O USO DA MONTAGEM E DE ESTRANGEIRISMOS EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR



Documentos relacionados
O USO DA MONTAGEM E DE ESTRANGEIRISMOS EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR

A diferença entre charge, cartum, tirinha e caricatura

Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; e Ele passou a ensiná-los dizendo... Mateus 5.

Os encontros de Jesus. sede de Deus

Língua Portuguesa Introdução ao estudo do conto. III Média

LEIA ATENTAMENTE AS INSTRUÇÕES

GÍRIA, UMA ALIADA AO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA ESTRANGEIROS Emerson Salino (PUC-SP) João Hilton (PUC/SP)

ANÁLISE DE COMPREENSÃO DE TEXTO ESCRITO EM LÍNGUA INGLESA COM BASE EM GÊNEROS (BIOGRAFIA).

FORMAÇÃO DOCENTE: ASPECTOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS E INSTITUCIONAIS

Oração. u m a c o n v e r s a d a a l m a

Atividade: Leitura e interpretação de texto. Português- 8º ano professora: Silvia Zanutto

ENSAIO. L âme de fond. As impressionantes longas exposições de Philippe Mougin estimulam viagens muito além da imaginação

Finalmente, chegamos ao último Roteiro de Estudos do Segundo ano! Você já sabe como proceder! Organize seu material, revise o conteúdo e mãos à obra!

FORTALECENDO SABERES DESAFIO DO DIA DINÂMICA LOCAL I CONTEÚDO E HABILIDADES ARTES. Conteúdo: - Cubismo e Abstracionismo

PRÉ-LEITURA ATIVIDADES ANTERIORES À LEITURA INTENÇÃO: LEVANTAR HIPÓTESES SOBRE O LIVRO, INSTIGAR A CURIOSIDADE E AMPLIAR O REPERTÓRIO DO ALUNO

A arte do século XIX

5 Equacionando os problemas

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

Lev Semenovich Vygotsky, nasce em 17 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, em Bielarus. Morre em 11 de junho de 1934.

SERVIÇO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Secretaria de Estado da Educação Superintendência Regional de Ensino de Carangola Diretoria Educacional

QFD: Quality Function Deployment QFD: CASA DA QUALIDADE - PASSO A PASSO

O Jogo dos Espíritos

A SEMANA DE ARTE MODERNA FEVEREIRO DE 1922

LEV VIGOTSKY 1. VIDA E OBRA

Para a grande maioria das. fazer o que desejo fazer, ou o que eu tenho vontade, sem sentir nenhum tipo de peso ou condenação por aquilo.

REFLEXÕES PEDAGÓGICAS SOBRE A DANÇA NO ENSINO MÉDIO

AS MAIS DE DUZENTAS MENSAGENS DE UM OTIMISTA

A criança e as mídias

MATERIAL COMPLEMENTAR PARA ESTUDOS HISTÓRIA DA ARTE- 2ª SÉRIE ENSINO MÉDIO

CONTROL+EU. Marcelo Ferrari. 1 f i c i n a. 1ª edição - 1 de agosto de w w w. 1 f i c i n a. c o m. b r

Terapia Comunitária como metodologia de Desenvolvimento Comunitário

MODERNISMO. História da Arte Profº Geder 1ª Série Ensino Médio (2012)

REDE PRÓ-MENINO. ECTI - Escola no Combate ao Trabalho Infantil ATIVIDADE MÓDULO 2 (COLAGEM) EM INTEGRAÇÃO COM O MÓDULO 1- B (ENTREVISTA)

O SOM E SEUS PARÂMETROS

ORIENTAÇÕES PARA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO JORNAL REPORTAGEM RESENHA CRÍTICA TEXTO DE OPINIÃO CARTA DE LEITOR EDITORIAL

Proposta de Trabalho para a Disciplina de Introdução à Engenharia de Computação PESQUISADOR DE ENERGIA

FACULDADE EÇA DE QUEIRÓS

PROVA BIMESTRAL Língua portuguesa

FUNÇÕES DA LINGUAGEM. Professor Jailton

Desvios de redações efetuadas por alunos do Ensino Médio

Bruno é professor, palestrante e criador do canal Papo de Vestibular

46 Dona Nobis Pacem: alturas Conteúdo

Os desafios do Bradesco nas redes sociais

Ler em família: viagens partilhadas (com a escola?)

Pedro Bandeira. Leitor em processo 2 o e 3 o anos do Ensino Fundamental

Informativo G3 Abril 2011 O início do brincar no teatro

John Locke ( ) Colégio Anglo de Sete Lagoas - Professor: Ronaldo - (31)

LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

O DESENVOLVIMENTO DOS SABERES EXPERIENCIAIS ACERCA DAS EMOÇÕES NAS PRÁTICAS DOS BOLSISTAS DE INICIAÇÃO A DOCÊNCIA

Elaboração de Projetos

Design para internet. Resolução. - No Design Gráfico quanto maior o DPI melhor. - Na web não é bem assim.

Peça teatral Aldeotas : processos de criação e relações entre o teatro narrativo, a encenação e a voz cênica do ator Gero Camilo.

E quem garante que a História é uma carroça abandonada numa beira de estrada? (Hollanda, C. B; Milanes, P. Canción por la unidad latinoamericana.

REFLEXÕES SOBRE OS CONCEITOS DE RITMO

Prof. Daniel Santos Redação RECEITA PARA DISSERTAÇÃO ARGUMENTAÇÃO ESCRITA - ENEM. E agora José?

Acasos da Vida. Nossas Dolorosas Tragédias

Anexo Entrevista G1.1

Unidade IV Ciência: O homem na construção do conhecimento Aula 34.1 Conteúdo: Artigo de divulgação científica.

MODERNISMO SEGUNDA GERAÇÃO ( )

SOBRE A DESCONSTRUÇÃO ROMANESCA EM BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA

FERNANDO TARALLO EM TRÊS MOMENTOS

Do Jornalismo aos Media

Urban View. Urban Reports. Butantã: a bola da vez na corrida imobiliária paulistana

emanuel dimas de melo pimenta

Blogs corporativos: uma inovação na Comunicação Organizacional 1

JAKOBSON, DUCHAMP E O ENSINO DE ARTE

JOSÉ DE ALENCAR: ENTRE O CAMPO E A CIDADE

qwertyuiopasdfghjklzxcvbnmqwerty uiopasdfghjklzxcvbnmqwertyuiopasd fghjklzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklzx cvbnmqwertyuiopasdfghjklzxcvbnmq

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

2. 1 A poesia trovadoresca - Leitura de cantigas de amor e de amigo semântico, sintático, lexical e sonoro;

Resumo Aula-tema 01: A literatura infantil: abertura para a formação de uma nova mentalidade

(Prof. José de Anchieta de Oliveira Bentes) 3.

Visite nossa biblioteca! Centenas de obras grátis a um clique!

ESTRUTURAS NARRATIVAS DO JOGO TEATRAL. Prof. Dr. Iremar Maciel de Brito Comunicação oral UNIRIO Palavras-chave: Criação -jogo - teatro

Morro da Favella. Fatos e lendas da primeira favela do Brasil

uma representação sintética do texto que será resumido

Alfabetizar e promover o ensino da linguagem oral e escrita por meio de textos.

TRABALHANDO A CULTURA ALAGOANA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID DE PEDAGOGIA

JUQUERIQUERÊ. Palavras-chave Rios, recursos hídricos, meio-ambiente, poluição, questão indígena.

RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE RACIOCÍNIO LÓGICO-MATEMÁTICO

Como ponto de partida para esse trabalho, considerem o texto a seguir. [ ] Mas a fotografia é arte? Claro que é! Pois o fotógrafo não se limita a

Urban View. Urban Reports. Higienópolis: como o metrô de gente diferenciada influencia no mercado imobiliário

ORATÓRIA ATUAL: desmistificando a idéia de arte

Tipos de Resumo. Resumo Indicativo ou Descritivo. Resumo Informativo ou Analítico

A PRODUÇÃO AUTOBIOGRÁFICA EM ARTES VISUAIS: UMA REFLEXÃO SOBRE VIDA E ARTE DO AUTOR

Avanços na transparência

GRUPO I Escolha múltipla (6 x 10 pontos) (circunda a letra correspondente à afirmação correcta)

Portfólio fotográfico com o tema Unicamp Caroline Maria Manabe Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes

Não adianta falar inglês sem fazer sentido. 1

Leya Leituras Projeto de Leitura


Educação de Filhos de 0 a 5 anos. Edilson Soares Ribeiro Cláudia Emília Ribeiro 31/03/2013

Duração: Aproximadamente um mês. O tempo é flexível diante do perfil de cada turma.

PROJETO DE LEITURA A PEDRA NO SAPATO DO HERÓI ORÍGENES LESSA INTENÇÃO: INSTIGAR A CURIOSIDADE E AMPLIAR O REPERTÓRIO DO ALUNO

CONTOS DE FADAS EM LIBRAS. Profª Me Luciana Andrade Rodrigues UNISEB

A origem dos filósofos e suas filosofias

Freelapro. Título: Como o Freelancer pode transformar a sua especialidade em um produto digital ganhando assim escala e ganhando mais tempo

Texto 1 O FUTEBOL E A MATEMÁTICA Modelo matemático prevê gols no futebol Moacyr Scliar

DRAMATURGIA ATORAL: ENTREVISTA AO DRAMATURGO ESPANHOL JOSÉ SANCHIS SINISTERRA

Os Quatros Elementos Ter, 02 de Dezembro de :12

Transcrição:

O USO DA MONTAGEM E DE ESTRANGEIRISMOS EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR Geraldo Generoso Ferreira Departamento de Letras e Secretariado Universidade Federal de Viçosa Campus Universitário Viçosa MG CEP: 36570-000 ggeneroso2000@yahoo.com.br Resumo: O presente trabalho teve como objetivo refletir sobre o uso da montagem e de estrangeirismos em Memórias Sentimentais de João Miramar. A obra de Oswald de Andrade é uma crítica e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a influência estrangeira no Brasil. Através de uma visão antropofágica, o autor propõe ainda uma nova ordem ao romance brasileiro, usando-se para isso a técnica da montagem cinematográfica. Trata-se de uma obra vanguardista em que o experimentalismo lingüístico e estético são observados de maneira crítica. Palavras chave: Literatura, Modernismo, Antropofagia. Abstract: The present work had aimed to reflect about the use of the assembly and the foreign terms in Memórias Sentimentais de João Miramar. The Oswald de Andrade s work is a critic and at the same time, a reflection about the foreign influence in Brazil. Through an anthropophagic point of view, the author proposes a new sequence to the Brazilian Novel, using the technique of cinematographic assembly. It is an avant-garde work, where the linguistic experimentalism and aesthetic are observed in a critic way. Key words: Literature, Modernism, Anthropophagi. INTRODUÇÃO O movimento Modernista brasileiro foi ímpar com relação às vanguardas de sua época. Nem assimilador total de influências dominantes, nem primitivista radical, a particularidade de nosso Modernismo deve-se à sua característica antropofágica, uma 43

proposta de síntese dialética entre a boa influência estrangeira e a tradicional cultura autóctone. Oswald de Andrade propunha, em seus manifestos, Pau- Brasil e Antropófago, a criação de uma literatura nacional, rebelando-se contra os padrões impostos pelos colonizadores, a partir de um norteamento poético novo, nativo. Sua proposta era que partíssemos de nossa própria cultura e identidade, mas aproveitando o que de bom oferecesse a influência estrangeira. Assim, nós somente aproveitaríamos a influência que se mostrasse realmente boa, e não mais toda sorte de erudição; e a teríamos melhor, ruminada, incorporada aos nossos próprios valores. O movimento era antropofágico, mas era também seletista, antologista. Com este trabalho, tem-se o objetivo de apontar algumas influências do antropofagismo no romance Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade [1], salientando duas tendências principais: a montagem e o uso de estrangeirismos. Para isto, o trabalho tem como suporte teórico estudos de críticos como Haroldo de Campos, Antônio Candido, Jorge Leitão, Gilberto Mendonça Teles e Lúcia Helena [2-6]. AS TENDÊNCIAS DO ANTROPOFAGISMO EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR Em seu Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade propõe uma nova literatura, capaz de representar uma identidade nacional. Condenando a imitação - contra todos os importadores de consciência enlatada [5] -, o modernista prima pela criação, pelo novo. Segundo o antropofagismo, a criatividade e o experimentalismo devem sobrepor-se à tradição. Assim, ele propõe: contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada [5]. Memórias Sentimentais de João Miramar é uma obra revolucionária que representa uma inovação na literatura brasileira. Permeada de características e tendências antropofágicas, não é uma obra a ser compreendida na linearidade, mas na junção de fragmentos que somente interligados podem construir o enredo. 44

Fiel ao projeto do Modernismo, sobretudo na ruptura com os cânones do passado, Oswald de Andrade causou impacto com essa obra, fruto do experimentalismo e da pesquisa estética incansável. Primando pela linguagem reduzida, telegráfica, coloquial e repleta de humor, este livro de memórias traz fragmentos justapostos, seguindo a técnica cinematográfica da montagem e encerrando um simultaneísmo inovador de flashes do subconsciente. A presença de neologismos como vagamundear e de ilogismos como em Ruas quartos a chave bar desertos vibrações revoltas adultérios ênfases, o estilo telegráfico: O alpinista/ de alpenstock/desceu/nos Alpes, a quebra da ordem sintática: Ia na frente bamboleando maleta pelas portas lampiões eu menino ; e a intrigante falta de pontuação, presente em toda a obra [1], demonstram a revolução lingüística, tão cara ao Movimento Modernista e ao Antropofagismo. O antiacademicismo modernista encontra nessas tendências sua proposta demolidora na busca de uma nova estética para transmitir um recado verbal. A sátira social - Filho de cereais varejos, tilintava moedas no tonel dos bolsos e minguados brotos de aristocracia tinham-lhe seráficos silêncios para cacholetas aporreantes [1] - também representa a demolição na ironia à burguesia que buscava inspiração no modo de vida europeu. A crítica bem humorada e irônica a esse contexto europeizante é outra forte característica antropofágica em Memórias Sentimentais de João Miramar, refletida também pelo uso de estrangeirismos. Segundo Haroldo de Campos em seu ensaio Miramar na mira : As Memórias Sentimentais de João Miramar foram realmente o verdadeiro marco zero da prosa brasileira contemporânea, no que ela tem de inventivo e criativa. Romperam escandalosamente com todos os padrões então vigentes (...) [2] É essa ruptura que se pretende analisar doravante, a partir da percepção de duas das principais tendências antropofágicas contidas nesta obra a montagem e o uso de estrangeirismos. 45

A técnica cinematográfica da Montagem Segundo Antônio Candido [3], foi Oswald de Andrade o inaugurador, em nossa literatura, da transposição de técnicas cinematográficas como a montagem de cenas na tentativa de se causar a impressão de imagens simultâneas, de descontinuidade. Em Memórias sentimentais tem-se, de fato, a presença da técnica da montagem na descontinuidade cênica, na simultaneidade de diversas facetas superpostas, nos flashes de memórias como em A tarde mergulhava de altura na palidez canalizada por trampolins e colinas e um forte velho [1], que emergem a todo o momento trazendo a crítica literária, estética, política e social. A fragmentação do texto em flashes traz a proposta estética de Oswald de Andrade: o experimentalismo, característica de buscar experimentar novas formas de estéticas na arte e na literatura. Para Haroldo de Campos: (...) a idéia de uma técnica cinematográfica envolve necessariamente a de montagem de fragmentos, a prosa experimental do Oswald dos anos 20, com a sua sistemática ruptura do discursivo, com a sua estrutura fraseológica, sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa seqüência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico-satírico (...) esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira einsteiniana.[3] Assim, Oswald de Andrade, seguindo sua proposta antropofágica, assumiu a influência estrangeira einsteniana, incorporando-a à literatura brasileira, adaptando, nacionalizando o que havia ruminado. Em seu Manifesto antropofágico, Oswald afirma que só a antropofagia nos une defendendo a Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. Assim, o que ele propõe é um aproveitamento da boa influência estrangeira, sempre transformada, eliminado o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior [5]. 46

Seguindo sua proposta antropofágica, Oswald de Andrade soube transformar a influência do cinema einsensteiniano em literatura nacional. Para Ramos, Eisenstein propôs a tipagem, a síntese dialética na montagem e a cronologia emocional, conforme revela o trecho: Einsenstein defendeu que o espectador deveria reconhecer os personagens por simples observação do seu rosto (...). A estrutura particular é construída com base numa dimensão dialética, bipolar (...). O filme faz-se mais sobre um tempo psicológico (ou emocional) que sobre um tempo [4]. As três características do cinema einsensteiniano destacadas por Ramos são aproveitadas, antropofagicamente, em Memórias Sentimentais de João Miramar. Se Einsenstein propunha o reconhecimento das personagens pela sua fisionomia, Oswald de Andrade soube criar a tipagem caricatural na literatura. A personagem Machado Penumbra é uma caricatura dos parnasianos: Além de orador ilustre escritor Machado Penumbra que foi muitíssimo cumprimentado [1], assim como o círculo familiar de João Miramar e sua esposa Célia são também a caricatura da sociedade burguesa: A barbicha investigadora do Dr. Pilatos veio trazernos a vista esquecida de São Paulo com ohs e ahs e capa no fraque de gola. E propôs que deixássemos o Rio aborrecido e paisajal [1]. A montagem dialética eisensteiniana também foi transportada para a literatura de Oswald, como se pode perceber em toda a obra. Há momentos em que a dialética se constrói pela oposição entre o título e o capítulo, como no seguinte fragmento: 40. COSTELETA MILANESA Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieram sob janelas de grandes sobrados. 47

Milão estendia os Alpes imóveis no orvalho [1]. O texto não faz nenhuma alusão ao que se tem no título, mas juntos constroem uma significação diferente, dialética: na memória de João Miramar a costeleta milanesa está relacionada ao episódio narrado. Em outros momentos, a dialética da montagem constrói-se pela oposição entre o estrangeiro e o nacional, como no fragmento a seguir: 52. INDIFERENÇA Montmartre E os moinhos de frio As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas (...) Nostalgias brasileiras São moscas na sopa de meus itinerários São Paulo de bondes amarelos (...) [1] Assim, a significação é construída dialeticamente, exigindo uma participação ativa do leitor para unir as partes na interpretação da obra. Ainda a exemplo da obra eisensteiniana, a cronologia de Memórias sentimentais de João Miramar é emocional, como se percebe no fragmento: O circo era um balão aceso com música e pastéis na entrada. E funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de pau com gente em redor [1]. A técnica cinematográfica confere à obra o que ela tem de mais inesperado e intrigante, criando um impacto incômodo e inovador. Assim, seguindo a proposta do Antropofagismo, Oswald de Andrade aproveitou a influência estrangeira que julgou boa, mas soube modificá-la, assimilando-a à literatura de caráter nacional. 48

O uso de estrangeirismos Outra tendência observada em Memórias sentimentais de João Miramar é o uso de expressões estrangeiras incorporadas à língua portuguesa, forma encontrada por Oswald de Andrade para criticar as influências estrangeiras em nosso país. Contudo, como observou o próprio Oswald, não se trata de uma crítica de todo negativa. A proposta antropofágica trazida no manifesto veio mostrar que se poderia aproveitar as influências, mas digerindoas, repensando-as e devolvendo-as de forma crítica, reflexiva, como uma civilização que estamos comendo [5]. No prefácio da obra, a personagem Machado Penumbra, um parnasiano declarado, observa que: (...) o fato é que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições de outras línguas imigradas entre nós e contudo tendo para uma construção de simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original (...) [1] Assim, Penumbra valoriza esta tendência, ressaltando sua originalidade. Na obra, pode-se visualizar este recurso em vários fragmentos, entretanto, escolheram-se alguns considerados mais relevantes ao presente trabalho. No capítulo 46, intitulado Anglomania, observa-se a crítica ao uso de estrangeirismos, exaustivamente utilizados pelo narrador para relatar parte de suas férias: Tomamos board-house francesa em Albany Street não longe do Hyde Park. Durante o dia almoçávamos a cidade visitando entre jardins múmias do British Museum. Chegava a noite pontual e policemen corriam pesados estores do céu para alexandrinais poetas compatriotas percorrerem de tube o famoso astro da metrópole cor-decinza. 49

Fechávamos-lhe a porta à cara branca e alugávamos com Muset e Murger aconchego de rendas em cortinas insones. [1] No texto acima, percebe-se a ironia na descrição das atividades realizadas no período de férias na Europa através do uso de termos estrangeiros que demonstram o quanto o narrador está permeado desta influência. Palavras como board-house, street, park, Museum e policemen possuem correspondentes diretos na língua portuguesa, entretanto, o narrador as utiliza no idioma inglês justamente para mostrar o processo da aculturação por estrangeirismos, já sugerido pelo título do capítulo. No fragmento 63. Idiotismo tem-se a crítica quanto à falta de objetivo das viagens realizadas. Miramar expõe um sonho irônico da viagem idílica com Célia: Iríamos em tournée à Europa. E pela tarde lilás do Bois, ela guiaria a nossa Packard 120 HP. Sairíamos nas férias pelos caminhos sem mata-burros nem mamangavas nem taturanas e faríamos caridade e ouviríamos a missa dos bons curas nas catedrais da Média Idade. E prosseguiríamos por hotéis e hotéis, olhos nos olhos etc. [1]. Neste fragmento, observa-se o uso de palavras estrangeiras como tournée, Packard 120 HP e Bois, as quais se encontram mescladas com expressões tipicamente brasileiras como mata-burros, mamangavas e taturanas. Assim, obtém-se um efeito de língua modernista, ao mesmo tempo em que se faz uma crítica à importação da cultura estrangeira vista de forma supervalorizada em relação à cultura nacional. No fragmento 78. A sabida tem-se a carta de Nair, irmã de Célia, relatando à irmã a adaptação de sua mãe no novo mundo: Ela já sabe falar quelque chose, eau chaude e beaucoup d argent [1]. O episódio, além de mostrar a assimilação da cultura importada, aponta uma crítica àquela burguesia, sendo a palavra argent o expoente dessa crítica - dentre as primeiras 50

expressões aprendidas está o dinheiro, símbolo dessa classe social. Pode-se dizer que as viagens de João Mirarmar aparecem na obra como um recurso de contraste entre o Brasil e a Europa. Apesar da aparente valorização estrangeira explicitada a partir do uso das expressões importadas, percebe-se sempre a sobreposição dos valores nacionais sobre os estrangeiros, sendo esta uma intenção da obra. O uso de termos e expressões estrangeiras configuram a linguagem modernista, refletindo a visão antropofágica na língua brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com Memórias sentimentais de João Miramar Oswald de Andrade propôs uma nova forma para o romance, sobretudo o romance brasileiro. Seu senso crítico e sua visão antropofágica foram ferramentas indispensáveis na construção desse novo estilo que fugia das estruturas formais até então existentes. Seguindo a proposta em seu Manifesto Antropófago, o autor assimilou a influência estrangeira do cinema einsensteiniano transformandoa, incorporando-a à literatura nacional em suas características de tipagem, montagem e cronologia emocional. A revolução lingüística, outra proposta do antropofagismo, também está presente na obra, através da criação de ilogismos e neologismos, da utilização de uma sintaxe prosaica, da escassez de pontuação e do uso massivo de estrangeirismos, que desencadeiam uma sátira social ao contexto europeizante em que vivia a burguesia da época. Memórias sentimentais de João Miramar é, portanto, um marco em nossa literatura, pela inovação e pela transmissão de novas tendências vanguardistas. Pode-se afirmar que o autor e sua obra têm um inestimável papel na literatura brasileira graças ao seu estilo contestador e crítico, e ao seu incansável experimentalismo estilístico, lingüístico, temático. 51

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: 1. ANDRADE. Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar, 9 a ed. São Paulo: Globo, 1997. 107 p. 2. CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE. Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar, 9 a ed. São Paulo: Globo, 1997. 107 p. 3. CANDIDO, Antônio. Castello, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira Modernismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 345 p. 4. RAMOS, Jorge Leitão. Sergei Eisenstein. Lisboa, Livros Horizonte, 1981. 130 p. 5. TELES, Gilberto Mendonça.Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1976. 446 p.pág. 294, 298 6. HELENA, Lúcia. Uma literatura antropofágica. 2 a ed. Fortaleza, UFC, 1983. 151p. 52