Entrevista: o papel da escola na discussão sobre as relações étnicoraciais
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- Sabina Sacramento Fagundes
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1 Entrevista: o papel da escola na discussão sobre as relações étnicoraciais A Lei /08, que inclui no currículo oficial de todas as escolas públicas e particulares a obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura afrobrasileira, visando ressaltar a importância dessa cultura na história da formação do Brasil como forma de reparação ao tratamento de exclusão que os grupos dessa cultura sofreram, infelizmente não é cumprida em muitas escolas da rede de ensino. O livro "Nós" do Brasil, da jornalista especialista em relações étnico-raciais e mestranda em Antropologia Rosiane Rodrigues, traz uma abordagem pedagógica e lúdica, ao mesmo tempo científica, de como aplicar esses conteúdos dentro de sala de aula. Percebendo a existência de uma vasta literatura sobre o assunto mas que não era de fácil alcance para professores, alunos e demais pessoas interessadas na cultura afro-brasileira, impedindo o seu uso em sala de aula, Rosiane resolveu organizar a sua pesquisa sobre estes estudos que realizou e oferecer os complexos conceitos encontrados nela de forma aplicável nas escolas. "Eu primei não por traduzir mas por descrever esses conceitos de uma forma que fosse acessível às pessoas porque é uma bibliografia extremamente densa. 80% dela está na internet, porque como os professores muitas vezes precisam se aprofundar da temática para discutir com alunos, eu pensei nessa possibilidade de pegar autores que estivessem com seus artigos publicados na internet, nos sites de artigos acadêmicos, para facilitar o acesso a esses pesquisadores", disse. FOLHA DIRIGIDA - Como o "Nós" do Brasil aborda a Lei que torna obrigatório o estudo de história da África, dos africanos, dos negros e indígenas brasileiros nas escolas? Rosiane Rodrigues - O livro não trata exatamente dessa obrigatoriedade. A proposta é sistematizar conteúdos para a implementação da lei. Não adianta ficar dizendo que somos obrigados a cumprir a lei, porque isso é óbvio. Mas como é que se cumpre? Então, o livro "Nós" do Brasil é uma proposta de sistematização de conteúdos possíveis de serem aplicados em sala de aula. Mas ele não é só isso, é um livro de literatura para quem se interessa pelas
2 questões étnico-raciais brasileiras, e que não é iniciado nessa literatura acadêmica, nessa coisa densa que a academia se propõe a fazer. Para quem quer entender um pouco mais sobre mestiçagem, por exemplo, eu trago o Kabengele Munanga, que é um pesquisador altamente conceituado, presidente do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da USP. Então, não faço uma revisão da lei. Eu sistematizei conteúdos possíveis de serem aplicados a partir da legislação da educação para as relações étnico-raciais. Como vê a aplicação desta lei nas escolas? Ela está, efetivamente, sendo colocada em prática? Há grandes empecilhos da implementação da lei /03 e da lei /08, e isso tem sido apontado em pesquisas das universidades, como por exemplo, o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF (Nufep/UFF), do qual eu faço parte, que trabalha com projeto de intolerância religiosa e faz etnografias a partir da implementação do ensino religioso e da Lei /03. O que as pesquisas apontam é que a intolerância religiosa é um dos grandes entraves para a aplicação da lei. Todos nós nos acostumamos a pensar o continente africano de uma forma reduzida. Pensamos que a África é um país que só tem feiticeiro e que todo mundo lá faz macumba. Esses pesquisados se propuseram, já sabendo de que a intolerância religiosa existe não apenas em escolas confessionais, mas também em escolas públicas e particulares, a trabalhar as lendas dos orixás, porque é importante o conhecimento porque ele liberta. Mas a emenda sai pior do que o soneto. Não que não seja importante trabalhar a mitologia dos orixás, a cosmologia iorubá, bantu, desses troncos linguísticos principais que chegaram ao Brasil, mas isto é, de certa forma, reduzir o que é história da África. A África tem 54 países hoje, fala mais de idiomas, é o palco do primeiro genocídio reconhecido pela ONU, em Antes do exército alemão implementar a indústria da morte no holocausto, ele treina em uma etnia chamada hererós, quando é dividida a Namíbia da Angola. Que impacto acredita que o estudo da história da África e da influência que ela tem sobre nós pode trazer para a formação dos estudantes? Eu não sei qual é o impacto que tem, mas eu sei qual é o impacto que as
3 pessoas esperam. A historiografia e a produção acadêmica de certa forma reconhecem hoje que muito do conhecimento produzido teve uma função colonizatória. Roberto da Matta, que é um grande antropólogo brasileiro, diz que o antropólogo é o último funcionário a serviço da colonização. Depois que levaram as riquezas, ele vai lá e retira a alma do sujeito, ele estuda as relações dele. De certa forma estamos hoje no momento de trabalhar com o conceito do que são os estudos pós-coloniais, e o livro "Nós" do Brasil tem toda a parte teórica referenciada por dois teóricos que podemos considerar pós-coloniais, que é o Homi Bhabha e o Stuart Hall. Eu tive a preocupação de trabalhar com autores que produzem um conhecimento que liberta, porque é muito cruel chegar para uma criança que tem a pele preta e dizer a ela que os africanos são amaldiçoados, que as pessoas que têm a pele preta são amaldiçoadas porque são descendentes desses africanos. É muito duro dizer para uma criança indígena que o urucum que ela usa para pintar o corpo dela que é o excremento do capeta. É muito cruel lidar com essas situações. E é o que temos visto acontecer nas escolas. Não há como começar a segregar essas crianças, é preciso trabalhar a diferença como um conceito positivo. Fazer um exercício que não foi até hoje aprendido na escola, que é o exercício da alteridade, que não é se converter naquilo que o outro acredita, mas tentar compreender o mundo a partir dos olhos do outro. O livro trata de alguma forma a questão do preconceito contra negros e índios nas escolas? No "Nós" do Brasil não existe a palavra racismo, por exemplo. Falamos muito em preconceito. Eu trato a religião do ponto de vista antropológico, um sistema que serve para programar moralmente as pessoas. Então eu trato as religiões de uma forma de elas serem compreendidas como um sistema de código que pretendem ajustar as pessoas à sociedade. O "Nós" do Brasil não aborda religião, aborda uma política didático-pedagógica. Mas é óbvio que não se pode negar que abordar a questão indígena, abordar as questões africanas, e trabalhar com todo o processo de colonização cultural a que nós brasileiros fomos expostos durante 500 anos, é abordar que vivemos numa colônia católica. Não podemos deixar de abordar essas questões, não seria honesto fazer de conta que nós não somos frutos de um projeto de embrnaquecimento
4 que usou a religião cristã como forma de colonizar e civilizar os negros e doutrinar esse país. Acredita que as escolas, de maneira geral, têm dificuldade em lidar com a questão do preconceito racial? Há uma dificuldade de todos nós em lidarmos com a diferença. Precisamos assumir que temos muita dificuldade com isso, não só nas escolas. Isso é inato ao ser humano. Uma pessoa não tem problema com quem é igual a ela, e sim com quem é diferente, com quem tem hábitos que ela não consegue compreender e que desconhece. As escolas têm um papel fundamental para a formação dos cidadãos, fundamental na formação ética. Nós não mudaremos as próximas gerações se os professores, se os educadores, se as equipes técnicas-pedagógicas das escolas não estiverem preparadas para lidar com isso. Existem algumas dezenas de universidades que estão realizando trabalhos belíssimos de capacitação de professores em várias áreas a partir da legislação das relações étnicas-raciais, por meio de cursos de pós-graduação oferecidos a professores de escolas públicas, preferencialmente. A própria UFF faz a pós-graduação em História da África, mas esses trabalhos, que são lindos e frutos do esforço pessoal de alguns pesquisadores, não dão conta da demanda. O Rio de Janeiro tem a maior rede pública da América Latina, que lida com um exército de crianças e jovens, e esses professores precisam estar capacitados. Só a motivação pessoal do professor não vai fazer com que ele tenha condições de realizar um curso desse. Ainda há muita resistência às cotas nas universidades públicas, em especial para negros. Por que acredita que isto aconteça? Eu trabalho com alguns dados que no final do século XIX, já depois da Lei Áurea. Temos um grupo de pais que se dirigem à corte para pedirem que os seus filhos tenham uma escola, porque devido à descriminação, eles não conseguem fazer os primeiros estudos das letras. Esses pais são exescravizados. Vamos ter quase 20 anos depois da abolição algumas leis em algumas cidades que ainda impedem o acesso de crianças de cor nas escolas. Se pegarmos as universidades até a década de 90, não veremos negros e indígenas nessas universidades. O etnocídio é um conceito em que se mantém
5 vivo o corpo e retira-se a memória, a identidade, a possibilidade de rearranjo social e cultural. O escravo era uma coisa, mas tinha que estar vivo para produzir riquezas. A Segunda Guerra durou seis anos e dizimou milhões de judeus. Por conta disso a Alemanha foi obrigada a indenizar as famílias de todas as pessoas que foram vítimas do holocausto. No caso dos negros e dos descendentes de escravizados no Brasil, a África, a partir da escravidão, vai se decompondo, porque conforme vão sendo trazido os homens para serem escravizado, esses reinos vão perdendo em demografia, em força braçal, em força intelectual para poder manter a organização social dessas etnias. Quando chegam aqui eles são vítimas do que chamamos hoje como etnocídio. Então estamos falando de uma reparação que não é apenas histórica, é também fatalista. A pessoas dizem "eu sou contra", "eu sou a favor", às cotas. Eu não sou contra nem a favor. Eu sou uma pessoa que vê a cota racial nas universidade como uma ação necessária, pontual, muito pequena. E se sabemos que hoje a pobreza e a violência têm uma cor, que os presídios têm uma cor, não é à toa, isso não é algo que aconteceu por acaso, é um processo de formação de uma sociedade, que assina um documento que liberta os milhões de pessoas que eram forçadas a trabalhar e gerar riquezas e, no dia seguinte, elas não tinham para aonde ir. Em alusão ao título de seu livro, quais são, a ser ver, os nós do Brasil, principalmente no combate ao preconceito? Os "Nós", primeiro, somos todos nós. Nós que somos frutos de um país que passou os últimos 200 anos querendo embranquecer, querendo ser igual à Europa. Nós somos frutos de um país que tem muito mais tempo de vida com escravatura do que com democracia. "Nós" porque são nós mesmos essas coisas que precisamos desatar, para podermos pensar multiculturalmente, porque é inadmissível pensar o Brasil como um país monocultural. O terceiro "Nós" é porque o "Nós" do Brasil só é um livro possível porque eu tive uma equipe de pesquisadores junto comigo. Como são conteúdos muito variados e muito complexos, eu tive quatro pesquisadores especialistas em suas respectivas áreas. Para eu conseguir concatenar a bibliografia sobre os judeus, tanto em África quanto no Brasil, o Michel Gherma, que é historiador e antropólogo, me orientou para construir um texto isento de estigmas e
6 estereótipos. Não é possível falar de África e falar de Brasil sem pensar nos povos muçulmanos que chegaram aqui e nas grandes transformações que foram feitas em África. Então eu chamo o Sami Isbelle, que é um pesquisador do islã e da sociedade beneficente muçulmana. Quando eu falo de negritude, na verdade de política do embranquecimento, de como foi construído o pensamento acadêmico, eu chamo o Rolf de Souza, que é um antropólogo, que há 15 ou 20 anos faz o primeiro estudo sobre o homem negro no Brasil, vai pesquisar exatamente a violência cometida contra homens negros nas comunidades. E chamo ainda Vicente Cretton para trabalhar comigo a bibliografia referente aos povos indígenas. Eu também fui buscar quatro professores, para saber se isso tudo seria possível aplicar em sala de aula. Então eu tenho um professor de história pós-graduado em história da África e um ativista das questões das ações afirmativas, que é o Verton da Conceição. A Aline Sá, que é geógrafa, foi a pessoa que me ajudou a pensar a questão dos mapas e da referência geográfica. Trabalharam comigo também a Decione Penha, que é professora de Sociologia, uma mulher que está há uns 20 anos pesquisando o Carnaval e a cultura popular; e tive a Marina Alves, que é uma pessoa graduada em relações internacionais e que hoje trabalha com relações étnico-raciais. Então o "Nós" também são eles. Por Vinícius Corrêa, da Folha Dirigida
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