A CONSTRUÇÃO DO OLHAR: PARADIGMAS NA HISTÓRIA DA PERCEPÇÃO VISUAL José Eliézer Mikosz 1 email: jem@jem.com.br



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Transcrição:

82 ANAIS IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006 ISSN 1809-2616 A CONSTRUÇÃO DO OLHAR: PARADIGMAS NA HISTÓRIA DA PERCEPÇÃO VISUAL José Eliézer Mikosz 1 email: jem@jem.com.br Resumo: Os estudos dos fenômenos ópticos e visuais estão ligados a várias áreas de análise e pesquisa como a Física Óptica, a Medicina, a Psicologia e a Semiótica, entre outras. Concomitantemente a essas inquirições cientificas e filosóficas, o ser humano produziu e produz arte, vinculada necessariamente aos avanços das inquietações inovadoras em sincronia com as outras áreas, processos em que a sensibilidade artística atua como um termômetro que, reagindo aos estímulos externos, trata-os subjetivamente na imaginação do artista. Neste trabalho serão abordados alguns eventos que propiciaram o surgimento e mudanças paradigmáticas 2 na forma de ver dos artistas em suas buscas criativas. Palavras chave: Paradigmas; Percepção visual; Arte. SEIS PARADIGMAS INSTRUMENTAIS DO OLHAR 3 Seis momentos foram escolhidos para exemplificar quebras na construção do olhar. Essas quebras se deveram ao aparecimento de instrumentos ou aparelhos, novas técnicas ou tecnologias que, com a criatividade artística, mudaram nosso olhar. O primeiro, naturalmente, é do início da civilização (há aproximadamente 15.000 anos). Não se pode considerar quebra, pois ignoramos o que vinha anteriormente. Então, no caso, pode ser considerado como um surgimento da arte. Sabemos pouco sobre os seres que estiveram ali. Temos apenas o registro de suas pinturas dentro das cavernas e algumas esculturas encontradas. Porém, pode-se considerar que foi o paradigma 1 Doutorando pelo PPDICH (Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas) da UFSC. JEM Estúdio de Arte: Artista Plástico e Professor de Desenho de Observação. Centro Europeu: Professor de tratamento de imagem por computador. Universidade Rose Croix Internaciomal: Coordenador de pesquisas de Arte em Geral. 2 Escolhemos definir como paradigmas esses eventos, por ser possível estabelecer modelos específicos em cada uma das épocas descritas aqui. A definição por Thomas Kuhn de paradigma: "Considero os paradigmas como realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante certo tempo, proporcionam modelos de problemas e soluções para uma comunidade científica", serve então para nosso propósito aqui (Grifo meu). 3 As obras dos artistas nos dão esse testemunho do olhar que nos interessa neste artigo.

83 inicial, a primeira demonstração da qual temos registro de um modelo que podemos estudar. Quase toda as manifestações artísticas primitivas se encaixam nesse modelo. É interessante traçar o percurso da produção artística desde a Pré-História até o Renascimento, passando pelo Egito, pela Grécia e por Roma, pelos períodos Românico, Gótico e Bizantino. Quais avanços científicos estavam presentes nessas épocas, de que tipos de materiais dispunham, que suportes usavam, de onde extraíam seus pigmentos? Sabe-se que alguns desses pigmentos só se tornaram disponíveis a partir do século XIX, como o amarelo puro e o magenta verdadeiro, 4 de modo que é pertinente observar as conseqüências disso nas pinturas realizadas até então e como os artistas contornavam esses limites. Apesar de as motivações do artista egípcio (rituais e religiosas) serem diferentes do artista gótico (mais simbólico) e do artista renascentista (mais voltado à representação e à mimesis), importa analisar os recursos usados e sua interferência na expressão do fazer artístico. Porém, a primeira mudança instrumental marcante vem apenas com o Renascimento (séculos XV e XVI) com o uso pelos artistas da câmera obscura, nosso segundo paradigma. O terceiro foram os aparatos de animação, a imagem em movimento. O quarto foi a fotografia, o golpe contra a mimese na pintura e precursor da tecnologia e suas caixas pretas. 5 O quinto foi a estereoscopia que revolucionou conceitos científicos e filosóficos no século XIX e, finalmente o sexto paradigma, na era atual, o aparecimento do computador, do binário, do digital, onde a interação humano-máquina aparece. O pensamento lógico-matemático no início da civilização e o surgimento da arte Desde as cavernas de Altamira e Lascaux, o humano primitivo revelou já possuir o gérmen do senso estético. Nossos antepassados das cavernas utilizavam pigmentos naturais (por exemplo, óxido mineral, carvão e argila). Não obstante a insipiência dos materiais, o artista já recorria a um sofisticado procedimento lógicomatemático capaz de organizar o espaço onde realizaria sua obra. 6 Assim é que a noção de composição e distribuição espacial encontrada nas pinturas pré-históricas demonstra que a aptidão criativa daqueles artistas, embora condicionada à técnica então disponível, extrapolava-a. O ímpeto criativo do ser humano, seu artistic drive, não estava preso ao rudimentar à sua volta. 4 ELLIOT, Steven; MILLER, Phillip et al. Inside 3D Studio MAX 2 Volume I. Indianápolis: New Riders, 1998. 5 Ver: FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985. 6 HILDEBRAND, Renato. As Imagens matemáticas: a semiótica dos espaços topográficos e suas representações no contexto tecnológico. Tese de Doutorado. PUC-SP. São Paulo, 2001.

84 A princípio, as técnicas utilizadas eram menos elaboradas. O artista seguia sua intuição, lançando mão do que encontrava em seu ambiente imediato. Ao passar dos séculos essas técnicas foram sendo aperfeiçoadas atingindo seu auge nas artes egípcia e grega. O conhecimento de novos materiais e pigmentos, o desenvolvimento da cerâmica, a arquitetura monumental, as esculturas fascinantes, influenciaram a arte numa tradição que dura até a atualidade. A câmera obscura No Renascimento, a instrumentalização já sofria os inexoráveis embargos das noções científicas. Desse modo, o uso da câmara obscura é inequívoca mostra do uso da tecnologia no processo de criação de um desenho ou uma pintura. Em 1490, Leonardo da Vinci descreve a câmara obscura. Para alguém do status intelectual do autor da Monalisa, a arte e a ciência constituíam uma única forma de atividade intelectual. Os artistas do Renascimento se preocupavam com a representação realista do espaço, com a perspectiva e a perfeita imitação da natureza, preocupações que tinham na câmara obscura sua maior aliada. Diversos artistas do período utilizaram a câmera obscura como o próprio Leonardo da Vinci e Jan Vermeer. 7 Ela 8 tornou-se o paradigma de status dominante do observador nos séculos XVII e XVIII. 9 A imagem em movimento, a persistência da imagem na retina Uma imagem, quando retirada de nosso campo visual, permanece por um breve período de tempo na retina. Esse fenômeno, a persistência da imagem, é responsável pelas ilusões de movimento que temos ao observarmos uma seqüência de imagens estáticas, desde que intercaladas num intervalo de tempo igual ou superior a 12 imagens por segundo. Apesar de este fenômeno já ser conhecido pelos antigos egípcios e de, em 1646, Athanasius Kircher descrever sua Lanterna Mágica que movimentava sombras e desenhos, foi no início do século XIX que aparecem os diversos instrumentos ópticos que revolucionaram as artes visuais. Aparelhos com nomes peculiares como taumatroscópio (1825), fenaquistoscópio (1832), zootroscópio e praxinoscópio (1877) 7 Para uma completa descrição do método usado e dos artistas que dele se utilizavam ver: HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 8 Apesar de o aparecimento da câmera obscura estar relacionado à Idade Média por Roger Bacon no século XIII, Aristóteles (384-322 ac) havia descrito os principais fundamentos dela. 9 CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge: MIT, 1992.

85 se valiam da persistência da imagem na retina para criar pequenas animações. Esses processos foram os precursores do que se tornou o cinema com a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumiére. Caixas pretas A invenção do daguerreótipo, a primeira forma popular de fotografia, foi anunciada ao mundo no dia 6 de janeiro de 1939. O invento ficou associado a Louis- Jacques Mandé Daguerre (1787-1851). Devemos lembrar, porém, que foi Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) que desenvolveu as bases teóricas, técnicas e científicas do processo. O inventor do negativo foi o inglês William Henry Fox Talbot (1800-1877) em 1840. De lá para cá, todas as demais invenções foram aperfeiçoamentos desse mesmo sistema. Outra revolução igual só veio a acontecer com o advento da câmera digital. A fotografia influenciou movimentos artísticos importantes como o impressionismo. Os artistas desse movimento se preocupavam com a captação de um determinado momento, típico da ação fotográfica. O ato de fotografar não significa estar fazendo algum tipo de arte visual. Uma máquina fotográfica, assim como qualquer outro aparelho, vem de fábrica com possibilidades pré-estabelecidas pelo fabricante. 10 A respeito do século XIX, Walter Benjamin afirma: a tecnologia submeteu a sensibilidade humana a um complexo tipo de treinamento. O ato artístico está no uso criativo, expressivo e original que o artista obtém, com seu talento, do aparelho usado, seja ele uma máquina fotográfica ou um computador. Fig. 1 Caricatura mostrando o fotógrafo substituindo um pintor retratista 10 Para aprofundar a questão sugerimos ler: FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985.

86 O tridimensional como ilusão A partir do Renascimento, principalmente no século XIX, a ciência e a arte apresentaram um entrelaçamento cada vez maior. Jonathan Crary em seu livro Techniques of the Observer, traz uma discussão pouco conhecida na história do olhar: a grande quebra paradigmática que foi o estereoscópio. Se a pintura e a fotografia interpretam o mundo tridimensional em duas dimensões, agora era possível ter a ilusão tridimensional a partir de imagens bidimensionais. A percepção espacial foi uma discussão importante no início do século XIX. Ela era algo inato na natureza humana ou algo aprendido aos poucos após o nascimento? Desde a Antigüidade era conhecido que cada um dos olhos enxerga imagens de maneira um pouco diferente. Mas esse fenômeno em particular tornou-se crucial para os cientistas a partir de 1830, nos seus estudos sobre a fisiologia e anatomia da visão. Vários cientistas como Wheatstone, Helmholtz e Brewster usaram como modelo de seus estudos o estereoscópio. O estereoscópio é um aparelho no formato parecido com um binóculo, por meio do qual cada olho vê uma imagem fotografada em ângulo similar ao que os olhos formam normalmente. O cérebro processa essas imagens como faria na visão natural, dando a sensação de tridimensionalidade. Apesar de ter se tornado uma forma popular de entretenimento, o estereoscópio foi caindo em desuso, não chamando muito a atenção e a curiosidade das pessoas já a partir de meados do século XX. Curiosamente, mesmo o cinema tridimensional e a realidade virtual geram uma curiosidade inicial, mas parecem não estar na preferência do observador, que ainda prefere focar sua atenção em planos fixos à sua frente como telas, palcos, monitores e similares. Alguns artistas, como Salvador Dali, pintaram telas, influenciados por esse tipo de conhecimento.

87 Apesar de desconfortável, basta simular estrabismo (cross view) para se conseguir o mesmo efeito. O olho direito focaliza a imagem esquerda e o olho esquerdo a imagem direita. Aparecem assim três imagens, a do centro com efeito tridimensional. Fig. 2 Olhando com os olhos cruzados ( ficar vesgo ), é possível observar esta imagem em três dimensões. O computador e a interação Tanto nas artes quanto nas ciências, as inovações e as invenções se sucederam de modo vertiginoso no século XX. Entre as grandes invenções, o computador sintetiza, ideológica e concretamente, uma gama de conquistas tecnológicas, tendo na Internet um verdadeiro corolário das necessidades de comunicação humana. O computador, incorporado inexorável e indissoluvelmente ao cotidiano moderno, subjaz às grandes mudanças nos paradigmas que conformam nossa apreensão da realidade, à semelhança do que ocorrera nos séculos XVII e XVIII com a câmara obscura e com o estereoscópio no século XIX. Holografia, simuladores de vôo, animações por computador, estereogramas, capacetes de realidade virtual, sensores diversos, mundos virtuais que reproduzem com milhões de pixels 11 as leis físicas como a ação da gravidade, onde objetos em colisão apresentam o comportamento de objetos reais, além de simulações de animais e do próprio ser humano 12 são apenas algumas das tecnologias que estão ampliando e renovando as formas de ver e de interagir com a obra de arte. É questionável a visão conservadora de que as técnicas e tecnologias atuais impõem interferência redutora à expressão artística. Hoje se compreende que o entrelaçamento da tecnologia com a arte é muito mais evidente, necessário e, quiçá, inevitável, o que torna o momento 11 O pixel pode ser considerado um dos elementos plásticos mais dinâmicos: é possível fazer quase tudo com ele. 12 A idéia da arte como mimesis implica uma cópia da natureza, real ou ideal. As simulações possíveis na computação gráfica atual relembram a mimese da Renascença.

atual singular no que se refere ao imprescindível intercâmbio entre cientistas e artistas, a propalada interdisciplinaridade tão em voga. 88 CONCLUSÃO Nas próximas décadas, a tecnologia deverá alcançar desenvolvimentos técnicos surpreendentes, revolucionários e, mesmo, inimagináveis. Novos paradigmas deverão surgir obrigando a negociações de significados e a ressignificações que modificarão a nossa cosmovisão. O artista é um agente cujo fazer está na gênese de muitas dessas transformações. A perspectiva Renascentista, por exemplo, ainda ensinada nas escolas, teve suas marcas limítrofes diluídas, passando de um status de claro delineamento para o de ilusão ou como forma simbólica (Baltrusaitis e Panofsky). Assim, também, a percepção de espaço e tempo sofreu transformações com o surgimento da locomotiva em 1825. A multiplicidade de estímulos visuais, principalmente a partir do século XIX, apresenta um fértil e curioso material para investigação. Os livros de história em trânsito pelas faculdades preenchem pouco essa lacuna e, num sucinto exame da grade curricular de faculdades de Belas Artes, constata-se que a maioria não faz constar disciplinas que encaminhem o educando a pesquisas e experimentações de arte tecnológica. À guisa de exemplo, note-se que os computadores estão presentes em cursos sem grande tradição em arte e vistos ainda com certa desconfiança nas escolas tradicionais de arte. REFERÊNCIAS BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge: MIT, 1992. ELLIOT, Steven; MILLER, PHILLIP et al. Inside 3D Studio MAX 2 Volume I. Indianápolis: New Riders, 1998. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985. HILDEBRAND, Renato. As Imagens matemáticas: a semiótica dos espaços topográficos e suas representações no contexto tecnológico. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2001. HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. PANOFSKY, Erwin. La perspective comme forme symbolique. Paris: Minuit, 1975.