EDUCAÇÃO AQUENDADA 1 : A VIOLÊNCIA SOCIAL ESCOLAR CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E SUAS IMPLICAÇÕES NA SUBJETIVIDADE



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Transcrição:

EDUCAÇÃO AQUENDADA 1 : A VIOLÊNCIA SOCIAL ESCOLAR CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E SUAS IMPLICAÇÕES NA SUBJETIVIDADE Jeferson Renato Montreozol Endereço para correspondência: psicojeferson@yahoo.com.br Psicólogo, membro da Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Regional de Psicologia 14ª região, aluno do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre os Aspectos Psicossociais da Educação e do Trabalho. Bolsista da CAPES. Introdução Este trabalho é parte dos levantamentos iniciais da pesquisa de mestrado do autor entitulada Educação Aquendada: implicações da educação formal na consciência individual da travesti, em fase de desenvolvimento. Cada nível da escolarização carrega conteúdos que levam ao desenvolvimento de possibilidades especificas de atuação pelo sujeito na realidade. Dos níveis elementares aos níveis superiores, os conhecimentos se complexificam, conduzindo à alteração contínua da consciência que, frente novas etapas, adquire novas organizações permitindo ao sujeito maior elaboração do conhecimento sobre a realidade sóciohistórica que o circunda. Podemos compreender que a educação formalizada deve ampliar a consciência individual, pois possibilita processos e conteúdos que refinam as funções e processos psicológicos que atuam como mediadores. Mas qual a sua interferência sobre os aspectos da consciência de sujeitos que fazem parte de um grupo, como as minorias sexuais e de gênero, e em específico, da travesti, que têm seu desenvolvimento calcado sobre a égide de uma educação repressora e violenta no que tange a diversidade sexual? Definições sobre as diversas formas de identidade e orientações afetivas e sexuais tem suas bases principalmente na antropologia e na sociologia, as quais nos apoiamos para principiar essas discussões. O antropólogo Marcos Benedetti (2005), aponta que as travestis geralmente promovem modificações nas formas do seu corpo devido à motivação de deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres (ou dos homens); vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero oposto. No entanto, estes não desejam explicitamente recorrer às cirurgias de transgenitalização. Em contraste, a principal característica que define as Transexuais é a reivindicação da cirurgia de mudança de sexo como condição sine qua non da sua transformação, sem a qual permaneceriam em sofrimento. Ao mesmo tempo em que produzem meticulosamente traços e formas femininas no corpo, as travestis estão construindo e recriando seus valores, tanto no que concerte ao feminino como ao masculino. A ingestão de hormônios, as aplicações de silicone, as roupas e os acessórios, são momentos de um grande processo que tem por resultado a própria travesti e que contribui para uma compreensão ampliada sobre o papel do corpo, demonstrando que a incorporação dos valores e das práticas sociais não pode ser 1 Aquendar no Bajubá significa Escoder. Bajubá é uma língua muito conhecida pelas Travestis, que tem como base um dialeto africano.

explicada simplesmente pela idéia de um esquema mental aplicado sobre um corpo natural, mas a partir da consideração da própria criação e experimentação corporal dessas características e valores. A pesquisa com esse grupo se torna importante ao abrir a possibilidade de discutir sobre o preconceito contra Lésbicas, Gays, Bisexuais e Transgêneros (LGBT), em específico, contra as travestis e as transexuais, dentro do contexto educacional brasileiro, uma vez que verificamos que os sujeitos com essa identidade sexual dificilmente concluem o ensino superior, e sequer o ensino básico. Diante do exposto, nos embasaremos nos pressupostos do Materialismo Histórico e Dialético e na Teoria Psicológica Sócio-Histórica, visando uma compreensão do panorama educacional brasileiro, e sua relação com as minorias sexuais. Compreendemos a sexualidade em uma perspectiva social, histórica e cultural, e não mais em uma perspectiva estritamente biológica. Uma vez que trabalhamos com quaisquer aspectos referentes a gênero, sexualidade humana e suas formas de manifestação, precisamos sempre nos atentar para a gama de conceitos que se derivam destas relações. Gênero está relacionado com questões de identificação social em relação ao sexo. É utilizada para definir como a pessoa é, ao ser considerada como sendo do sexo masculino ou feminino. O termo Identidade sexual refere-se a um conjunto de características sexuais que diferenciam cada pessoa das demais e que se expressam pelas preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo. A identidade sexual é o sentimento de masculinidade ou feminilidade que acompanha a pessoa ao longo da vida. Nem sempre está de acordo com o sexo biológico ou com a genitália da pessoa. Já a Orientação sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. A orientação sexual existe num continuum que varia desde a homossexualidade exclusiva até a heterossexualidade exclusiva, passando pelas diversas formas de bissexualidade. O Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania Homossexual, Brasil Sem Homofobia (2004), programa este da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, trazem as Travestis englobadas dentro da terminologia Transgêneros, mas não há descrição específica sobre essa identidade sexual. A inclusão do debate sobre a violência contra a diversidade sexual e de gênero, tanto dentre as escolas como no contexto acadêmico, tem sido introduzida desde a década de 1970, conseqüência da pressão dos grupos feministas e grupos gays e lésbicos que denunciaram a exclusão de suas representações de mundo nos programas curriculares das instituições escolares. Alguns avanços na área da Educação condizente com a diversidade sexual e de gênero foram obtidos, como a criação do tema transversal Orientação Sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), sendo um indício do interesse do estado pela sexualidade da população. Porém, sabemos que ainda existem lacunas como, por exemplo, na própria formulação dos PCNs, os quais ressaltam a necessidade de se trabalhar a sexualidade como tema transversal, mas não especificam nada sobre a homossexualidade, minorias sexuais e de gênero. 1- A Educação enquanto construto social e histórico

Para pensarmos sobre a ausência do tema da diversidade sexual e de gênero na educação, podemos utilizar de alguns manuais da área, ou até mesmo de algumas conjecturas advindas da psicologia da educação, da aprendizagem e do desenvolvimento, que nos mostram que há uma constância na educação capitalista de proposições cristalizadas para pensar a formação da consciência dos sujeitos. Essa educação apresenta concepções naturalizantes e estigmatizantes sobre a constituição da subjetividade humana, proposições pautadas e legitimadas também pela Biologia, que nos conduz a entender a diversidade biológica como decorrente apenas da forma ordenada e sistematizada que se apresenta na escala de desenvolvimento filogenética e que, portanto, obedece uma hierarquia. A educação é o processo no qual o homem se humaniza. É através da educação que garantimos a sobrevivência da espécie no ambiente, satisfazendo nossas necessidades. Porém, como estamos imersos em um ambiente que é social e histórico, tais necessidades também são construtos exigidos por este caráter social e histórico, construídas por meio da produção humana, e que vão regular os objetivos e características da educação. Percebemos que existe uma implacável relação entre sujeito e sociedade, uma vez que só há sujeito quando constituído em contextos sociais, os quais, por sua vez, são resultados da ação concreta de homens que organizam coletivamente o seu próprio viver. A educação possui, por objetivo, a construção de um homem especifico, que atenda as necessidades tanto sociais quanto individuais. Tem como uma de suas conseqüências o processo de produção e reprodução de conhecimentos, inerentes às mediações necessárias à práxis, que resulta na humanização. A educação é entendida, então, como uma instituição, constituída em uma determinada sociedade, que transmite aos indivíduos a forma de organização desta para o trabalho, para o pensar, sentir, agir, enfim, elementos culturais necessários à sobrevivência no ambiente, ou seja, uma síntese que transponha nesses indivíduos, inicialmente biofisiológicos, todas essas características sociais. E isso só é possibilitado porque a educação utiliza a linguagem como instrumento mediador entre o externo real objetivo, e o interno - subjetivo, permitindo que os aspectos sociais sejam interiorizados. Tal síntese só é possível no ser humano, pois nascemos com uma estrutura cerebral que permite o desenvolvimento dessa racionalidade. Porém, devemos considerar nessa lógica dialética, que a educação não se torna mera transposição das características da sociedade em aspectos subjetivos e comportamentais dos indivíduos, pois esta síntese se configura sempre como algo novo, que apesar de conter aspecto tanto de um quanto de outro, traz elementos qualitativamente diferente. Não podemos, então, ser resumidos a meros aspectos biológicos ou sociais. Somos uma unidade indissociável que contém os dois elementos, sem que isso signifique resumir-se a soma de suas partes. A partir da consolidação da sociedade capitalista, na segunda metade do século XIX, a educação passa a ser entendida e exigida como aspecto separado do trabalho, formalizada em instituições que ensinam para o trabalho. Ou seja, a educação transmitida em estabelecimentos como a escola, visaria, sempre, a preparação da mãode-obra; ao mesmo tempo em que o sujeito adquire os elementos necessários para dominar o meio em que vive. Sabemos que a gama de informações que adquirimos na escola é o que melhor atende as necessidades do grupo social ao qual fazemos parte. Na escola, assim como na família e em diversos outros espaços da vida social, temos acesso a cultura compreendida como um complexo sistema que abarca as formas de agir, pensar, sentir,

perceber. É na escola, então, que os processos psíquicos mais elaborados, determinantes da consciência humana, e, por conseguinte, das Funções Psicológicas Superiores (FPS), são ensinados aos sujeitos. O referencial teórico psicológico sócio-histórico, baseado nos trabalhos de Vigotsky, compreende a relação entre sujeito e objeto no processo de construção do conhecimento. Neste, o sujeito do conhecimento não é apenas passivo, regulado por forças externas que o vão moldando e nem é somente ativo, regulado por forças internas, o sujeito do conhecimento é interativo. Torna-se necessário, então, compreender como o social desenvolve o biológico, e vice-versa. Para o desenvolvimento do indivíduo, as interações com os outros são, além de necessárias, fundamentais, visto que esses são a própria cultura, o que significa que as FPS não poderiam surgir e constituir-se no processo do desenvolvimento sem a contribuição construtora das interações sociais. Assim, a partir do desenvolvimento das FPS, o meio interno desenvolve o papel de mediador entre o homem e o ambiente. A mediação é um conceito fundamental na teoria de Vigotsky, sendo a ação onde a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada por sistemas simbólicos, elementos intermediários entre o sujeito e o mundo. Essa concepção liga o desenvolvimento da pessoa à sua relação com o ambiente sóciocultural em que vive e a sua situação de organismo que não se desenvolve plenamente, sem o suporte de outros indivíduos de sua espécie. A educação não é a mera transmissão de informações. Nem sempre adquirir noções e conhecimentos garante assimilar estes mesmos, ou seja, a consciência não é formada apenas pela aquisição de conhecimento, mas sim pela correspondência desse conhecimento com alguma atividade (tanto interna quanto externa) do sujeito. Portanto, a aprendizagem real só é confirmada quando as aquisições de conhecimento provocam modificações e alterações nas estruturas psíquicas, e conseqüentemente, comportamentais. Oliveira (1992) esclarece que para Vigotsky, a atividade é um dos processos que compõem e promovem o funcionamento psicológico, ou seja, as funções psicológicas são resultantes da atividade humana sobre o meio social e natural. À medida que o homem trabalha para satisfazer suas necessidades, ele transforma a natureza, produz conhecimento e cria a si mesmo. Essa atividade ocorre em um sistema de relações e de vida social, onde o trabalho ocupa lugar central e também se encontra em processo de mudanças históricas. A atividade humana, como resultado do desenvolvimento social e histórico, vai ser internalizada pelo indivíduo e constituir sua consciência, seus processos subjetivos, as imagens de percepção, as funções psicológicas superiores. Compreendemos, então, que a consciência é construída sob a base fisiológica cerebral, e se forma a partir da relação do homem com o mundo sócio-cultural, na sua relação com a realidade, num processo permanente, determinado pelas condições sócio-históricas que se transformam em produções simbólicas e singulares, ou seja, ela abriga o social transformando em individual. É um processo sempre em construção, que redunda na forma de pensar, agir, sentir. Assim, consciência e comportamento são aspectos integrados que não podem ser entendidos separadamente. Segundo Leontiev (2004), a consciência ou, o psiquismo, é o reflexo da realidade concreta destacada das relações que existem entre ela e o sujeito, o que leva a distinguir o mundo das impressões interiores e torna possível com isso o desenvolvimento da observação de si mesmo. Portanto, a consciência é composta dos conteúdos sensíveis ao sujeito, tais como sensações, imagens de percepção e as representações, tornando possível a relação entre sentido e significado, e, por

conseguinte, diferenciar o mundo real das impressões interiores individuais, possibilitando assim a observação de si mesma. O significado é tido como o reflexo da realidade independentemente da relação individual ou pessoal do homem com este, pois o homem se apropria de um sistema de significações historicamente constituído. Entretanto, o fato propriamente psicológico se encontra na forma como a significação será interiorizada, e no que ela se transformará para o indivíduo. A forma como se dará no âmbito individual depende do sentido subjetivo e pessoal que esta significação possuirá para o indivíduo. O sentido pode ser considerado como a individualização do significado social representado na consciência. O sentido psicológico é a significação social mediada pela experiência de cada homem na sua prática social e a ela relacionada, uma relação que se cria na vida, na atividade do indivíduo. Porém, devemos considerar que a atribuição de sentido não se justifica pela mera transposição dos aspectos sociais para a esfera individual, pois como dito anteriormente, esse processo só pode ser realizado pela mediação. Objetivo e subjetivo são elementos diversos, que não permitem uma relação direta. Para que esta relação ocorra, é necessário um elemento mediador. Consideramos então a escola como a forma instituída socialmente para transmissão da cultura, do conhecimento, fazendo-a de forma gradual e contínua. Essa graduação, ou melhor, o nível de escolarização de determinado sujeito irá interferir na forma como este tem acesso aos elementos da cultura, e conseqüentemente, como individualiza e significa a realidade circundante. Perante este quadro, consideramos que novas discussões são necessárias frente às formulações ideológicas, de base capitalista, que restringem o desenvolvimento pleno da consciência individual de qualquer sujeito escolar, especificamente àqueles submetidos a violência social dentro das escolas. 2- A violência social escolar e as implicações na subjetividade A violência se caracteriza por um constrangimento físico ou moral, ao qual pode se acrescentar a coação ou coerção psicológica. É uma relação de forças na qual há um desequilíbrio ou um abuso de poder, num estado de dominação e de expropriação quer de indivíduos, quer de grupos ou de classes sociais sobre outrem. No documento de Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência do Ministério da Saúde publicado em Portaria do ministro de 16/5/2001, a violência consiste em ações humanas individuais, de grupos, classes, nações, que ocasionam a morte de seres humanos, ou afetam sua integridade e sua saúde física, moral, mental ou espiritual. É importante destacar que a violência pode assumir várias formas nos diversos contextos sociais, estando relacionadas tanto às estruturas sociais, econômicas e políticas no contexto histórico, como também às consciências individuais. Na atualidade, são identificadas algumas destas formas, como a violência doméstica, familiar, urbana, comunitária, institucional, social, política, revolucionária, simbólica, de gênero e estrutural. As diferentes definições e tentativas de agrupamentos das formas de violência em categorias são apenas recursos heurísticos utilizados para facilitar a compreensão de um fenômeno complexo como a violência. A Violência Estrutural, inerente à forma de organização socioeconômica e política de determinada sociedade, que deve ser entendida a partir de condições históricas e sociais concretas. Na atualidade, a violência estrutural abarca os fenômenos da exclusão social, da globalização e das imposições das leis do mercado. Outras

definições articulam a violência estrutural à violência social. Na medida em que as relações de força existentes na sociedade aparecem naturalizadas, ocultando-se sua historicidade, a violência passa a ser institucionalizada. Entretanto, a especificidade da violência institucional abarca violências que são impetradas por instituições, sobretudo por meio de suas regras, normas, funcionamento e relações burocráticas e políticas, reproduzindo as estruturas sociais injustas, como no caso da instituição escolar. A violência não se limita apenas a relações coercitivas visíveis que impliquem o uso da força física, operando também no nível da linguagem e do simbólico, ou do discurso, estando disseminadas pelas diversas instituições sociais. Segundo Martin-Baró (1997), para entender a violência, é necessário compreender seu caráter histórico e social em que é produzida, ou seja, reconhecer os valores concretos, que caracterizam cada sociedade ou cada grupo social, num determinado momento histórico. O desenvolvimento pessoal dos indivíduos acontece num contexto de desordem, que é estabelecido pelos processos de socialização e modelos violentos, que, por sua vez, são definidos pela luta de classes, causas imediatas ou precipitadoras e por sua institucionalização e elaboração social. A partir do momento em que o indivíduo sobrepõe seus interesses aos do coletivo, a violência e a agressão tornam-se meios para conseguir a satisfação individual. É nas relações primárias (como as familiares), que se constitui o caráter estruturador da personalidade e da subjetividade dos indivíduos e é nos processos de nomeações, identificações e diferenciações, que a socialização se materializa e torna os homens únicos e singulares, ao mesmo tempo em que são gerais e sociais. Assim, a escola é um espaço social no qual se definem as relações de poder, onde se aprende como a sociedade estrutura suas determinações. Dessa forma, quando se estuda a violência escolar, deve-se considerar que esse é um fenômeno universal, perpassado historicamente, formando uma cultura que se expressa em usos, costumes, relações e atos. Considerando que o processo de aprendizagem se dá por meio da interiorização, que geralmente ocorre pela interação com o outro, fica evidente a importância da participação de pais, professores e todos aqueles que interagem na história de desenvolvimento do indivíduo, como mediadores na elaboração conceitual deste. O professor e os outros alunos têm uma importante participação na construção de significados de qualquer aluno, existindo assim uma influência recíproca entre a atitude do professor e a atitude do aluno, de forma que uma orienta ou redireciona a outra. A troca que ocorre nas relações sociais em sala de aula pressupõe a exposição mútua a valores e conceitos que direcionam suas ações. Assim, considerando-se que a violência é um fenômeno socialmente construído, a construção da visão dos alunos acerca da violência coloca a importância do papel que a escola, como instituição social voltada à formação e à informação, desempenha diante do quadro geral de violência presente na sociedade na qual ela se insere. Coloca-se, ainda, e especialmente, a relevância do papel mediacional do professor, em sua prática sociopedagógica, no processo de interiorização de valores socioculturais de seus alunos, aqui referindo-se, especificamente, a questões relacionadas à violência. Pensar o fim da violência é reconhecer a relevância de uma atuação que reformule os valores que sustentam a nossa sociedade. Apenas quando uma sociedade estiver esclarecida sobre seus valores, criará barreiras éticas contra a violência. Na concepção de homem como um ser constituído na materialidade, onde o mesmo constrói seus valores, conclui-se que ele é capaz de definir e transformar antigos

princípios por meio de atuações grupais que possam dar-lhes novas ênfases sobre as relações sociais, considerando as peculiaridades do contexto histórico. Atividades intencionais e educativas por meio de processos grupais, objetivando criar condições para a reflexão, a troca de experiências e a construção de novas concepções a respeito da estrutura social, podendo inclusive contribuir com eventuais transformações nas atitudes cotidianas. Sendo assim, o objetivo primordial da ciência reside em orientar ações humanas de forma a transformar a realidade e produzir um conhecimento que possa estar a serviço do homem. Portanto, entende-se que o trabalho da Psicologia Social deve vislumbrar o reconhecimento dos sentidos, ou seja, no âmbito da subjetividade, que leve ao desenvolvimento da consciência, sem deixar de considerar as condições sociais da população atendida. 4- Referências BENEDETTI, M. B. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. LEONTIEV, A. O Desenvolvimento do Psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004. MARTÍN-BARÓ, I. Accion e ideología. Psicología social desde Centroamérica. 8ª ed., San Salvador: UCA Ed., 1997. OLIVEIRA, M. K. de. O Problema da afetividade em Vygotsky. In: TAILLE, Y. de la; OLIVEIRA, M. K. de e DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. SP: Summus, 1992.