uma não-definição, como uma instância aberta de significados. Para Le Breton (2003): A anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria prima a aperfeiçoar, a redefinir, a submeter ao design do momento. O corpo tornou-se, para muitos contemporâneos, uma representação provisória, um gadget, um lugar ideal para realização de efeitos especiais. Partindo da análise e questões levantadas por Le Breton, em seguida, apropriando-se delas de uma forma otimista, é possível perceber que os corpos sempre foram e são agora, ditos e feitos na cultura. Le Breton (2003), ao discorrer sobre a maleabilidade dos corpos, faz relação direta com as intervenções que o próprio sujeito impõe ao seu corpo; dando ao sujeito, a responsabilidade e a autoria pela sua definição ou redefinição corporal. Contudo, dentro das análises que já fizemos, torna-se impossível não lembrar que os corpos também são marcados pela relação com o outro. Ou seja, os corpos são nomeados e discriminados de acordo com as normas dominantes. Ademais, o certo é que, segundo Butler (2003), a anatomia não dita, nem põe mais limite algum, ao gênero. Se há um corpo biologicamente dado, há também a possibilidade de se construir socialmente esse corpo de acordo com o desejado e não com o natural biológico. Produzido de acordo com a vontade do sujeito, e não manipulado e definido, apenas, segundo uma matriz heterossexual dominante; embora as matrizes de significado ainda ponham rótulos (outros, abjetos, anormais) aos que subvertam a sua lógica de dominação. Corpo é fabricado. Porque os corpos são feitos, inventados, por tudo que se diz do sujeito, sobre o sujeito, para o sujeito, ao sujeito.
7 Referências Bibliográficas: 7 BUTLER, Judith (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York: Routledge.,(2003). Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. CALIFIA, Pat (1997). El don de Safo. El libro de la sexualidad lesbiana, Madrid: Talasa. HARAWAY, Donna (2004). "Gênero" para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos pagu, nº 22. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp. GRAY, Chris Hables (1993). The Culture of War Cyborgs: Technoscience, Gender and Postmodern War. In Research in Philosophy and Technology. Org. Joan Rothschild. Greenwich, CT: JAI Press. HUTCHEON, Linda (1991). Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz.Rio de Janeiro: Imago. KEHL, Maria Rita (1996). A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. Rio de Janeiro: Imago. LE BRETON, David (2003). Adeus ao Corpo.Antropologia e Sociedade.Campinas: Papirus. LOURO, Guacira Lopes (2003). Corpos que escapam. Labrys.Estudos Feministas, nº 4, agosto/dezembro. Brasília. MACHADO, Paula Sandrine (2005). O Sexo dos Anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu, nº 24, Campinas: Unicamp. PISCITELLI, A. G.. Comentário sobre a entrevista Tráfico Sexual. Cadernos Pagu, Campinas, v. 21, p , 2003.
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