Planos Diretores, participação popular e a questão indígena: reflexões sobre o texto constitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM)

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Transcrição:

Planos Diretores, participação popular e a questão indígena: reflexões sobre o texto constitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM) Mariana Levy Piza Fontes 1 Após 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, o presente artigo pretende estabelecer reflexões sobre uma questão específica, ainda não evidente quando da realização da Assembléia Nacional Constituinte: as conexões e desafios de se promover a participação popular na elaboração de planos diretores em Municípios, cuja maioria da população é indígena. A regulamentação do art. 182, a promulgação do Estatuto da Cidade e o estabelecimento de prazos e requisitos de participação popular pelo Estatuto da Cidade (art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 da Lei 10.251/2001) conjugado ao recente incremento da urbanização na região amazônica observada na última década estabelecem novos desafios para a gestão democrática das cidades no Brasil. Planejamento urbano na Constituição de 1988 O planejamento urbano no Brasil sofre mudanças significativas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). Este marco jurídico-urbanístico incorpora a crítica formulada ao modelo de planejamento urbano no Brasil, especialmente àquele implementado durante o regime militar. O planejamento urbano brasileiro alimentou-se da matriz modernista/funcionalista implementada ao longo do século XX, cujas raízes iluministas e positivistas baseavam-se na crença absoluta na ciência, técnica, racionalidade e neutralidade do planejamento. É durante o regime militar que essa concepção de planejamento urbano adquire força e importância. São criados dois órgãos federais de planejamento (SERFHAU e SAREM),uma quantidade inédita de Planos Diretores é produzida, órgãos municipais de planejamento e escolas de arquitetura proliferam-se. O planejamento é tomado como solução para o grande caos urbano. Tudo se resumiria a uma questão de eficiência e competência técnica. Paradoxalmente, é durante esse mesmo período que as cidades brasileiras mais crescem fora da lei, com aumento expressivo de favelas, cortiços, loteamentos irregulares e clandestinos em todo o país. Essas diretrizes e sistemas de planejamento vigoraram até a década de 80. Durante a Assembléia Nacional Constituinte, esta concepção de planejamento 1 Advogada, mestranda em Direito Urbanístico Ambiental pela PUC/SP. Cientista social formada pela Universidade de São Paulo. Foi assessora técnica da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e atualmente é Coordenadora Geral de Estudos e Pesquisas da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

urbano burocrática e tecnocrática é colocada em cheque pela Emenda Popular da Reforma Urbana, apresentada por uma série de movimentos sociais urbanos, associações não governamentais (ONGs), entidades de classes, etc 2, e subscrita por 130.000 eleitores. A iniciativa popular propôs uma série de instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade urbana, bem como uma proposta de gestão democrática das cidades, rejeitando a idéia de um plano-discurso, a ser elaborado unicamente pelo Estado. O texto original da emenda popular da reforma urbana não previa expressamente a expressão plano diretor, que acabou por ser incorporado na própria definição da função social da propriedade urbana. Conforme a explicação da urbanista Ermínia Maricato, indicada pelas entidades signatárias da emenda para defende-la no Plenário Constituinte: A rejeição ao plano diretor significou a rejeição de seu caráter ideológico e dissimulador dos conflitos sociais urbanos. Além de ignorar a proposta de plano diretor, a iniciativa popular destacou a gestão democrática das cidades, revelando o desejo de ver ações que fosse além dos planos 3 Do embate constituinte, porém, nasce o capítulo Da Política Urbana, que consagra o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, obrigatório aos Municípios com mais de 20.000 habitantes (art. 182, 1º, CF). Mais do que isso, o Plano Diretor passa a definir o conteúdo concreto do princípio da função social da propriedade urbana (art. 182, 2º, CF). Ressalte-se que o texto constitucional, pela primeira vez, vincula a definição da função social da propriedade ao processo de planejamento territorial municipal. De um lado, o planejamento territorial não é mais considerado como intervenção do Estado no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio restrito do direito de propriedade, a respeito do qual a ordem constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atuação da atividade urbanística. 4 Conseqüentemente, por tratar-se de dispositivo ligado diretamente à delimitação do próprio direito de propriedade 5, não se aplicaria o art. 174 da Constituição Federal, que determina que o planejamento será meramente indicativo para o 2 Dentre elas a Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento de Defesa do Favelado (MDF), Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), Coordenação Nacional dos Mutuários e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) (Nelson Saule Junior, Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor, p. 25. 3 Ermínia Maricato, As idéias fora o lugar e o lugar fora das idéias:planejamento urbano no Brasil. In Otília Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2000,p. 175, apud, José Roberto Bassul, ob.cit., p. 82.. 4 José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 93. 5 Convém lembrar que a função social não deve ser confundida com limitação do direito de propriedade. Isto porque as limitações administrativas dizem respeito ao exercício do direito pelo proprietário. De maneira distinta, a função social interfere na estrutura do direito mesmo (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 75)

setor privado. O Plano Diretor é totalmente determinante para os proprietários privados, que a eles são obrigados a ajustar seus comportamentos 6. De outro lado, o texto constitucional e, posteriormente, o Estatuto da Cidade acabam por substituir a concepção do planejamento urbano municipal como processo puramente técnico e neutro. A participação popular no processo de planejamento municipal e, especialmente na elaboração dos Planos Diretores, passa a ser exigida como condição obrigatória, sob pena de improbidade administrativa (art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 do Estatuto da Cidade). Parte-se de um reconhecimento constitucional, de que embora tenha conteúdo técnico, o planejamento é um processo político. Não existe, pois, planejamento neutro. As ações de planejamento estão sempre voltadas para o futuro, voltadas para a transformação social. E essa transformação social se dá tanto ao longo do tempo como no espaço. 7 Trata-se, portanto, de visão que incorpora o processo político ao planejamento urbano, garantindo a participação daqueles tradicionalmente excluídos da construção das cidades. O processo de elaboração do Plano Diretor visa garantir uma esfera política, democrática, capaz de construir consenso entre os mais diversos atores sobre o futuro das cidades. Este reconhecimento jurídico da necessidade de um processo político de planejamento urbano nas cidades brasileiras adquire uma nova em complexa amplitude no caso de Planos Diretores elaborados em Municípios situados na Amazônia, especialmente naqueles situados em terras indígenas sejam elas demarcadas ou não. Os índios e o processo participativo Dentre aqueles tradicionalmente excluídos do planejamento estatal no Brasil, está a população indígena. O constituinte de 88 houve por bem considerar os índios como sujeito de direitos, reconhecendo sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (art. 231, CF). Com efeito, o texto constitucional menciona também as populações indígenas (art. 22, inciso XIV) e a comunidade indígena (art. 232). Trata-se, pois do reconhecimento de um sujeito de direitos sui generis. De um lado, os direitos indígenas dizem respeito a uma comunidade cultural específica, ligada à raça (fator biológico) e a valores (crenças, costumes, língua, tradições). Nesse sentido, há uma proteção constitucional a cada uma das características peculiares das etnias presentes no território brasileiro. Por outro lado, cada índio em particular é 6 Carlos Ari Sundfeld, O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 50. 7 Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 31.

considerado brasileiro e é dotado dos benefícios da nacionalidade e cidadania (arts. 1º, parágrafo único e art. 5º da Lei 6.001/73). 8 O aumento dos processos de urbanização na região amazônica impõe a juristas e urbanista uma leitura conjunta desses direitos indígenas e do capítulo da Política Urbana. Com efeito, a presença de uma enorme diversidade étnica em um mesmo território e a necessidade de se garantir processos efetivamente democráticos na aprovação de Planos Diretores colocam novas questões para o Direito Urbanístico brasileiro. É o que se verá a partir da análise do Município de São Gabriel da Cachoeira. O Município de São Gabriel da Cachoeira 9 O Município de São Gabriel da Cachoeira localiza-se no noroeste do Estado do Amazonas em plena floresta amazônica, na fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia. Sua extensão é de 109.108 k2. Trata-se de um dos maiores municípios brasileiros. Além disso, sua população é predominantemente indígena - 81,66% do território do Município de São Gabriel da Cachoeira são terras indígenas demarcadas 10. O território municipal congrega mais de 23 povos indígenas distintos. São etnias residentes do Município de São Gabriel da Cachoeira: Arapaso, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapauã, Kubeo, Kunipako, Makuna, Miriti tapuya, Nadob, Piratabuya, Potigua, Guiano, Taiwano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana, Werekena, Yanomami. A diversidade étnica se expressa também na quantidade de línguas faladas por essas comunidades: são mais de 20 línguas distintas, provenientes de troncos lingüísticos específicos, tais como o Tupi, o Tukano Oriental, o Maku, o Aruak e Yanomami. O Município de São Gabriel da Cachoeira co-oficializou, inclusive, as línguas Nhengatu, Tukano e Baniwa (Lei municipal nº 145/2002) ao lado do português, idioma brasileiro oficial (art. 13 da Constituição Federal). Nesse contexto étnico-cultural, São Gabriel da Cachoeira elaborou recentemente seu Plano Diretor, que foi aprovado pela Lei municipal nº 209/06. Não obstante o enorme leque de questões jurídicas importantes trazidas pelo Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira conflitos fundiários, as terras indígenas e a questão 8 Tercio Sampaio Ferraz Jr, Direito Constitucional. Liberdade de fumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros Temas, p.503. 9 A análise do processo de elaboração do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira foi elaborada com base nos relatórios elaborados pelo Instituto Polis (Instituto de Assessoria, Pesquisa e Formação em Políticas Públicas) e pelo ISA (Instituto Socioambiental). 10 Este número pode chegar a 90% com a conclusão dos processos de demarcação das terras do Balaio e Marabitana Cué Cué.

federativa, o urbano e o rural na Amazônia 11, sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, entre outros - a construção de um processo democrático em um imenso território com a presença de diferentes etnias já é, em si, um desafio. A elaboração de Planos Diretores participativos é condicionada a uma série de requisitos, tais como a coordenação compartilhada entre governo e sociedade civil 12 ; a publicidade (art. 4º da Resolução 25 e art. 40, 4º, II do Estatuto da Cidade), e a diversidade do processo participativo, através da realização de debates por segmentos, por temas e por divisões territoriais (art. 5º, inciso I, da Resolução 25). Ora, como garantir um processo participativo em um território cujas etnias falam línguas distintas? Como se compartilhar um processo de elaboração de Planos Diretores quando a distância a ser percorrida entre a sede do Município, pode durar dias e com altos custos? Como se estabelecer divisões territoriais para os debates quando cada pedaço de terra possui um altíssimo valor simbólico, cultural, mítico? São questões que surgem a partir da realidade amazônica concreta e das recentes transformações no processo de urbanização brasileiro. O texto constitucional e o novo marco jurídico urbanístico brasileiro precisam, pois, ser analisados a partir desses novos desafios, articulando o planejamento territorial e os direitos indígenas, articulando não só capítulos do texto constitucional, mas o próprio Estatuto das Cidades e Estatuto do Índio, de modo a garantir a construção de cidades mais justas e a preservação de culturas tão distintas. BIbliografia BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade. Quem ganhou? Quem perdeu?, Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. BERCOVICI, Gilberto, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2005. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional. in Direito Constitucional. Liberdade de fumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros Temas, Editora Manole 11 Sobre uma leitura jurídica mais ampla sobre o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, vide Nelson Saule Junior e outros, Plano Diretor no Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos Relevantes da Leitura Jurídica. In Direito Urbanístico Brasileiro: vias jurídicas da Política Urbana, pgs. 235 a 284. 12 (art. 3º, 1º da Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades).

SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos relevantes da Leitura Jurídica, indireito Urbanístico. Vias Jurídicas das Políticas urbanas, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2007. SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro, 4 edição, São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006. SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 2ª edição, São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2006.