O RACISMO, O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA CULTURA AFRO- BRASILEIRA E AFRICANA Antonio Carlos Lopes Petean * A era industrial gerou uma nova luta por áreas econômicas vitais para as potências europeias. Uma nova expansão colonial teve início no século XIX e, com ela, as incursões no continente africano aprofundaram-se de forma significativa. Inglaterra, França, Itália, Bélgica e Alemanha deram início a uma corrida por espaços e áreas de influência que fossem fornecedoras de matéria prima e pudessem absorver excedentes de capitais. A partir destes objetivos teve início a conquista e partilha do continente africano. A justificativa ideológica para tal empreendimento era levar o progresso a um continente atrasado e primitivo. Este atraso e primitivismo, na compreensão da Europa, teria um fator: a natureza. As condições ambientais e os acidentes geográficos havia isolado o continente africano, condenando-o ao atraso. Desde o século XVI o continente africano foi considerado isolado, voltado para si e, este isolamento seria determinado pela natureza. Esta visão determinista da natureza transformou-se na causa fundamental para explicar as diferenças culturais entre europeus e africanos. Diferenças vistas como uma inferioridade determinada pela natureza circundante. Segundo o olhar europeu, este isolamento não teria permitido o desenvolvimento do continente e um processo civilizatório. Processo este, que teria início com a colonização da era industrial. No discurso das potências industriais europeias, o processo civilizatório, a colonização e o desenvolvimento caminhariam juntos, obedecendo a um modelo pré-determinado. Modelo este, imposto de fora e estabelecido pelas concepções culturais europeias. Segundo esta lógica o continente africano e seus habitantes estavam tiranizados pela natureza e pelo clima, o que explicava, segundo o olhar europeu, o relativo atraso cultural e técnico do continente. Atraso que agora seria superado com a colonização européia. Mas, segundo Waldman e Serrano (2007) um suposto isolamento da África devido as barreiras naturais foi recentemente questionado. Pesquisas apontam que esta * Professor Adjunto da UFU, doutor em Sociologia pela UNESP/Araraquara, licenciado em História pela UFOP. 1
tese foi outra fantasia criada sobre o continente africano. Uma fantasia para justificar a colonização e o domínio imperialista europeu a partir do século XIX. O contato mantido no Índico entre a África e a Ásia muçulmana permitiu o surgimento da civilização swahili, que floresceu na costa oriental africana. Resultou do intercruzamento de dez séculos de influências árabes (principalmente do Yemem e Oman), persas (da cidade de Xiraz), indianas e europeias com as da África tradicional. Organizadas em cidades e fortalezas erguidas ao longo do litoral, essa civilização deixou marcas profundas, a começar pelo Kiswahili, a língua africana mais difundida no continente (SERRANO e WALDMAN, 2007: 92) Estas pesquisas concentram-se nas rotas comerciais, nos estratos linguísticos e nos fluxos populacionais para fora do continente, que permitiram intensas trocas culturais, linguísticas e comerciais. Podemos perceber estes contatos na presença do Árabe em vários dialetos africanos. Povos não-muçulmanos, como os malgaches, por exemplo, também utilizaram o alfabeto árabe. Por sua vez, línguas francas ou veiculares, como o Kiswahili, haussá e wolof, foram vertidas para o alfabeto árabe ou adaptações do mesmo. Entre os abecedários inspirados no Árabe, contam-se o ajami (ou ajam), difundido entre os haussá e os fula, e o wolofal, entre os wolof (SERRANO e WALDMAM, 2007: 95). Mas esta perspectiva determinista atravessou séculos, não se ocupou com a diversidade de povos e culturas e, aprofundou-se no século XIX, influenciando profundamente a forma de se olhar para a África e os povos que nela habitam. Povos com grande diversidade étnica, cultural e linguística. E, muito destes povos escravizados e vendidos durante séculos para aplacar a sede do processo colonizador na América. O contato dos diversos grupos étnicos, escravizados e enviados para a América colonial, com outros povos e culturas gerou uma pluralidade cultural e religiosa própria 2
do continente americano, principalmente no território colonial português. Esta pluralidade cultural gestada em terras tupiniquins esta presente em todo território nacional, formando o panteão religioso e cultural de matriz africana. Devemos lembrar que, em boa parte, não é apenas de matriz africana. Embora seja extremamente plural as manifestações religiosas e culturais de matriz africana, elas partilharam do mesmo sofrimento imposto pelo preconceito e pela segregação a que foram submetidas por séculos. Por isso, falar sobre África, cultura afro-brasileira e manifestações religiosas de matriz africana no universo escolar é, no mínimo, um grande desafio. Um desafio que a sociedade brasileira deve enfrentar para combater o preconceito e o racismo que atinge o imenso legado cultural africano e a comunidade afrodescendente. Durante a vigência da escravidão as práticas religiosas africanas foram cerceadas pelo catolicismo o que dificultou suas práticas, a difusão do seu imaginário e até sua produção artística, segundo CONDURU (2007). O resgate desta cultura, sua valorização e respeito faz parte dos objetivos democráticos da sociedade brasileira e, o sistema educacional deve contribuir para este resgate e esta valorização cultural. Com este objetivo o ensino de História da África e da cultura Afro-Brasileira e Africana esta presente nos parâmetros curriculares nacionais a partir da lei 10.639/03. Esta lei permite abordar as comunidades quilombolas, as religiões de matriz africana, a Capoeira, o Samba, o tambor de crioula e outras manifestações culturais de raízes africanas de uma forma lúdica e livre de preconceitos. Sendo assim, abordar a delicada temática cultural de matriz africana favorece a reflexão e a formação da cidadania. Cidadania que ainda é uma utopia para boa parcela da população brasileira, principalmente para os afrodescendentes. Afrodescendentes de grupos étnicos escravizados nos séculos XV e XVI para atenderem a demanda de mão-de-obra das lavouras de açúcar dos impérios coloniais de Portugal, Inglaterra, França e Holanda. Os grupos étnicos escravizados foram trazidos de Moçambique, Congo, Nigéria, Benin e Daomé. Estes nomes, também, são referências e estão presentes na lei 10.639/03, pois esta lei tem como objeto de ensino, estudar as lutas pela independência dos países africanos e, principalmente, as lutas pela independência dos países de língua portuguesa (PALOP). Portanto, ela nos permite 3
discutir as lutas de independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Além destes temas, esta lei abre possibilidades para uma discussão sobre o culto aos orixás que chegou até nós através dos povos escravizados que, em contato com a cultura cristã portuguesa e com a cultura indígena geraram as diversas religiosidades de matriz africana. Geraram o Candomblé, a Umbanda, o Tambor de Mina, o Batuque de Umbigada e o Tambor de Crioula. Manifestações culturas consideradas marginais pelo código penal brasileiro que as enquadrava na categoria de vadiagem. Mas o preconceito que pesa sobre os africanos, os afrodescendentes e suas respectivas manifestações culturais é secular. Encontramos representações preconceituosas e racistas sobre a África e os povos que nela habitam desde a antiguidade. Representações que ganharam fôlego no período medieval, como nos descreve Serrano e Waldman: No período medieval, diversas imagens subalternizantes a respeito dos africanos foram articuladas no seio do imaginário europeu. Uma dessas peças imaginárias foi a infame teoria camita, interpretação que estigmatizava os negros enquanto descendentes do personagem bíblico Cam como indignos, posteriormente conotada pelo pressuposto de que os africanos estariam fadados a escravidão. (SERRANO e WALDMAN, 2007:24) A teoria camita afirma de forma categórica que o filho de Noé, Cam, teria zombado do pai e, devido a esta postura recaiu sobre ele e seus herdeiros a praga da escravidão. Os herdeiros de Cam na Bíblia habitariam a orla africana do mar vermelho. A teoria camita foi agregada a cartografia de Cláudio Ptolomeu e a cosmologia cristã e, a partir daí justificou o lugar social e territorial dos povos africanos (SERRANO e WALDMAN, 2007). Na cosmologia cristã a África foi simbolizada como um lugar quente, demoníaco por excelência, habitado por seres monstruosos. Um território desprovido de vida civilizada, de razão e cultura. Estas representações fizeram parte da história intelectual europeia, pois segundo SERRANO e WALDMAN (2007) os iluministas Voltaire, Kant e Jefferson negaram aos africanos a posse de capacidades literárias. 4
Estes pensadores relacionavam História com registros escritos e, assim, consideraram a África e os povos africanos destituídos de História e fora da História da humanidade. Mas, os povos africanos sempre se valeram da transmissão oral e da memória como forma de registrar suas histórias. Eles têm na transmissão oral o seu meio de perpetuação cultural e construção de laços societais. Estudos de História oral reconhecem na transmissão oral de histórias, valores e crenças um mecanismo intimamente ligado a perpetuação da memória social e de construção de sentidos. Além de imagens baseadas na teoria camita e, posteriormente aos iluministas, encontramos representações preconceituosas que encontram suas justificativas no ambiente cultural e na natureza. Estas representações não podem ser classificadas de racismo científico, pois o conceito de raça proveniente das ciências naturais ainda não se faz presente nas ciências e observações empíricas dos séculos XVII e início do XVIII. Segundo Wieviorka: As ideologias racistas evoluíram consideravelmente no decorrer da era moderna. Em um primeiro tempo, durante os séculos XVII e XVIII, dominam, não sem uma grande diversidade suficiente, representações do outro que se podem denominar de proto-racistas. Algumas, notadamente explicam as diferenças físicas dos africanos ou dos Índios da América, elas mesmas percebidas como causa ou marca de uma inferioridade, pelo meio ambiente em que eles vivem: o clima, a natureza, mas também a cultura, a civilização na qual eles são socializados. Desse ponto de vista, o negro africano é um selvagem, mas que pode ser civilizado e mesmo ver sua aparência física transformada pela colonização. (WIEVIORKA, 2007:19) Esta representação sobre a inferioridade de determinados povos tinha como objetivo fornecer uma justificativa para a escravização de diversos grupos étnicos africanos e indígenas. Segundo SERRANO e WALDMAN (2007) o imaginário europeu estabeleceu para a África e seus habitantes, várias representações desqualificantes e inferiorizantes. E, estas representações contribuíram de forma pejorativa para a imagem sobre o continente africano e sobre os grupos étnicos que foram escravizados e trazidos para a América colonial portuguesa. Até o termo África subsaariana é pejorativo quando se sabe que ao sul do Saara existe uma população predominante negra. O termo sub 5
deve ser visto como inferiorizante e vinculado aos interesses coloniais da Europa imperialista. Mas as representações esteriotipadas sobre o continente africano e sua população são bem mais antigas. Evidentemente, tal regime de esteriotipias, não constituindo uma elaboração exclusiva da Europa contemporânea, apresentou alterações ao longo do tempo. Na verdade, os mecanismos simbólicos da exclusão do outro remontam há muitos séculos, estando profundamente enraizado no legado cultural europeu. As fabulações europeias a respeito da África são antigas, podendo ser localizadas em um variado conjunto de elaborações socioculturais. É a partir desse passado remoto que se estratificaram os preconceitos cultivados contra o outro, personificado em diferentes momentos pelos bárbaros, tártaros, mongóis, ciganos, judeus, muçulmanos, assim como pelos negros africanos. (SERRANO e WALDMAN, 2007:24) A parir daí podemos compreender os estereótipos que recaíram sobre a população negra escravizada e suas manifestações culturais e religiosas. Ainda que a imagem da África tenha variado ao longo de séculos, é indiscutível que o continente e seus grupos étnicos foram os que mais sofreram com as imagens excludentes e inferiorizantes construídas pelos europeus, segundo SERRANO e WALDMAN (2007). Imagens que inferiorizaram negros escravizados e ainda estão presentes em terras Américas e particularmente no Brasil, impedindo uma igualdade de tratamento e direitos entre afrobrasileiros e outros grupos étnicos que participaram da formação da sociedade brasileira. Portanto, a discussão sobre cidadania, no Brasil, deve passar pela temática cultural de matriz africana e por uma reflexão sobre o preconceito cultural e racial que vitimou a África, os povos que nela habitam e as manifestações culturais africanas e Afro- Brasileiras. O termo racismo, embora seja relativamente recente no vocabulário político ocidental, ele sempre nos remete a práticas e atitudes que conduzem nossa memória a pensar no holocausto nazista. Mas, se a escravidão significou, historicamente, um holocausto para a população africana, o racismo e o preconceito que a acompanharam são responsáveis por um etnocídio que ainda precisa ser combatido. 6
Desde 2003, a lei de Diretrizes e Bases estabelece que as escolas brasileiras devem abordar a cultura africana e afro-brasileira, com o objetivo de debater o preconceito, o racismo e a visibilidade deste universo cultural que muito contribuiu para a formação da identidade nacional. A lei 10.639/03 cita explicitamente as disciplinas de História, educação artística e literatura como responsáveis pelos conteúdos a serem trabalhados. Mas hoje, outras disciplinas já possuem conhecimentos e instrumentos para abordarem a temática da História da África e da Cultura Afro-brasileira e Africana. Além desses temas proporcionarem um resgate de parte da nossa História, ele permite que diferentes disciplinas dialoguem para combaterem o preconceito e o racismo que atingem a população afro-brasileira e as manifestações culturais de matriz africana. A luta contra a escravidão, o racismo e o preconceito tem um símbolo: Zumbi dos Palmares. Se os corpos dos africanos foram escravizados, as suas mentes e corações não foram. As lutas contra a escravidão e contra o preconceito fizeram parte da vida de ilustres homens da nossa História. É esta luta e este símbolo (Zumbi) que devem servir de parâmetros para a construção de uma sociedade igualitária e baseada na tolerância étnico-racial e religiosa. Vale lembrar aqui que o Samba, a Capoeira, o Candomblé, o Tambor de Mina, os batuques, as Congadas e outras manifestações culturas afro-brasileiras, criadas e recriadas pelas populações escravizadas, sempre sofreram e, ainda sofrem com o preconceito de vozes ignaras que não param de gritar sua intolerância, buscando sempre, censurar a dor e o resgate de parte de nossa História. Sendo assim, o dia da consciência negra deve fazer parte do nosso calendário como uma referência para combatermos o preconceito e o desrespeito em relação à luta dos afro-brasileiros pela valorização e reconhecimento de suas manifestações e tradições culturais. Vale lembrar que uma nação não é composta de uma única tradição, de um único povo, de um único grupo étnico. Portanto, não podemos censurar mais uma vez as vozes negras e os corações Afrobrasileiros, negando o direito a visibilidade para as tradições culturais de matriz africana. Não devemos ressuscitar a saga selvagem, violenta e cruel do bandeirante Domingos Jorge Velho que no ano de 1694 destruiu o Quilombo dos Palmares, matando 7
crianças, velhos e toda a população ali residente. Não devemos apagar da memória a luta contra a escravidão. Abordar esta temática nos bancos escolares contribuirá para uma sociedade mais democrática, pluralista e tolerante. Para isso, são fundamentais as reflexões e pesquisas sobre o legado africano que afloram nas mais variadas ciências. Estas pesquisas são mais significativas para as ciências sociais, pois permitem desconstruir representações, sobre o negro e sobre o mestiço, que seus precursores construíram. Segundo ORTIZ (2006), os precursores das ciências sociais no Brasil, Nina Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha, trataram da questão racial com um contorno claramente racista. Para Ortiz estes pesquisadores introduziram no estudo da realidade nacional, modelos de representação racista e determinista. Daí a importância das políticas afirmativas para os afro-brasileiros e para as ciências sociais. Referência bibliográfica CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte: editora Arte, 2009. HUGON, Philippe. Geopolítica da África. Rio de Janeiro: FGV editora, 2009. JUNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. São Paulo: editora Brasiliense, 1979. ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: editora Brasiliense, 2006. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. SERRANO, Carlos e WALDMAN, Maurício. Memória D África: A Temática Africana em Sala de Aula. São Paulo: editora Cortez, 2007. 8