1 A EXPERIÊNCIA DE MATERNIDADE DIANTE DA HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL. Rafaela Tardivo Pazian Olga Ceciliato Mattioli Resumo: A hospitalização de uma criança significa um momento de sofrimento permeado por sentimentos de medo, ansiedade e até depressão. Essa experiência é acompanhada de perto por sua família, em especial a mãe. Essa é cobrada mais intensamente, pela equipe médica e enfermeiros, por uma disponibilidade incondicional de cuidados sobre o filho, além de ter que se manter emocionalmente sadia para contribuir com a recuperação da criança, a despeito de todo sofrimento e angústia por ela sentidos. O trabalho apresentado se propõe a pensar o adoecimento infantil, com conseqüente hospitalização, aos olhos da figura materna, enfocando os sentimentos despertados, as estratégias de enfretamento e o significado do seu papel nesse contexto. Este trabalho refere-se a uma pesquisa a ser apresentada como dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP de Assis-SP. Sua construção se apóia no referencial psicanalítico, enquanto método de investigação. As análises serão guiadas pelos conceitos de transferência, contratransferência e interpretação, permitindo-nos compreender o conteúdo manifesto e latente da fala verbal e não-verbal de cada mãe, aproximando-nos de suas angústias e do seu psiquismo. Delimitamos as mães que participarão do estudo a partir da idade de suas crianças, que devem ter até dois anos. Essa escolha justifica-se porque a criança pequena encontra-se ainda mais dependente dos cuidados maternos. O local para a coleta de dados é a Santa Casa de Misericórdia de Assis-SP. Utilizaremos como instrumento de coleta de dados a entrevista semi-dirigida a um grupo de mães acompanhantes de suas crianças e a observação na enfermaria infantil. Embora o trabalho não esteja ainda concluído, as entrevistas já realizadas demonstram a ruptura provocada pela hospitalização na vida diária dessas mães, com os outros filhos, família e trabalho. A mãe vivencia essa experiência com culpa e identifica-se com seu filho, desejando poder substituí-lo nessa experiência. As intervenções médicas são sentidas como invasivas por essa figura. Para algumas o hospital é visto como um lugar de falta de liberdade e anulação da sua identidade. Outras, no entanto, conseguem reconhecer além desse significado, um sentido de possibilidade de manutenção da vida nesse espaço. Mais do que poder dar voz a essas mães, tendo a escuta como uma forma de acolhimento, este trabalho pretende ser também uma possibilidade de compreensão crítica do papel materno que se faz nesses espaços e na sociedade atual, de modo a desmistificar o amor materno incondicional. Psicóloga e mestranda do curso de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus Assis-SP. Contato: rafapazian@yahoo.com.br Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus Assis-SP, orientadora da pesquisa. Contato: olgamattioli@uol.com.br
2 A hospitalização de uma criança representa uma experiência de dor, sofrimento, ansiedade e insegurança. A ruptura que provoca no seu desenvolvimento, o afastamento do lar, familiares e escola pode se configurar como uma experiência traumatizante para ela. Essas crianças são acompanhadas por suas mães, que vivenciam também a experiência de hospitalização e tudo o que essa mobiliza. Levantamento bibliográfico e atividades desenvolvidas pessoalmente e num momento anterior junto a crianças hospitalizadas, permitiram-nos constatar o sofrimento psíquico enfrentado por mães que necessitam submeter seus filhos a intervenções hospitalares. Essas mães temem a perda do filho e sentem-se despossuídas do saber sobre ele, sendo esse saber relegado à equipe médica. Apesar disso, são cobradas por uma disponibilidade incondicional de cuidados sobre suas crianças e por um equilíbrio emocional que contribua com o restabelecimento da saúde infantil. Frente a essa confrontação, a dúvida que nos permeia é a de como as mães podem contribuir para o enfrentamento da hospitalização se também elas sentem-se angustiadas e temerosas frente a essa experiência. O que poderia ser um fator de auxílio e continência para elas? O objetivo do trabalho que aqui se apresenta é investigar os sentimentos que o adoecimento infantil, com conseqüente hospitalização, desperta na mãe, como ela se sente na sua função materna no contexto hospitalar e quais os recursos e estratégias de que ela se utiliza para enfrentar essa experiência. Esse trabalho, além do mais, pretende ser uma possibilidade outra de compreensão do significado do amor materno que se faz nesses espaços, de modo a desmistificar seu sentido de incondicional. Para percorrermos o caminho de aproximação do psiquismo dessas mulheres, compreendendo a maneira como o inconsciente delas opera no espaço hospitalar, nos utilizaremos da psicanálise enquanto método de investigação. Através de seus
3 conceitos-chave de transferência, contratransferência e interpretação, a psicanálise se coloca como uma possibilidade metodológica bastante pertinente ao nosso objeto de estudo. A pesquisa é desenvolvida na Santa Casa de Misericórdia do município de Assis-SP, tendo como participantes da mesma, mães que estejam acompanhando a internação de seus filhos com a idade de até dois anos. O período de internação ou a gravidade da doença não são tomados como critério de seleção das participantes, uma vez que a instituição escolhida não é considerada de referência, recebendo os mais variados tipos de doenças e tendo como tempo médio de internação de dois a cinco dias. Essas mães são também internadas junto a seus filhos, podendo receber a visita de familiares, marido e outros filhos somente em horários especificados. Como instrumentos para a coleta de dados, nos utilizamos da entrevista psicológica (Bleger, 1989) semi-dirigida e individual a um grupo de mães, além da observação da pediatria infantil, com o intuito de enriquecer a pesquisa com dados a respeito das relações estabelecidas por cada mãe com seus filhos, outras mães, enfermeiros e médicos. Partimos do pressuposto de que a função materna é uma construção social. Assim, para a apreensão dos seus aspectos emocionais precisamos, antes disso, conhecer as variáveis históricas que permitiram tomar a mulher como a responsável pelos cuidados infantis, tendo a maternidade como uma dádiva e o seu amor como incondicional. Antes do amor materno, fez-se necessária a construção de um entendimento sobre a infância, de maneira que a criança fosse reconhecida nas suas particularidades, distinguindo-se dos adultos. Até então as crianças eram tratadas como adultos em
4 miniatura e sem qualquer reconhecimento, poderiam ser facilmente abandonadas ou entregues a amas-de-leite, o que, na maioria das vezes, não impedia sua morte. No século XVIII, a infância ganhou proeminência e um sentimento de amor e dedicação a ela teve de ser reforçado. As mulheres tiveram de ser ensinadas sobre a maternidade, sendo o papel de ensiná-las por tal função destinado à medicina higiênica. Os médicos adentraram as famílias, desqualificando os saberes que possuíam para ensinar-lhes o saber científico de que somente a medicina detinha. As mães foram orientadas, sobretudo, a respeito da importância da amamentação, que se revestiu de um sentido de beleza sublime e demonstração de amor. Não amar os próprios filhos tornouse um crime moral, a partir desse momento. O Estado também tinha interesses nisso, uma vez que sendo os filhos criados no próprio lar com a ajuda da medicina higiênica, não mais ficaria encarregado do cuidado das crianças órfãs, tampouco se preocuparia com os índices de mortalidade infantil e, ainda, as crianças representariam uma fonte econômica para seu país. No século XX, o mito do amor materno se defronta com a impossibilidade de dedicação integral aos filhos, visto que as mulheres passaram a envolver-se com outros afazeres além dos da esfera doméstica. Sendo a psicologia infantil e a sua importância para o desenvolvimento adulto sadio reconhecidos, as mulheres passaram a ser ainda mais cobradas para o cumprimento de uma função perfeita. As ambivalências de sentimentos pelos filhos são vividas com culpa, refletindo-se, muitas vezes, numa dificuldade em colocar limites. As mães acreditam só poder educar seus filhos com o auxílio de saberes científicos, tais como os médicos, psicológicos, judiciários ou pedagógicos. É nesse cenário que as mães, sujeitos dessa pesquisa, se encontram. Levam para dentro do hospital todo esse imaginário social, deparando-se nesse outro espaço
5 com cobranças médicas, com a doença do filho, com dores, sofrimentos, afastamento do lar, intervenções e procedimentos, enfim, toda uma rotina hospitalar e uma fantasia sobre o que é ser mãe, permeando-as e influenciando-as. No entanto, cada mãe enfrenta essa experiência de acordo com suas vivências anteriores, com suas crenças, seus desejos sobre a maternidade, modificando-se também nesse encontro com a internação do próprio filho. De acordo com Winnicott (1978), algo como um bebê não existe, só podendo se falar em um bebê em relação a uma mãe e vice-versa. Considera que o desenvolvimento infantil não se faz somente em uma relação na qual amor e ódio são reconhecidos, mas na qual cuidados ambientais são também importantes. Acredita que na relação com uma mãe suficientemente boa, a criança pode desenvolver um self, ou seja, uma identidade, uma forma especial de explorar o mundo, uma forma que é, antes de tudo, espontânea e criativa. O self pode ser entendido como um devir, uma continuidade no desenvolvimento. A hospitalização, nesse sentido, representa uma ruptura na continuidade do self da criança, e a mãe, estando também sujeita a uma ambiente invasivo, nem sempre consegue se colocar como o holding necessário ao seu filho. Para conseguir isso, ela precisa encontrar segurança no ambiente que a circunda, na equipe médica e na sua família. Algumas entrevistas já realizadas nos permitem tecer algumas considerações, ainda que não de forma conclusiva. Essas mães vivenciam o adoecimento e a hospitalização de seus filhos com culpa, questionando-se e revendo posturas na forma de educar seus filhos. Responsabilizam-se pela ocorrência da doença, desejando tomar o lugar dos filhos em cada procedimento médico, aplicação de medicamentos ou soro. A identificação é tão forte que uma agulha introduzida em seu filho, é uma agulha que se introduz nelas mesmas. Algumas estabelecem uma relação fortemente ambivalente com
6 a instituição. Assim, para algumas o hospital é visto de modo imparcial, ora reconhecendo-o apenas como algo invasivo e produtor de dor, ora como lugar de cura e saúde. Outras, no entanto, conseguem estabelecer uma relação com o hospital que o contemple de forma total, reconhecendo seus atributos positivos e negativos. Da mesma maneira, estabelece-se a relação com as enfermeiras. Para as participantes da pesquisa, ser mãe no hospital requer cuidados em dobro e somente a cura dos filhos pode recuperá-las da dor que as acomete nesse momento. Ainda que a pesquisa esteja apenas no seu início, podemos afirmar e sustentar a importância da mesma. O entendimento sobre o papel materno no contexto hospitalar coloca-se como fortemente atual. Além disso, acreditamos que aproximar-se dessas mães e de suas vivências é um modo de contribuir para que relações mais humanas sejam estabelecidas dentro do hospital, não somente entre esses dois personagens mãe e hospital -, porém incluindo-se nessa relação também a criança internada.
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