História Natural e a Cura Espontânea da Otite Média Crônica Supurativa - A Experiência da Groenlândia

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Transcrição:

História Natural e a Cura Espontânea da Otite Média Crônica Supurativa - A Experiência da Groenlândia Ramon Gordon Jensen A otite média (OM) é uma das infecções mais comuns da infância, e está associada a um peso econômico significativo nos países desenvolvidos 1. A doença é muitas vezes leve e pode ser resolvida sem qualquer tratamento ou complicações. No entanto, uma forma mais grave de OM é encontrada nos países em desenvolvimento e entre certas populações indígenas. A otite média crônica supurativa (OMCS) desenvolve-se predominantemente nos primeiros anos da infância, quando a infecção da orelha média leva a uma perfuração crônica da membrana timpânica (MT) com períodos recorrentes de otorréia que podem durar por toda a vida. Esta doença raramente é vista nos países desenvolvidos mas, entre a população inuit (esquimós) da Groenlândia, tem sido altamente prevalente durante décadas, sendo uma das doenças crônicas da infância mais frequentes 2,3. A OMCS pode levar a complicações fatais, mas na maioria dos casos o problema é a perda auditiva crônica estabelecida no momento crítico de aquisição da linguagem e no desenvolvimento do comportamento social. Pouco se sabe sobre os fatores determinantes da OMCS, sua história natural ou as consequências de longo prazo sobre a audição, na Groenlândia - ou em qualquer outra população no mundo. Estes dados epidemiológicos básicos são necessários a fim de se estimar o peso econômico da otite média e para auxiliar os formuladores de políticas de saúde, se esse transtorno essencialmente não fatal, mas incapacitante, deva ser priorizado em um contexto mais amplo. Entre os prestadores de cuidados primários de saúde o aumento do conhecimento dos fatores de risco da OMCS é importante para identificar as crianças que necessitam de intervenções especiais e permitir medidas preventivas. Um pouco da Groenlândia A Groenlândia ou Kalaallit Nunaat (Terra dos groenlandeses) (Figura 1) é uma ex-colônia dinamarquesa, mas agora um país autônomo dentro do Reino da Figura 1. Groenlândia Dinamarca. O groenlandês (kalaallisut) é a língua oficial desde 2009, mas o dinamarquês é amplamente utilizado em grandes cidades, no governo e na educação superior. As primeiras descrições, na Groenlândia, das doenças de ouvido que possam se assemelhar com a OMCS datam de 1889, quando o médico dinamarquês Kiær, do noroeste da Groenlândia, relatou que

286 XI Manual de OtOrrInOlarIngOlOgIa PedIátrIca da IaPO uma patologia, quase que constante, além de infecções do trato respiratório, era a otite média com uma evolução prolongada, muito além do estágio agudo 4. Desde os anos 50, os otologistas relataram altas frequências de OM, e os primeiros estudos epidemiológicos que confirmam as prevalências elevadas de OMCS são da década de 80 3. A partir de um série de estudos epidemiológicos realizados e mais recentemente em 2010-2011, chegou-se aos primeiros dados sobre o resultado em longo prazo da OMCS 5,6. População, economia e serviços de saúde A população total da Groenlândia é de 56.749 habitantes com 16.000 vivendo na capital Nuuk. Aproximadamente 90% são inuítes (Figura 2) ou de descendência mista e os restantes são predominantemente dinamarqueses. O estilo de vida ocidental predomina nas grandes cidades, enquanto que, nas cidades menores e nos assentamentos, o estilo é mais tradicional, dependendo Figura 2. Criança Inuit da Groenlândia principalmente da pesca comercial 7. O produto interno bruto (PIB) per capita na Groenlândia é alto e foi de US$ 24.356 em 2003, comparável ao da Dinamarca, que no mesmo ano, foi de US$ 31.465 per capita 8. No entanto, o PIB não mostra como a riqueza é distribuída em uma população. Anteriormente havia uma diferença grande entre as famílias de alta e de baixa renda na Groenlândia. Em 1993, a desigualdade econômica foi maior do que nos EUA, entretanto os números de 2009 mostram que a diferença de renda foi reduzida consideravelmente e é agora inferior a dos EUA, mas ainda maior do que na Dinamarca 7,9,10. O sistema de saúde na Groenlândia é obrigado a prestar cuidados de saúde grátis e iguais a todos os cidadãos, independentemente da distância geográfica. Por conseguinte as despesas de transporte de pacientes e funcionários são altas. O único especialista em ouvido nariz e garganta tem como base a cidade de Nuuk. A posição foi criada em 2005. A parte restante da população é visitada uma vez por ano por otologistas dinamarqueses e, a cada três anos, por um audiologista. A definição da OMCS Essa patologia é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma inflamação crônica da orelha média e da mastóide, com secreção através de uma perfuração crônica da MT. A duração da otorréia foi definida por um mínimo de 14 dias, enquanto a duração e tamanho da perfuração crônica da MT não foram definidos. Uma perfuração crônica da MT sem secreção evidente foi incluída nesta definição, uma vez que é considerada como sendo uma fase diferente da mesma doença, na qual a MT não cicatriza, deixando-a vulnerável a infecções recorrentes e causando perda de audição condutiva 11. A experiência entre os médicos que trabalham em áreas de alto risco, no entanto, é de que as crianças, muitas vezes, desenvolvem episódios recorrentes de otorréia entre períodos com perfurações secas 12. Estes períodos de otorréia podem variar de semanas a vários anos. Na Groenlândia, definimos a OMCS como uma perfuração da MT com duração maior que 3 meses e/ou otorréia com duração maior de 14 dias (Figuras 3 A e 3B).

XI Manual de OtOrrInOlarIngOlOgIa PedIátrIca da IaPO 287 Quais são os fatores de risco para OMCS? A razão pela qual algumas crianças desenvolvem episódios múltiplos de otite média aguda (OMA), as chamadas crianças com tendência a otites tem sido investigada em vários estudos 13,14. É evidente que a OM é uma doença multifatorial e a presença de um ou vários fatores aumenta o risco de aquisição da mesma. Estudos realizados na Groenlândia demonstraram que fatores genéticos, tais como a história da familiar e herança indígena, bem como fatores ambientais, tais como condições socioeconômicas, fumo passivo, e a permanência em creches são fatores de risco para o desenvolvimento da OMCS 2,5. Como esses fatores de risco são semelhantes aos encontrados para OMA, as ações tomadas para prevenir a OMA em uma população, provavelmente irão também reduzir a prevalência da OMCS. Em um estudo, verificamos que o nível de escolaridade da mãe e da sua história de OMCS foram fatores de risco para o desenvolvimento de OMCS entre seus filhos 5. O risco absoluto de desenvolvimento da OMCS em uma criança com uma mãe que teve tanto um histórico de OMCS quanto de baixa escolaridade foi de 45% para os meninos e 41% para as meninas. O nível de escolaridade da mãe e seu histórico de OMCS são indicadores de que uma mãe com baixo conhecimento em saúde tem um comportamento deficitário na busca dos serviços de saúde quando a criança tem otorréia. Em algumas famílias da Groenlândia a otorréia é tão comum que é vista como uma parte normal da infância e as mães não contatam o sistema de saúde se a criança está passando bem e não parece afetada pela saída da secreção auricular. Os fatores que podem identificar crianças com alto risco específico, como nível de escolaridade da mãe e a história materna de OMCS são valiosos para a criação de um perfil de risco para identificar crianças com tendência à OMCS (Figura 4). Um perfil de risco pode não só ajudar o prestador de cuidados de saúde no tratamento da doença, mas também facilitar estratégias de prevenção em Figura 4. Prestadores de cuidados de saúde na Groenlândia Figura 3A (esquerda) OMC supurada ativa com otorréia. Figura 3B (direita). OMC ativa, mas sêca, com perfuração nível individual. Os pais informados de que seu filho tem um risco particularmente elevado para desenvolver OMCS podem ficar mais motivados a assumir a responsabilidade pela gestão de medidas preventivas. Estas poderão ser, por exemplo, instruções sobre o uso correto de antibióticos tópicos e lavagens da orelha com uma seringa (toalete aural), em casa, combinado com aconselhamento da interrupção do tabagismo domiciliar

288 XI MANUAL DE OTORRINOLARINGOLOGIA PEDIÁTRICA DA IAPO dos pais. No entanto, o uso de medidas preventivas nos indivíduos não irá resolver a causa subjacente da doença, que poderá precisar de uma abordagem em um nível populacional. Aqui, são importantes os fatores de risco, tais como padrões de habitação, socioeconômicos e do nível educacional da população. Para os responsáveis pelas políticas públicas a importância da melhoria dessas áreas não se limita só à saúde, mas também no desenvolvimento geral da sociedade, e as mudanças desses fatores levam tempo. Mas, por exemplo, a identificação de creches como fator de risco para o desenvolvimento da OMCS poderia já ser alvo de intervenções específicas, podendo influenciar a prevalência da OMCS mais rapidamente. Poderiam fazer parte de tais intervenções a regulamentações sobre o número de filhos morando baixo a um mesmo teto, por metro quadrado, os cursos de higiene ou de toalete aural e as orientações quanto à otorréia em creches. História natural e dinâmica da OMCS Apesar de ser a forma mais grave da OM, acometendo um grande número de crianças nos países em desenvolvimento, os fatores epidemiológicos básicos como a história natural da OMCS e os resultado em longo prazo são virtualmente desconhecidos. Um relatório da OMS sobre OMCS em 2004 menciona: O resultado final da perfuração timpânica não está amplamente documentado 12. Sabe-se que a OMCS pode curar-se espontaneamente enquanto que, em alguns casos, a otorréia continua a ser quase constante desde a primeira infância até a vida adulta. No entanto a OMCS normalmente persiste até a idade adulta 12,15. Um estudo com acompanhamento prolongado, na Groenlândia, verificou que mais de 1/3 de todas as crianças com OMCS teve cura espontânea, sem intervenção cirúrgica 6. Estudos transversais mostraram que uma em cada 10 crianças apresentava OMCS, porém com o seguimento, foi observado que ao redor de uma em cada cinco crianças já havia sido acometida pela OMCS, em algum momento da infância. Como ilustrado na Figura 5, a natureza da OMCS é dinâmica e os estudos transversais precisam de acompanhamento a fim de estimar o número de crianças acometidas pela doença da infância (o risco cumulativo). Sem o acompanhamento, o impacto da OMCS na população será subestimada. A idade na qual a OMCS foi diagnosticada não tem qualquer influência sobre a taxa de cura, e crianças com idade de até oito anos curaram-se espontaneamente. Os tipos mais comuns de lesões cicatriciais nas MT curadas espontaneamente foram a atelectasia e a timpanoesclerose. Figura 5. Cinco evoluções possíveis, A-E, de perfurações crônicas (>3 meses de duração) desde o nascimento até o acompanhamento. MT: membrana timpânica MT Normal MT Perfurada MT Cicatrizada Nascimento Estudo inicial Estudo de acompanhamento

XI Manual de OtOrrInOlarIngOlOgIa PedIátrIca da IaPO 289 Evolução A & B: a MT perfurada já existe antes do início do estudo. Na evolução A a perfuração persiste com o acompanhamento enquanto que, na evolução B, ocorre a cura espontânea após o início do estudo. Com base no número de indivíduos na evolução A ou B, pode ser estimada a taxa de cura espontânea de uma coorte de crianças. Evolução C: a MT perfura após o início do estudo e persiste no acompanhamento. Esta evolução acrescenta novos casos de OMCS em um estudo de coorte, com o início da pesquisa realizada com crianças de baixa idade, onde algumas têm grande possibilidade de desenvolver OMCS posteriormente. Evolução D: a MT tanto está perfurada, quanto curada, antes do início do estudo, e está aqui registrada como uma MT íntegra. Posteriormente, ocorre uma nova perfuração antes do acompanhamento, e erroneamente aparece como uma ocorrência tardia de OMCS.Evolução E: tanto a perfuração como a cura ocorre antes do início do estudo, mas aqui não há uma perfuração nova antes do acompanhamento. Perspectivas e considerações finais Os achados de uma taxa alta de cura espontânea da OMCS devem ser considerados na seleção de crianças mais jovens para cirurgia em países em desenvolvimento, com capacidade cirúrgica limitada. Deve-se também encorajar o esforço da condução da OMCS com tratamento clínico e higiene da orelha acometida (toalete aural). O conhecimento do histórico de OMCS na mãe, bem como seu nível de escolaridade como fatores de risco importantes para o desenvolvimento da OMCS poderiam ser usados nos cuidados primários à saúde no intuito de selecionar crianças com potencial alto para o tratamento com antibióticos e acompanhamento. Isto deveria ser integrado para o desenvolvimento de diretrizes nacionais para o tratamento da OMCS na Groenlândia. Estudos que estimam a ocorrência de OMCS em uma população devem estar voltados para a realização de acompanhamento para a estimativa do número total de indivíduos acometidos na infância. Se o acompanhamento for muito dispendioso, as alterações da MT deveriam ser registradas, em especial, a ocorrência de atelectasia da MT, pois esta pode dar uma estimativa do número de crianças acometidas por perfurações de longa duração. As estimativas populacionais utilizadas para avaliar o impacto global da OMCS baseiam-se na premissa de que a OMCS é uma doença estática. Isso subestima o número de indivíduos que foram afetadas pela OMCS e a consequente perda auditiva na infância. Referências bibliográficas 1. Freid VM, Makuc DM, Rooks RN. Ambulatory health care visits by children: principal diagnosis and place of visit. Vital Health Stat 13 1998 May;(137):1-23. 2. Koch A, Homoe P, Pipper C, Hjuler T, Melbye M. Chronic suppurative otitis media in a birth cohort of children in Greenland: population-based study of incidence and risk factors. Pediatr Infect Dis J 2011 January;30(1):25-9. 3. Homoe P. Otitis media in Greenland. Studies on historical, epidemiological, microbiological, and immunological aspects. Int J Circumpolar Health 2001;60 Suppl 2:1-54.

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