Apresentação de. O PODER NAS RELAÇÕES CONJUGAIS: Uma Investigação Fenomenológica sobre as Relações de Poder no Casamento 1

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Transcrição:

Apresentação de O PODER NAS RELAÇÕES CONJUGAIS: Uma Investigação Fenomenológica sobre as Relações de Poder no Casamento 1 de ÁLVARO REBOUÇAS FERNANDES 2 Como é vivenciado o poder entre homens e mulheres no casamento? De que forma o poder é exercido por cada cônjuge em suas relações cotidianas? São estas as perguntas fundamentais que Álvaro Rebouças Fernandes lança para buscar compreender o curioso fenômeno das trocas e das negociações que constituem o jogo de poder no casamento. Defendida em 2005, por mim orientada, e, agora, em 2010, publicada pela Editora Annablume a partir da dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza UNIFOR, nesta obra, de início, Álvaro Rebouças Fernandes contextualiza os três enfoques de sua pesquisa, fundamentada nas concepções de poder de Marx, de Weber e, principalmente, de Foucault. Como Marx, considera o poder como uma construção social, econômica e política, que interfere nas micro-relações cotidianas do casal; a partir de Weber, o autor discute as vivências subjetivas de homens e mulheres como construção sociocultural engendrada pelas várias formas de poder; e, baseado em Foucault, analisa o casamento e a família como lugares privilegiados de interação e de construção de relacionamentos, nos quais o poder perpassa os discursos e as ações, diariamente, como acontecimentos político-estratégicos das interações dos casais. Assim, no primeiro capítulo, o autor discute as relações entre poder, gênero e casamento. A princípio, caracteriza os diversos tipos de poder, diferenciando o poder-sobre e o poderde, bem como autoridade e coerção, e discutindo as relações de poder, a dominação masculina e os poderes individual, disciplinar e econômico. Em seguida, no segundo capítulo, caracteriza os participantes dos jogos de poder no casamento ao longo da história: pré-história; idades antiga, média e moderna; e contemporaneidade. No terceiro capítulo, analisa o casamento e a família ocidentais no contexto institucional das negociações de poder. Álvaro Rebouças Fernandes, então, discute o casamento como ato religioso, jurídico e sociocultural, considerando-o, também, como uma negociação político-econômica. Da mesma forma, analisa os sistemas familiares, a comunicação 1 Fernandes, Álvaro Rebouças (2009). O Poder nas Relações Conjugais: Uma Investigação Fenomenológica sobre as Relações de Poder no Casamento. São Paulo: Annablume. 278 f. 2 Graduado (1997) e licenciado (2003) em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2005). Psicólogo clínico com ênfase em psicoterapia, acompanhamento, tratamento e prevenção psicológica de casais e de famílias.

sistêmica e seus acordos e regras no casamento. Consequentemente, o autor trata da difícil definição atual do grupo familiar, dada a sua diversidade de manifestações, abordando suas funções sociais, bem como suas regras, seus mitos e papeis socioculturais, sempre na perspectiva do poder. Neste sentido, considera e discute a família como uma instituição jurídica, religiosa e sociocultural. O valor da pesquisa de Álvaro Rebouças Fernandes se confirma na medida em que descreve a aplicação do método fenomenológico a uma investigação das relações de poder no casamento, o que lhe permitiu colher, descrever e discutir as vivências de seis casais acerca das negociações em áreas importantes de sua interação conjugal, como o seu relacionamento afetivo-sexual, a paternidade e a maternidade, e a administração financeira do lar. As entrevistas revelaram que os cônjuges desenvolvem muitas e diversificadas estratégias de poder em suas negociações, que constituem jogos políticos de avanços e de recuos, nos quais são firmados acordos, alianças, projetos, coalizões e conflitos, cotidianamente vividos em suas vários áreas de interação. Neste sentido, os participantes da pesquisa demonstraram que as relações de poder são vividas em perspectivas diferenciadas, pois são percebidas e exercidas a partir de construções distintas, conforme o gênero e a subjetividade de cada cônjuge. Os depoimentos dos entrevistados sobre suas interações cotidianas geraram quatro tipologias nativas (relacionamento afetivo; relacionamento sexual; paternidade e maternidade; administração financeira) e dezoito tipologias analíticas (o encontro e a união conjugal; o entrosamento; complementaridade; negociações afetivas; gravidez e relações sexuais; mudanças; rotina; união e reciprocidade; gravidez, paternidade e maternidade; controlando os filhos; desejo de ser pai; presença paterna e materna; paternidade e maternidade após o divórcio; apego aos filhos; provisão da família; pagamento de contas; planejamento financeiro e projetos futuros; cooperação financeira), que favoreceram importantes conclusões sobre as vivências de poder dos casais, em suas negociações conjugais. A pesquisa revelou que as negociações entre eles começam ainda no namoro e se intensificam com o casamento, em decorrência do conhecimento mútuo adquirido em sua interação conjugal, construída durante o desenvolvimento do ciclo vital da família. Em sua pesquisa, Álvaro Rebouças Fernandes adota uma perspectiva que considera as manifestações da subjetividade masculina e feminina como expressões dos diversos papéis conjugais de homens e mulheres, buscando compreender como se revela a multiplicidade de suas vivências. Para tanto, assumiu uma perspectiva teórica baseada na concepção de poder de Foucault, ou seja, como ocorrência política, mutável

e dinâmica, que é efetivada nas relações socioculturais, familiares e de gênero por meio de diversas negociações conjugais, sem, no entanto, se concentrar num detentor exclusivo. As negociações referentes aos relacionamentos afetivo-sexuais dos casais demonstram que as expressões da individualidade e os modos como os cônjuges conduzem seus relacionamentos são baseados não apenas no conhecimento de si mesmos e do outro, mas, também, dos limites de ambos. As ações empregadas são compreendidas como estratégias utilizadas no jogo relacional do casal, no qual os conflitos e os acordos se tornam expressões das negociações específicas de cada vinculação matrimonial. Ao mesmo tempo em que as negociações revelam a ocorrência de um jogo de poder desenvolvido pelos cônjuges no casamento, também denunciam as particularidades que marcam cada união e cada pessoa, com sua própria subjetividade, diferenciadas pelas características do gênero a que pertencem. Neste sentido, as negociações, concebidas como encaixes entre os cônjuges, são realizadas a partir de acordos que visam ao entendimento da perspectiva do outro, à coesão conjugal ou aos conflitos que definem o embate de forças levado a efeito por marido e mulher no casamento, proporcionando o reconhecimento das diferenças inerentes a cada cônjuge e a complementaridade recíproca necessária à efetivação da aliança afetivo-sexual como política de relacionamento. Desta forma, as diferentes compreensões dos cônjuges, segundo Farrell, ocorrem devido à natureza e à diferença entre as fantasias primárias masculinas e femininas, que permeiam seus desejos e expectativas sobre o casamento, revelando uma difícil negociação matrimonial, já que as fantasias masculinas almejam, com frequência, a realização sexual, enquanto as femininas buscam a segurança que a realização matrimonial e familiar pode proporcionar à mulher. No entanto, a concepção de Farrell é, no mínimo, considerada discutível por Álvaro Rebouças Fernandes, uma vez que estabelece parâmetros rígidos e padronizados, marcadamente influenciados pela cultura patriarcal no que se refere à realização das fantasias masculinas e femininas, que, atualmente, são percebidas como formas de expressão da subjetividade de homens e de mulheres que vêm sendo questionadas e revistas por ambos os gêneros nas relações sociais, familiares e conjugais. A negociação nos relacionamentos afetivo-sexuais se baseia, também, em valores preconcebidos provenientes da cultura da família de origem de cada cônjuge, que definem, de acordo com Andolfi et al., papéis, missões e delegações nas famílias constituídas. Tais influências tornam as negociações ligadas ao relacionamento afetivo-

sexual do casal uma busca incessante de ajustes, em acordos nos quais marido e mulher, constantemente, aceitam ou recusam as propostas do outro, e tornam, portanto, a transação um recurso adequado ao exercício do seu poder no casamento. Assim, as micro-relações de poder, de que trata Foucault, se desenvolvem no relacionamento afetivo-sexual conjugal como jogos políticos de ajustamento às diferenças da subjetividade pessoal, do gênero e da família de origem de cada cônjuge. Por meio de tais jogos, são utilizadas diversas estratégias que geram, segundo Ângelo, acordos e conflitos, a continuidade da relação ou o seu rompimento devido à satisfação ou ao descontentamento de um ou ambos os cônjuges com o vínculo afetivo-sexual. A segunda tipologia nativa, que se refere ao relacionamento sexual no casamento, revelou que, assim como a afetividade, o sexo é um foco das intensas negociações de poder que permeiam a convivência matrimonial, envolvendo mudanças físicas e psicológicas que ocorrem no desenvolvimento do casal e nas várias etapas do ciclo vital da família. Tais mudanças acontecem devido ao nascimento dos filhos, à rotina empreendida pelas atividades profissionais, familiares e conjugais do casal, e, principalmente, aos seus conflitos e divergências, que podem gerar intimidade, conhecimento mútuo de seus limites, complementaridades e pontos de cumplicidade. Em contrapartida, também podem gerar rejeição, retaliação e agressão, revelando a ocorrência de acordos e de desacordos que possibilitam o enlace afetivo-sexual e fundamentam a aliança conjugal, ou o seu rompimento, caracterizando a insatisfação com a parceria. Desta forma, devido à grande diversidade de estratégias empregadas no jogo político de negociações nos seus relacionamentos, os casais revêem, constantemente, sua aliança conjugal a fim de estabelecer acordos afetivo-sexuais que forneçam segurança, prazer, intimidade e reciprocidade a cada cônjuge, revelando uma regulação homeostática do poder, por meio da qual buscam o equilíbrio das fantasias, dos anseios e dos desejos de marido e mulher no casamento. Por conseguinte, Álvaro Rebouças Fernandes concebe que o relacionamento afetivo-sexual no casamento é construído por meio de trocas constantes, que exigem frequentes realinhamentos e ajustamentos à realidade individual e conjugal dos envolvidos, pois as distintas subjetividades masculina e feminina podem transformar as vivências afetivo-sexuais tanto em fonte de prazer e de confirmação de suas individualidades, quanto em dominação pessoal de um dos cônjuges, o que pode produzir sofrimento, desgaste e insatisfação, que minam, progressivamente, a união matrimonial. Portanto, o relacionamento sexual dos casais pressupõe a atração física e afetiva mútua, que se

torna canal de comunicação e de avaliação da qualidade da interação afetivo-sexual e da possível satisfação dos cônjuges com seu casamento. A terceira tipologia nativa versa sobre a paternidade e a maternidade como importantes funções nas negociações de poder durante o desenvolvimento do vínculo conjugal, no que se refere à gravidez, ao controle dos filhos, ao desejo dos cônjuges de se tornarem pais e mães, às presenças paterna e materna, ao divórcio e ao apego aos filhos. Tais papéis parentais se desenvolvem a partir do nascimento dos filhos e transformam o casal de apenas marido e mulher em pai e mãe, suscitando, segundo Moreno, em alguns casos, a supervalorização das atribuições familiares em detrimento das conjugais. Por conseguinte, as vivências dos papéis parentais envolvem o desenvolvimento das relações com os filhos, que, também, são estabelecidas por meio de estratégias, como o cuidado e a atenção, o que permite à prole ter suas atitudes aprovadas ou não pelos pais, que ensinam aos filhos as regras familiares e socioculturais, além de manterem o controle sobre suas atividades e seus horários, bem como os estimulando a reproduzir os modelos parentais de masculinidade e de feminilidade em seus futuros papéis conjugais e familiares. O jogo de poder entre os casais torna evidente que o desejo de assumir os papéis de pai e de mãe requer a escolha e a aceitação de tal condição, gerando uma possível vivência satisfatória dos papéis parentais e uma conseqüente afirmação da aliança conjugal. Entretanto, por outro lado, pode gerar rejeição e ressentimento por conta da inesperada gravidez, o que leva o casal a renegociar seu acordo matrimonial e suas prioridades individuais e familiares a fim de rever suas metas e expectativas sobre o casamento, podendo, assim, passar a outra etapa do ciclo de vida da família. Neste sentido, a presença dos pais é de fundamental importância na relação com os filhos, que podem perceber nos genitores modelos valiosos para a construção e a compreensão de sua própria subjetividade masculina ou feminina. Contudo, a necessidade de prover a família com os recursos necessários à sua subsistência torna difícil a presença paterna e, em alguns casos, a materna, pois os pais, preocupados com suas carreiras profissionais e com a manutenção da família, investem, algumas vezes intensamente, na conquista dos recursos externos, tornando-se ausentes da relação com seus filhos. Mas o jogo político e diplomático paternal com os filhos fica mais intenso e complexo quando se trata de filhos resultantes da separação de uma família anterior. Neste caso, as negociações entre os antigos cônjuges e seus filhos podem progredir para a integração e a aproximação das famílias ampliadas ou constituir conflitos territoriais, prolongando por anos os embates pelo poder entre a antiga família e a atual. Neste contexto, os pais,

mas, principalmente as mães, buscam manter a coesão familiar por meio da simbiose com os filhos, utilizando o apego como estratégia de contenção e de proteção deles contra o receio de desagregação familiar e da perda da condição de pais. Assim, a relação de poder empreendida pelos casais entrevistados, como afirmam Carter e McGoldrick, sofre uma série de mudanças que deve ser minuciosamente negociada por eles durante o ciclo vital da família e na vivência da paternidade e da maternidade. A quarta tipologia nativa discute a administração financeira dos recursos dos casais pesquisados, demonstrando que o jogo de poder, prioritariamente, se materializa na provisão e na administração da economia familiar, pois promovem, segundo Astrachan, a divisão das tarefas domésticas e das responsabilidades financeiras do casal conforme o gênero, produzindo muitos benefícios para os cônjuges, como a participação no sustento da família, que assume um sentido de utilidade conferido pelo envolvimento nas decisões financeiras da família, na satisfação das necessidades individuais dos cônjuges e da família, além da cooperação, que favorece a política relacional dos casais como estratégias de valorização pessoal e familiar. Para Álvaro Rebouças Fernandes, as parcerias financeiras no casamento ocorrem mais equilibradamente nas uniões em que os cônjuges assumem, cada um, suas próprias carreiras profissionais e suas respectivas fontes de renda, pois, em tais casos, ao terem participações equivalentes nas decisões financeiras, têm meios de negociar mais igualitariamente a distribuição dos recursos financeiros da família. Porém, nas famílias que adotam papéis tradicionais, marcadamente influenciados pela ideologia patriarcal, ou seja, em que a provisão é proporcionada apenas por um dos cônjuges quase sempre, o marido - a distribuição das tarefas domésticas e das responsabilidades financeiras confere, como bem destacam Pateman e Saffioti, ao homem, a maioria das decisões sobre a economia da família, restando à mulher as incumbências ligadas à administração dos recursos financeiros e à criação dos filhos como sua contribuição ao casamento e à família. Tal distribuição assimétrica dispõe a supervalorização das atividades profissionais, social e culturalmente consideradas masculinas, bem como a desvalorização das tarefas domésticas, geralmente atribuídas às mulheres, que apenas relativamente compensam tal assimetria na distribuição dos papéis e das responsabilidades financeiras com o desenvolvimento do companheirismo e do respeito à individualidade e às peculiaridades das mulheres, mas, principalmente, com a compreensão das marcantes diferenças de percepção de cada gênero no casamento. Neste sentido, a cooperação pode constituir uma importante estratégia política empregada pelos cônjuges para equilibrar a distribuição do poder nas relações

conjugais por meio da reunião de esforços em prol de uma meta a ser atingida pela família, e, também, a melhor forma de adquirir e de acumular rapidamente riquezas patrimoniais. Desta maneira, a cooperação financeira funciona como meio de equilíbrio do poder no casamento, favorecendo, a partir de seu exercício, segundo Foucault, a sua posse apenas relativa e temporária nas relações familiares, o que, por conseguinte, impede a aglutinação do poder em um único cônjuge. Deste modo, no que se refere à administração dos recursos financeiros nas negociações dos casais, são geradas vivências de dependência e de impotência quando a relação é assimétrica, baseada na distribuição patriarcal de funções familiares, na qual os recursos financeiros são conquistados apenas por um dos parceiros, mas, por outro lado, de independência e de poder quando a família conta com duas fontes de rendimento, provenientes de ambas as carreiras profissionais dos cônjuges, tornando viável a aliança conjugal, a escuta do outro e o compartilhamento das distintas formas de compreensão da subjetividade de homens e de mulheres no casamento. Portanto, Álvaro Rebouças Fernandes conclui que, nas dinâmicas conjugais dos entrevistados, maridos e mulheres significam e exercem seu poder de formas diversas e distintas, marcadamente influenciadas pela cultura, pelo gênero e por papéis ainda impostos pelo sistema patriarcal, embora mesclados com novas concepções de igualdade, geradas pelas recentes mudanças ocorridas nas relações entre os gêneros. Assim, constata que o poder é exercido nas relações conjugais a partir dos discursos, das atitudes e das escolhas dos casais, invadindo os muitos aspectos das suas interações e assumindo múltiplas facetas, não somente de dominação e de conflito com o outro, mas, também, de consenso, de cumplicidade, de afinidade, de reciprocidade e de cooperação. Por meio de suas negociações afetivo-sexuais, financeiras e parentais, homens e mulheres, no casamento, vêm tentando equilibrar, em suas relações cotidianas de poder, os laços que vêm construindo na sua vida a dois. Mais uma vez, parabéns, Álvaro!