O CONCEITO DE CORPO-PRÓPRIO EM EDITH STEIN E EM MERLEAU-PONTY

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Transcrição:

O CONCEITO DE CORPO-PRÓPRIO EM EDITH STEIN E EM MERLEAU-PONTY Dra. Ursula Rosa da Silva 1 Resumo: O presente artigo apresenta dois autores que foram influenciados pelo fenomenólogo Edmund Husserl: Edith Stein e Maurice Merleau-Ponty, e que trazem para a filosofia um conceito que pretende superar a instância da consciência racional como único ponto de partida para o conhecimento, por meio do corpo próprio. Em sua tese, denominada O Problema da Empatia (1916), Edith desenvolve o conceito de Einfühlung (intuição empática, empatia) ligado a uma concepção de modo de estar no mundo do sujeito (Eu próprio) em relação ao Outro (Eu estranho). Porém, para chegar à definição de empatia, ela trata, no primeiro capítulo sobre a Essência do Ato de Empatia, de explicitar o sujeito como um indivíduo psicofísico diverso de um objeto físico, ao qual é preciso atribuir um corpo, não tanto como corpo físico, mas como fenômeno denominado corpo-próprio (Leib = corpo vivente, corpo animado). Nos textos de Edith Stein encontramos uma proximidade com o conceito que posteriormente aparece na fenomenologia de Merleau-Ponty. Este estudo pretende apresentar uma análise comparativa entre a pensadora Edith e o fenomenólogo Merleau-Ponty no conceito de corpo-próprio e como este conceito é importante na área da arte como um corpo expressivo. Palavras-chave: corpo-próprio; expressão corpórea; fenomenologia; empatia A fenomenologia caracteriza-se como uma proposta para o conhecimento filosófico, que se diferencia da filosofia tradicional a qual estabelecia uma separação entre o sujeito epistemológico e o objeto de sua abordagem. O termo fenomenologia surge de duas expressões gregas, Phainomenon e logos. Phainomenon (fenômeno) significa aquilo que se mostra por si mesmo, o manifesto. Logos é tomado com o significado de discurso esclarecedor. Dessa maneira, fenomenologia significa discurso esclarecedor a respeito daquilo que se mostra por si mesmo (DARTIGUES, 1982). O movimento de pensamento conhecido como Fenomenologia está estreitamente ligado ao nome de Edmund Husserl (1859-1938). A fenomenologia põe-se no interior daquela rediscussão das concepções filosóficas positivas que realizou a cultura alemã nas últimas duas décadas do século XIX. Crítica do positivismo, a fenomenologia se caracteriza como um pensamento desconfiado em relação a todo apriorismo idealista. Com isso, se insere no movimento de pensamento que se identifica como tendência para o concreto. Assim, a máxima da fenomenologia é retorno das coisas mesmas, buscando evidências estáveis para servirem de fundamento para filosofia. Os fenomenólogos trabalham com a descrição dos modos típicos como as coisas e os fatos se apresentam à consciência E esses modos típicos 1 Professora da Universidade Federal de Pelotas/RS. Email: ursularsilva@gmail.com

são precisamente as essências eidéticas. A fenomenologia é a ciência das essências e não dos fatos. Um dos elogios feitos por Merleau-Ponty à fenomenologia husserliana refere-se à conquista de unir o extremo subjetivismo e o extremo objetivismo (1971, p. 17). Na realidade, a fenomenologia de Husserl caracteriza-se pela busca de como ocorre o encontro entre a subjetividade e os objetos, por meio da intencionalidade. Pela intencionalidade, toda a consciência é consciência de algo, mas não de uma imagem ou representação de algo exterior. A intencionalidade é uma recusa à noção clássica de representação, pois a consciência nos apresenta objetos numa relação de significação original, ou seja, manifesta o sentido primeiro do fenômeno e não o representa para nós. Em sua crítica ao naturalismo, Husserl (1965, p.14) afirma que a ciência natural procede de maneira ingênua, pois, embora sejam dados os fatos, não diferencia o que é empírico daquilo que está na consciência. A própria fenomenologia se apresenta como proposta para superar a ontologia clássica, que conhecemos subdividida em metafísica que define a substância (própria das filosofias grega e medieval) e em metafísica da subjetividade (moderna, de Descartes até Hegel). Sendo assim, poderíamos considerar a fenomenologia como uma nova forma de ontologia. Husserl inaugura uma nova ciência, não empírica, de subjetividade, interrogando a consciência viva no âmbito em que ela exprime e dá sentido à sua experiência. A intencionalidade não é apenas um dado psicológico, mas o que possibilita a epoché (redução) pela qual o mundo circundante não é simplesmente existente, não me é apresentado como um dado, mas fenômeno de existência. Aqui está implicada a distinção entre fenômeno (conteúdo vivido) e objeto. O objeto não é vivido nem interiormente compreendido no fenômeno psíquico, enquanto que o fenômeno é vivido como pertencendo à trama da consciência. Os fenômenos não nos aparecem, eles são vividos. Daí resulta que a consciência é como um feixe de vividos intencionais e nunca um reservatório, pois o objeto não entra na consciência. Para Husserl, só se pode falar em inclusão do mundo na consciência, ou da consciência ser consciência de algo, porque a mesma não é só o pólo EU (noése), mas também o pólo ISSO (noema), e tal inclusão não é real, e sim intencional. Não é o objeto que está presente na consciência, mas a vivência ou o fenômeno que o objeto manifesta. A análise intencional esclarece como é constituído o sentido de ser do objeto, porque ela é um objetivo, mas também é doação de sentido. Todavia, esse sentido não está num dos dois pólos da relação sujeito-objeto: é a própria relação que dá sentido aos dois pólos que une, por meio da vivência do fenômeno, da intencionalidade do sujeito imbricado no mundo. O privilégio do fenômeno sobre o objeto natural (das ciências humanas) se dá pelo fato de que, no fenômeno, o sentido é mais amplo, pois comporta uma referência interior a

outras possibilidades de manifestação que estão implicadas no horizonte do mundo. Enquanto no naturalismo o fundamento é a exterioridade mútua dos elementos, a fenomenologia baseiase numa inerência intencional. Devido a isso, Husserl realiza todo um processo de redução, de suspensão do mundo natural (epoché) na sua análise transcendental, para procurar o sentido que manifesta o fenômeno antes que se estabeleçam as condições de possibilidades para questioná-lo. Entretanto, em Husserl permanece a separação entre objeto e consciência, na medida em que o objeto possui sua independência em relação à consciência: não há identidade entre eles, quem estabelece o elo entre mundo e consciência é a intencionalidade, que por meio da redução fenomenológica, desvela o significado dos objetos. A fenomenologia em Merleau-Ponty tem uma característica diferente da Husserl, que suprime o mundo natural para encontrar as essências. Husserl havia percebido, em suas últimas obras, a necessidade de contar com um mundo que está aí anterior à reflexão, um mundo-da-vida (LebensWelt). É dessa última abordagem husserliana que parte Merleau- Ponty, vendo a fenomenologia não como uma filosofia que define essências, mas que coloca as essências na existência, em contato com o mundo, tendo presente que o homem só pode compreender-se a partir de sua facticidade. Edith Theresa Hedwing Stein (1891-1942) foi discípula de Edmund Husserl e sua assistente até 1919 (GARDIULO, s/d), período que tentou substituir o mestre em sua cátedra na Universidade, mas sua tentativa fracassou, sendo esta vaga preenchida por Heidegger. Em suas aulas e palestras dava destaque ao papel da mulher na sociedade e na Igreja 2. Seus textos refletem sobre a educação, a intersubjetividade, a função do Estado para com o povo. A fenomenologia no século XX, por meio de autores como Maurice Merleau-Ponty, apresentou uma nova abordagem para o conhecimento nas ciências a partir do conceito de corpo-sujeito ou corpo-próprio. Merleau-Ponty concebe o corpo-próprio como meio para superar a antinomia de sujeito e objeto, temas clássicos da ciência moderna, criticados pelo filósofo. A fenomenologia em Merleau-Ponty tem uma característica diferente da Husserl, que suprime o mundo natural para encontrar as essências. Husserl havia percebido, em suas 2 Edith era filha de família judia, mas se tornou uma religiosa da Ordem Carmelita Descalça, onde recebeu o nome de Teresa Benedita da Cruz, dedicou-se a este trabalho religioso de 1933 a agosto de 1942, quando foi asfixiada, numa câmara de gás, no campo de concentração de Auschwitz (Polônia)Pelo seu heroísmo cristão, foi canonizada por João Paulo II, a 11 de Outubro de 1998, sob o nome de Santa Teresa Benedita da Cruz. Foi proclamada co-padroeira da Europa por seu contributo cristão que outorgou não só à Igreja Católica, mas também por seu pensamento filosófico. A sua celebração litúrgica, na forma de festa, na Igreja Católica, é no dia 9 de Agosto de cada ano.

últimas obras, a necessidade de contar com um mundo que está aí anterior à reflexão, um mundo-da-vida (LebensWelt). É dessa última abordagem husserliana que parte Merleau- Ponty, vendo a fenomenologia não como uma filosofia que define essências, mas que coloca as essências na existência, em contato com o mundo, tendo presente que o homem só pode compreender-se a partir de sua facticidade. Edith Theresa Hedwing Stein (1891-1942) foi discípula de Edmund Husserl e sua assistente até 1919, período que tentou substituir o mestre em sua cátedra na Universidade, mas sua tentativa fracassou, sendo esta vaga preenchida por Heidegger. Em suas aulas e palestras dava destaque ao papel da mulher na sociedade e na Igreja. Seus textos refletem sobre a educação, a intersubjetividade, a função do Estado para com o povo. Empatia, Intersubjetividade e Corpo Ao começar a ler a pensadora Edith Stein, percebemos uma semelhança de abordagem, a respeito da intersubjetividade e da percepção, com a posterior teoria de Merleau-Ponty. Ela aborda o sentido que damos ao olhar o outro como diferente, por meio do conceito de empatia, desenvolvido em sua tese de doutorado 3, de 1916. Edith Stein considera o homem como uma unidade de corpo, alma e espírito e demonstra que o homem tem um interior inviolável que é o fundamento de sua dignidade, o espaço sagrado de encontro com Deus e, inseparavelmente, o lugar da consciência de que podem elevar-se decisões livres e um verdadeiro diálogo com o mundo (RUS, s/d). Uma de suas obras principais é Ser finito e Ser eterno, uma espécie de ontologia, síntese de filosofia e mística, que relaciona a fenomenologia de Husserl e a tradição medieval, manifesta na filosofia de Tomás de Aquino (GARDIULO, s/p). Em sua tese, denominada O Problema da Empatia (1916), Edith desenvolve o conceito de Einfühlung (intuição empática, empatia) ligado a uma concepção de modo de estar no mundo do sujeito (Eu próprio) em relação ao Outro (Eu estranho). Porém, para chegar à definição de empatia, ela trata, no primeiro capítulo sobre a Essência do Ato de Empatia, de explicitar o sujeito como um indivíduo psicofísico diverso de um objeto físico, ao qual é preciso atribuir um corpo, não tanto como corpo físico, mas como fenômeno denominado corpo-próprio (Leib = corpo vivente, corpo animado). Segundo Edith, esse corpo próprio é: (...) dotado de sensibilidade, como corpo que pertence a um Eu capaz de ter sensações, de pensar, de sentir e querer, enfim, como corpo que não faz parte somente do meu mundo fenomênico, mas é o centro de 3 STEIN, Edith. IL Problema Dell Empatia, Halle: Stamperia dell Orfanotrofio, 1917.

orientação de um similar mundo fenomênico, de frente ao qual se encontra, e com o qual eu estou em troca recíproca. (STEIN,1917, p.70, tradução nossa) O trabalho de Edith Stein traz muitos conceitos que depois aparecerão na fenomenologia de Merleau-Ponty, dos anos 1940, que aborda a temática do corpo-próprio como caminho para superar a antinomia sujeito-objeto, característica da tradição filosófica. Tendo estudado os textos de Merleau-Ponty, não encontramos nenhuma referência a Edith Stein em relação, a sua tese, e ao conceito de corpo próprio, embora ele tenha referido outro texto de Stein em bibliografia na obra Fenomenologia da Percepção, bem como referências a Husserl e Scheler, autores também utilizados por Edith Stein em sua obra. Dando ênfase então, na tese de Edith, a esta configuração da relação do Eu e o Outro, a experiência de empatia ou de intersubjetividade, ela traz a concepção de Scheler para explicar que o Eu próprio e o Outro (Eu estranho) são percebidos de uma mesma maneira em sua experiência, é um fluxo indiferenciado de experiência vivida (STEIN, 1917, p.104), diz ela. Edith contesta a inclusão que Scheler faz da empatia na percepção interna, e diferencia esta percepção da reflexão, afirmando que a reflexão é sempre uma conversão atual em direção de uma experiência vivida atual, enquanto que a percepção interna pode ocorrer de maneira inatual. Aprofundando a concepção de experiência do Outro, do sujeito estranho, ela afirma que nossa experiência deste Outro Eu (Eu estranho) deve consistir em captar o ato de vontade deste outro, caracterizando, assim, um ato de compreensão, um ato empático, mediante o qual entendo o querer do outro como sendo meu querer. Para isto, no entanto, é necessário que eu tenha consciência de meu corpo-próprio: A possibilidade da empatia sensorial (...) é garantida pela apreensão do meu corpo próprio como corpo e do meu corpo como corpo próprio, graças à fusão da percepção externa com a percepção do corpo próprio; é garantida ainda pela possibilidade que este corpo tem de assumir diversas posições no espaço; e por último é garantida pela possibilidade de mudar na fantasia a real característica do corpo (...). (STEIN,1917, p.150, tradução nossa) A empatia torna-se, enfim, condição de possibilidade da constituição do indivíduo próprio e de sua relação com o Outro. O fio condutor da atuação de Edith Stein, em todos os âmbitos, seja com o pensamento seja com a ação, parece ter sido a intersubjetividade, Einfühlung, a empatia, a comunhão com o outro, com o estranho, com o diferente.

Assim, ela contesta a concepção de Scheler, segundo a qual a empatia seria relacionada apenas à percepção interna. Para Edith Stein, a empatia deve contemplar nossa experiência de sujeito estranho que consiste em captar o ato de vontade estranho. A característica deste ato de compreensão, mediante o qual o querer estranho, do outro, passa a ser meu querer, remanescendo o querer do outro. E esta característica não deve se limitar aos atos de vontade, mas ampliar-se a todos os atos empáticos. Quando trata da empatia como problema de constituição, ou seja, aborda o quesito sobre como nos constituímos, de forma consciente, na objetualidade de que se fala na teoria tradicional da empatia: um conjunto de indivíduo psicofísico, personalidade e semelhante. A partir daí define o que é o corpo próprio e de que modo isso se dá em nós. Partindo da consciência pura, base de sua pesquisa e da teoria de Husserl, ela pergunta: como se constitui conscientemente, para mim, o meu corpo próprio, no caso que isso me venha dado somente nos atos de percepção externa? (STEIN, 1917, p.124). Uma coisa real, um corpo manifesta uma sequencia de aparição e, ao mesmo tempo, mostra estranha lacuna: é um corpo que se esconde de mim no mesmo momento em que me convida a apreendê-lo, a dar-lhe atenção de um jeito sempre novo. O Eu não apenas quer aderir ao seu convite, quer também desvelar os outros lados. Outra coisa que vejo me diz toca-me sou verdadeiramente uma coisa que se manifesta, sou uma coisa atingível e não uma imaginação (STEIN, 1917, p.124). Para melhor precisar esta noção devemos dizer ainda que outro objeto me vem dado em uma multiplicidade infinitamente variável de aparições mutantes em relação a mim, a minha capacidade de observação e intenção de dar-lhe atenção. O corpo próprio é, por sua vez, um Objeto que me vem dado em uma sequência de aparições que podemos variar só dentro de limites, estreitíssimos. O corpo é um Objeto que estará em sintonia, constantemente, com uma insistência fina. Pois quando percebo meu corpo, por exemplo, quando vejo minha mão, eu não vejo somente a mão, percebo a mão como mão sensiente de um corpo próprio, e vejo ainda os campos sensoriais da mão, os quais são por mim constituídos na percepção do corpo próprio. Por outro lado, enquanto evidencio, tomando em consideração alguma parte do meu corpo próprio, simultaneamente, formo para mim mesmo uma imagem da parte do corpo em questão: uma coisa é manifestada a outra, embora não sejam juntamente percebidas. Um caso semelhante se encontra no âmbito da percepção externa. Não vemos somente a mesa e contatamos, tocando-a, a sua dureza, mas vemos pura a sua qualidade de dureza.

A possibilidade da empatia sensorial, ou mais precisamente, a endosensação, é garantida pela apreensão do meu corpo como corpo próprio e do corpo próprio como corpo. É garantida ainda da possibilidade que este corpo tem de assumir diversas posições no espaço. Por último, é garantida a possibilidade de mudar na imaginação, a real característica do corpo, por seu caráter humano. A empatia é a condição de possibilidade da constituição do indivíduo próprio. O que Edith Stein entende por Eu individual ou por indivíduo é que o indivíduo é um sujeito unitário, no qual a unidade da consciência de um Eu e um corpo físico se conjuga indissoluvelmente. Assim, cada um desses dois elementos (corpo físico e consciência) assume um caráter novo: o corpo se apresenta como corpo próprio, enquanto a consciência se apresenta como anima do indivíduo unitário. A unidade é documentada pelo fato de que certos processos (sensações, sentimentos comuns) venham a dar-se como pertencentes tanto à alma quanto ao corpo próprio, simultaneamente. Por outro lado, é documentada pelo nexo causal dos processos físicos e psíquicos em relação causal de modo mediado pela alma e pelo mundo real externo. O indivíduo psicofísico como um todo é membro da natureza. A empatia sensorial só é possível pela apreensão do meu corpo próprio, graças à fusão da percepção externa e da percepção do próprio corpo. Em Husserl, por sua vez, permanece a separação entre objeto e consciência, na medida em que o objeto possui sua independência em relação à consciência. Não há identidade entre estes dois elementos, quem estabelece o elo entre eles é a redução fenomenológica. Por isso, a intencionalidade vai dar a ligação com o mundo real. É pela intencionalidade que mundo e consciência se relacionam, sendo que em Husserl a consciência não faz parte do mundo. Ou seja, quando Stein afirma que o indivíduo é parte integrante da natureza, ela faz uma aproximação do sujeito e de sua consciência ao mundo real, diferente de Husserl. Pois, embora Husserl valorize o mundo das vivências para a apreensão do sentido verdadeiro e original dos fenômenos, ele vai, pela redução, separando-se deste mundo fonte de significados. Stein vai definir a intencionalidade a partir da diferenciação entre o movimento mecânico do corpo e um movimento próprio, que revela vontade. Edith vai diferenciar ainda vários graus de percepção que terão como consequência diferentes modos da empatia. Dito mais precisamente, o corpo humano não delimita diretamente o campo do meu Objeto de empatia, o qual pode ser-me dado por meio do corpo próprio, mas delimita um campo dentre o que é possível perceber com um preenchimento empatizante. Ou seja, a percepção de mim e do mundo passa por um envolvimento com o Outro. No caso da empatia externa, por exemplo, a mão estranha, do Outro, suscita uma

percepção satisfatória, embora não adequada, exata, pois o que eu sinto como não-originário, pode passo a passo cobrir-se com a sensação originária do Outro. Assim, a constituição do mundo real externo torna-se possível pela experiência intersubjetiva, ou seja, pelo contato com o Outro. Na lembrança de minha infância eu me vejo com um Outro. Isto também é possível pela empatia. Mas o significado é outro. A empatia como fundamento da experiência torna-se condição de possibilidade de um conhecimento do mundo externo existente. Desde a orientação no espaço, parto da relação do Outro para ter um referencial de posicionamento no mundo. De modo que um dos elementos constitutivos do corpo próprio é sua posição a partir de um ponto zero de orientação. Este elemento incide sobre o mundo espacial externo. O corpo do outro indivíduo como puro corpo físico é, como uma outra coisa, uma coisa no espaço, isso é dado como um corpo localizado em um determinado ponto do espaço, uma determinada distância de mim. O mundo que eu atinjo pela imaginação é, de forma contrastante, um mundo que não existe. O mundo que eu atinjo empatizando é um mundo que existe, ou seja, isto é posto como mundo que é do mesmo modo como é posta aquela percepção originária. O mundo percebido e aquele dado de modo empático são o mesmo mundo visto em modos diversos. Retomando os textos de Merleau-Ponty, podemos verificar os conceitos de percepção, corpo próprio e intersubjetividade na sua fenomenologia para traçarmos um paralelo com Stein. A filosofia de Merleau-Ponty apresenta-se como uma crítica à filosofia racionalista, a qual, na sua ânsia por uma objetividade absoluta, acabou abandonando a experiência perceptiva, o sujeito existente e a relação ambígua de coexistência que revela um mesmo fundo, uma mesma realidade, onde duas faces aparecem interligadas. Essa realidade ambígua não permite um destacar absoluto e imparcial do Eu como espectador frente ao objeto. Logo, um conhecimento objetivo que vise a um ideal de explicitação total não é possível se o Eu está inerente ao mundo. Segundo Merleau-Ponty, as sínteses, características de uma limitada filosofia da consciência, não apresentam um mundo vivido. No entanto, elas mesmas são derivadas de uma vivência, a qual é somente pressuposta para que se constitua o conhecimento do mundo. Merleau-Ponty estende a intencionalidade da consciência para o corpo, e esta é a sua novidade, pois, para ele, a intencionalidade não está na consciência pura, mas é própria de uma consciência encarnada. O corpo é o mediador entre o sujeito e o mundo, pois é pelo ser corporal que nos descobrimos como ser-no-mundo (o in-der-welt-sein de Heidegger). É na noção de ser-no-mundo de Merleau-Ponty que se reflete uma consciência engajada e sua

existência. A intencionalidade não é exclusiva de uma consciência absoluta, pois, antes de mais nada, a consciência manifesta-se no próprio corpo. A noção de corpo enquanto fenômeno ou corpo-próprio remete a uma consciência que não é constituinte, mas perceptiva e intencional, voltada para a ação e seu elemento principal é a significação. Perceber é uma atitude que se opõe ao representar ao instaurar um conhecimento objetivo, porque a percepção inaugura um sentido que está enraizado histórica e culturalmente no mundo. No texto O Primado da Percepção e suas conseqüências filosóficas, Merleau-Ponty apresenta o conceito de percepção ligado à diferenciação entre verdade ideal e verdade percebida, a partir da qual irá traçar um elo, ou talvez esclarecer a existência deste elo, entre a percepção e a intelecção. Merleau-Ponty (1990) apresenta o quanto a análise clássica da percepção o limita a um ato intelectual, temos a idéia de algo, o fechamos em uma síntese tentando extrair dele uma verdade, o conceito. Para Merleu-Ponty, retomando Husserl, a síntese não deve ser intelectual, mas de transição, porque o objeto real se oferece como a soma interminável de uma série indefinida de perspectivas; cada uma das quais lhe diz respeito e nenhuma o esgota (MERLEAU-PONTY, 1990, p.47) Merleau-Ponty passa da consciência intelectual para a consciência perceptiva, no sentido de situar-nos no âmbito de um logos nascente, de uma verdade originária que fundamenta o conhecimento: A experiência da percepção nos põe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas, as verdades, os bens; que a percepção nos dá um logos em estado nascente, que ela nos ensina, fora de todo dogmatismo, as verdadeiras condições da própria objetividade; que ela nos recorda as tarefas do conhecimento e da ação. (1990, p.63) Merleau-Ponty fala da necessidade da filosofia voltar ao mundo da vida, ao mundo das coisas para poder realizar um verdadeiro conhecimento: é a condição do olhar que parte das vivências do sujeito epistemológico, uma vivência contextualizada no mundo que está aí, este mundo de meu corpo. A experiência estética é um caminho que se abre como exemplo para compreensão de como perceber o mundo com uma racionalidade sensível. Aproximar-se do mundo, por meio de exercício filosófico, como quem quer expressá-lo com a linguagem da arte, sem cores predefinidas, sem conceitos fechados, mas como obra aberta. E assim como esta obra inacabada e incompleta que é a expressão do mundo, o mesmo ocorre com a percepção:

Já que a percepção nunca está acabada, já que as nossas perspectivas nos dão para exprimir e pensar um mundo que as engloba, as ultrapassa e anuncia-se por signos fulgurantes como uma palavra ou um arabesco, por que a expressão do mundo seria sujeita à prosa dos sentidos ou do conceito? É preciso que ela seja poesia, isto é, que desperte e reconvoque por inteiro o nosso puro poder de expressar, para além das coisas já ditas ou já vistas. A pintura moderna coloca um problema muito diferente daquele da volta ao indivíduo: o problema de saber de que modo é possível comunicar-se sem o amparo de uma Natureza preestabelecida e à qual se abririam os sentidos de todos nós, de que modo estamos entranhados no universal pelo que temos de mais pessoal (1991, p.53). O mundo percebido, o mundo da vida, é o fundo sempre pressuposto por toda racionalidade, todo valor e toda existência. Essa concepção, segundo Merleau-Ponty, não destrói a racionalidade nem a pretensão de um conhecimento verdadeiro, apenas pretende aproximá-los do mundo da vida. Assim, percebemos muitas aproximações possíveis entre o modo com Edith Stein apresenta o corpo próprio em sua relação com o outro e com o mundo, como a empatia é o movimento, a ação que capta o mundo que, em Merleau-Ponty, vai aparecer por meio do conceito de percepção. E a intersubjetividade, em ambos, como uma tentativa de superar os limites que a fenomenologia de Husserl trazia em relação à constituição do Outro, muito mais como um objeto da consciência do que outra intencionalidade existente no mundo.. Referências DARTIGUES, André. O que é a Fenomenologia? São Paulo: Ed. Moraes, 1992. GARDIULO, Armando. Edith Stein: Hebraicidade e santidade cristã IN: http://www.gesuiti.it/moscati/brazil/pr_stein_gar3.html, Data da consulta: 05/09/2008. HUSSERL, Edmund. A Filosofia com Ciência de Rigor. Coimbra: Atlântida, 1965. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia a Percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.. A Natureza da Percepção (1934), IN: O Primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. São Paulo: Papirus, 1990.. A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio, IN: Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. RUS, Eric de. Arte da Educação segundo Edith Stein (Entrevista com o autor de um livro sobre o tema, por Anita S. Bourdin), IN: Permalink: http://www.zenit.org/article- 19327?l=portuguese. Data da consulta: 05/09/2008. SILVA, Paula O. A Missão Ecológica da Mulher: uma leitura de Edith Stein; IN: FERREIRA, M.L.R. (org.) Também há Mulheres Filósofas. Lisboa: Editorial Caminho, 2001. STEIN, Edith. IL Problema Dell Empatia, Halle: Stamperia dell Orfanotrofio, 1917.