Termos de Tipos Naturais, C. S. Peirce e Aptidão Semântica 1 Daniel C. Baiardi (CAPES/UFBA) baiardi@usp.br A] Introdução ao Tema Após os experimentos mental de Putnam (1975), muito se falou sobre classes naturais, muito embora, este tema seja explorado na tradição filosófica, de maneira mais ampla, sob a alcunha de o problema dos universais. Movidos pela insatisfação diante da aproximação de Putnam aos termos de tipos naturais (TTNs), muitas críticas (Dupré, 1981; Brown, 1998) foram apresentadas para aquilo que seria o equívoco: a teoria de Kripke (1972) para nomes próprios estendida para tipos naturais. Ora, não podemos esquecer que a intenção de Putnam era outra, a saber, uma crítica ao descritivismo herdado de Frege e Russell, o qual, defende, grosso modo, que os significados estão na cabeça. A aproximação causalista, uma reação ao descritivismo, é denominada como Teoria Kripke-Putnam aos Tipos Naturais (TNs) e se baseia em uma teoria causal da referência. Uma das consequências do experimento mental de Putnam (o experimento fora desenvolvido especialmente com essa intenção) é a constatação de que os significados não estão na cabeça. Na minha opinião, creio que na de Peirce também, isto seria assentir a uma falsa dicotomia. Peirce já alertava para o perigo de se fazer filosofia com um machado, para fazer frente a esse mau hábito, ele desenvolveu uma doutrina da continuidade, o sinequismo. Na perspectiva de Peirce, a significação é um processo, que só pode ocorrer na interação da mente com o mundo. Neste ambiente, esse mundo, no qual a mente se encontra, podemos ainda encontrar uma comunidade linguística que, naturalmente, apresenta demandas por convenções linguísticas. Os problemas em torno da aproximação Kripke-Putnam, no meu entender, se concentram em torno da sua visão do conhecimento e de seus critérios associados para conferir valor de verdade às crenças (ou proposições), critérios dificilmente satisfeitos com a teoria da referência adotada. Kripke assume que a referência se dá através daquilo que ele denominou designadores rígidos. Um designador rígido é algo que faz referência a um mesmo objeto em todos os mundos possíveis e em mundos onde esse objeto não existe, não faz referência a coisa alguma. Minha crítica a essa posição parte de uma forte suspeita de que esta teoria da referência falha em descrever de maneira coerente o fenômeno da significação. Este tipo de aproximação sustenta-se em uma relação quase mágica entre nomes e objetos, no caso dos TTNs, entre um nome e uma classe natural. A teoria da referência para nomes próprios, quando aplicada a classes naturais, pressupõe algo como um dicionário dos anjos, onde cada termo está ligado por uma relação especial a um tipo natural. Se fizermos uma inferência sobre tipos e não obedecemos à risca essa relação de significação, incorreremos em erro e nossa inferência será falsa, ou ainda, destituída de conhecimento. Dessa forma, a aproximação causalista ao estilo Kripke-Putnam fere seriamente uma visão naturalizada e pragmática da significação. Uma outra acusação é que Putnam funde essência nominal e essência real, construindo um essencialismo nocivo (cf. Dupré, 1981). Uma aproximação satisfatória aos tipos naturais deve descrever de maneira consistente três fenômenos distintos: discriminação, batismo e uso (seja no raciocínio ou na comunicação). Dessa forma, nosso problema se transforma em um tríplice problema. Ao que parece, o 1 Este artigo é um esboço, não utilizá-lo sem autorização. 1
processo de discriminação é um problema metodológico ou comportamental; o batismo, por sua vez, semântico e pragmático e; por fim, o seu uso, que se apresenta como uma questão lógica e epistêmica. Obviamente, ainda resta a questão se as classes as quais nos referimos existem ou não, ou seja, um problema ontológico. Há algum tempo encontrei no pragmatismo uma tradição que joga luz sobre o empreendimento de descrever melhor esses fenômenos. Assim, não me comprometo com a construção de uma teoria, mas de uma imagem para ajudar a refletir sobre nossa relação com os TTNs. Para assegurar ao leitor uma compreensão coerente dos meus argumentos, devo alertá-lo de que acatarei aqui à sugestão de Peirce para assumirmos uma variante do realismo escolástico (inspirado em Scotus), o qual Hausman (1993) prefere tratar, com bastante razão, como realismo evolucionário 2. Para Peirce, um TTN não é um universal, mas um termo genérico. Dentro da ontologia peirceana que comporta três modalidades de existência, estes genéricos tem lugar na terceiridade, não existem na natureza como em um realismo imanente, contudo, isso não significa que Peirce apela a um sujeito transcendente. Peirce vai apostar em um sujeito social. Dessa forma, um genérico é real ao mesmo tempo em que não existe no mundo concreto. Apresento como argumento a favor do realismo escolástico os casos de mimetismo (ver apêndice), que eu denomino como demônio semiótico (ou Demônio de Baiardi se a ideia for pra frente). Importante lembrar que o realismo escolástico pressupõe que existe algo como uma classe natural que desfruta de um estatuto de independente do pensamento, ou seja, não se trata de uma ficção, mas uma abstração que, de alguma forma, corresponde com algo real. Where is the real, the thing independent of how we think it, to be found? There must be such a thing, for we find our opinions constrained; there is something, therefore, which influences our thoughts, and is not created by them (CP 8.12, 1871). Peirce, apesar de inspirado pelo idealismo alemão, assumindo a primazia do fenômeno, se curva à autoridade da experiência. Como em Aristóteles, encontramos no Lógico de Milford uma forte identificação entre realidade e aparência. Ao contrário de Kant, ele nega a incognoscibilidade do noumenon. Nessa posição fenomenológica, organizada sob as suas categorias cenopitagóricas, Peirce assume que existem três modos de ser: primeiridade, segundidade e terceiridade. Primeiridade Segundidade Terceiridade Qualidade Relação Representação Quale Relate Representamen Chance Esforço Evolução Esportividade Resistência Mediação Vida Fato Hábito Frescura Luta Simpatia Vitalidade Experiência Conduta Idiossincrasia Ação Contrato Imediatidade Reação Leis da Natureza Possibilidade Causalidade Genéricos Originalidade Alteridade Crença Espontaneidade Negação Causas finais 2 Para o esclarecimento de conceitos e doutrinas, em Peirce, recomendo duas fontes on-line: Arisbe, do Peirce Edition Project [http://www.iupui.edu/~arisbe/] e Peirce Digital Encyclopedia of Charles S. Peirce, da Unicamp [http://www.digitalpeirce.fee.unicamp.br/home.htm]. 2
Enquanto Kripke e Putnam entendem a significação enquanto uma relação diádica entre um signo e um significante, na estrutura do processo de significação de Peirce, esta relação é triádica e envolve um signo, um objeto (fenomenológico) e um interpretante (que não é o intérprete). Enquanto uma relação diádica pode explicar com facilidade e simplicidade uma condição ideal e estática de significação, a relação triádica se apresenta como uma alternativa viável para uma aproximação que comporte fatores como o tempo, a subjetividade dos conteúdos mentais e o meio social. Now a sign has, as such, three references: first, it is a sign to some thought which interprets it; second, it is a sign for some object to which in that thought it is equivalent; third, it is a sign, in some respect or quality, which brings it into connection with its object (CP 5.283, 1898). Alguns filósofos (Brown, 1998; Sterelny, 1983) sugeriram que um TTN estabelece sua referência (diádica) quando associados a uma capacidade de reconhecimento para o tipo em questão. Grosso modo, esta capacidade está envolvida com uma série de testes para identificar o tipo da amostra, de acordo com circunstâncias específicas. Esta é uma descrição do que denominei como discriminação do TN. Apesar de Peirce ter defendido este método para a discriminação antes (apesar de baseado em uma referência triádica), estes não deram créditos ao lógico de Milford. A vantagem desse método é que não se entrega ao essencialismo com o qual Putnam se compromete. Entretanto, em uma aproximação evolucionista (onde não negligenciamos o papel do Tempo), partimos do pressuposto de que os mais remotos ancestrais de nossa espécie já possuíam capacidades de reconhecimento para muitos tipos naturais. Temos relações atávicas com tipos naturais, assim como casos de batismo, que datam de milhares e milhares de anos. Os casos de batismo são caros para a descrição causal, pois a referência é estabelecida, muitas vezes, de forma ostensiva. O sinequismo de Peirce, ou sua doutrina da continuidade, não vê uma distinção estanque entre o conhecimento animal, aquele possuído pelo senso comum e o denominado científico. O desenvolvimento dos métodos, o aumento da precisão e o incremento do conteúdo é uma diferença de grau e não de natureza. Dessa forma, Peirce aspirou por construir uma teoria geral dos signos e uma teoria geral da representação, as quais, na opinião de muitos pode dar conta dessa ampla gama de processos cognitivos. Um outro ponto importante para orientar o leitor é que assumirei uma teoria convergentista da verdade. Comprometido com essa posição, Peirce se afasta do relativismo e pode assegurar um método falibilista positivo para as ciências. Essa teoria permite que a posição de Peirce também admita um pluralismo metodológico sem cair no relativismo. 3
B] Hipótese do Trabalho De acordo com a análise de Brown (1998), a aproximação causal de Kripke-Putnam falha em lidar com duas condições: (i) Tipos naturais ocorrem em amostras impuras, o que configura o problema da composição 3. Exemplos: Em uma garrafa de água mineral, nós podemos encontrar muitas substâncias dissolvidas. Rubis e safiras são ambos compostos de óxido de alumínio, eles diferem apenas por pequenas concentrações de minerais que dão cores variadas às amostras. (ii) Tipicamente, um objeto que instancia um tipo natural, também instancia outros, estabelecendo o problema de nível superior. Exemplo: um espécime de serpente peçonhenta pode instanciar, por exemplo, uma jararaca-ilhoa, uma amostra do gênero Bothrops, um membro da família Vipera, um réptil, ou simplesmente um animal 4. Acrescentarei ainda, outra falha, a qual continua negligenciada pela tradição analítica (inclusive por Brown): (iii) o problema da mudança semântica, i.e., quando o significado e o uso de um TTN muda ao longo da história. Exemplos: Gene, Planeta, Átomo. Partindo desse triplo diagnóstico da insuficiência da teoria causal da referência, somos levados a crer que muitas proposições contendo TTNs são falsas e, dessa forma, destituídas de conhecimento. Entretanto, algumas delas nos guiam sentido a conclusões verdadeiras e nos são úteis, tanto para nosso dia-a-dia como para a nossa melhor ciência. Isto se deve ao fato de que, apesar dos termos usados não satisfazerem os critérios rígidos de referência, eles são aptos para dirigir nossa ação no mundo. Lembrando que, termos fazem ou não referência, mas não faz sentido dizer que são verdadeiros ou falsos; proposições são verdadeiras ou falsas e, por sua vez, não fazem referência. Dessa forma, somente com uma referência assegurada podemos conferir valor de verdade a uma sentença. No caso dos tipos naturais, diante da indeterminação (considerando fatores como impureza, variedade e transformação) e da incerteza temos boas razões para crer que um termo apto, mesmo com problemas na referência diádica, pode credenciar sua proposição à condição de proposição apta. Tomemos as seguintes proposições como exemplo (TTNs em destaque): a) Esta garrafa contém uma amostra de H 2O; b) Este fóssil é um exemplar de Homo habilis (diante de um forte candidato); c) Plutão é um planeta. 3 Em muitos aspectos, este problema é similar a dificuldade da comunidade imperfeita, assim como Nelson Goodman o apresenta em The Structure of Appearance (1966). Neste caso, encontramos populações de organismos que diferem significativamente uns dos outros, transformando uma lista descritiva de propriedades essenciais em uma tarefa impossível. 4 Se acompanhamos uma vítima deste animal a um posto de saúde, podemos perceber que nem sempre o mais amplo ou o mais preciso enquadramento é o termo mais apto, mas sim, o que determina o termo mais apto é a situação. Vamos supor que a enfermeira não sabe nada de zoologia e só conhece dois termos, expostos a sua experiência, todos os dias, através dos rótulos: soro antibotrópico e soro anticrotálico. 4
Do ponto de vista rígido e essencialista da teoria causal de Putnam, todas são as proposições são falsas. Minha hipótese é que muitas destas proposições, de certa forma, contingentes, são aptas para determinada circunstâncias e inaptas para outras. Ao passo que, toda proposição verdadeira é, obviamente, apta. Proposições aptas salvam as aparências e podem nos ajudar no aprendizado e em predições, elas são ferramentas úteis para o raciocínio ordinário. Dessa forma, nos afastamos do risco de dispensar o bebê com a água do banho. Sob esses pressupostos, a seguinte definição de aptidão semântica para o uso de um termo me parece sustentável: Quanto maior a eficiência de um dado termo (t), ou signo, para uma tarefa, mais apto ele será para determinada tarefa. A tarefa pode ser a construção de uma inferência simples ou a comunicação. Para mensurar a aptidão, ou os efeitos práticos, de t para a construção de inferências para o raciocínio privado, cientistas (assim como o senso comum) podem fazer uso (e fazem) de alguns fatores de avaliação, a saber: (1) precisão (e acurácia) em descrever a natureza (e assim, projetabilidade); (2) comensurabilidade com outros vocabulários (e ontologias); (3) parcimônia. Entretanto, se nosso objetivo é comunicar nossas inferências a outros agentes cognitivos, devemos considerar também a recepção desse termo, prevalecendo fatores como: (4) difusão de t (ou popularidade, i.e., se é conhecida) dentro da comunidade linguística e (5) preferências éticas e estéticas dos interlocutores e das suas comunidades 5. O termo mais apto revela uma relação ótima (no sentido de Pareto) na manifestação dos valores cognitivos. É através da aplicação desses valores que identificamos um termo mais eficiente para nossos propósitos. Esta avaliação funciona como um experimento mental onde avaliamos as implicações intelectuais de um termo utilizado. C] Bibliografia Fontes Primárias: PEIRCE, C. S. (CP) Collected Papers of Charles Sanders Peirce (Electronic Edition). Charles Hartshorne and Paul Weiss Eds. Cambridge: Harvard University Press, 1931-1935. Fontes Secundárias: BROWN, Jessica (1988) Natural Kind Terms and Recognitional Capacities In: Mind, New Series, Vol. 107, No. 426 (April, 1998), pp. 275-303. DUPRÉ, John (1981) Natural Kinds and Biological Taxa In: The Philosophical Review, Vol. 90, No. 1 (Janeiro, 1981), pp. 66-90. HAUSMAN, Carl R. (1993). Charles S. Peirce Evolutionary Philosophy. Cambridge University Press; Cambridge, 1997. KRIPKE, Saul (1972). Naming and Necessity. Oxford: Blackwell, 1980. PUTNAM, H. (1975) 'The Meaning of meaning ' in H. Putnam, ed., Mind, Language and Reality: Philosophical Papers, Vol. 2, Cambridge: Cambridge University Press, 1975. STERELNY, Kim (1983). Natural kinds terms In: Pacific Philosophical Quarterly, Vol. 64, pp. 110-25. 5 Em ambos os casos, tanto para simples inferências como para a comunicação, talvez outros (n) fatores sejam relevantes. Importante lembrar que, para Peirce, o significado de qualquer conceito é a soma de todas as possíveis consequências. 5
APÊNDICE: MIMETISMO / DEMÔNIO SEMIÒTICO