A TERAPIA OCUPACIONAL E SUAS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES NA SAÚDE MENTAL COLETIVA



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Transcrição:

A TERAPIA OCUPACIONAL E SUAS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES NA SAÚDE MENTAL COLETIVA CARLA ROBERTA SALDANHA TRINDADE ALVAREZ * MARCELO BASTOS DA SILVA MARTINS ** RESUMO Baseado numa perspectiva histórica, este artigo tem como objetivos: descrever a historicidade da profissão e fundamentar os conceitos de atividades dentro da atuação da Terapia Ocupacional na saúde mental; apresentar os modelos e métodos e suas respectivas conceituações, ampliando possibilidades de atuação, bem como consolidar a identidade profissional. Foi realizado com a utilização de livros, artigos e vivências enquanto profissional da saúde mental. Para entender a configuração das tendências práticas e teóricas da Terapia Ocupacional em saúde mental, é fundamental refletir sobre as estratégias e concepções que constituem o pensamento psiquiátrico e sua crise contemporânea, as transformações das instituições psiquiátricas e o processo de superação das instituições asilares, bem como a construção de redes territoriais de atenção em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS). É nesse contexto que temos buscado compreender e situar as proposições da atenção em Terapia Ocupacional no campo da saúde mental. PALAVRAS-CHAVES: Historicidade, métodos, Terapia Ocupacional, saúde mental, conceitos. ABSTRACT OCCUPATIONAL THERAPY AND ITS POSSIBLE CONTRIBUTIONS TO COLLECTIVE MENTAL HEALTH From a historical perspective, this paper aims to describe the historical profession and explain the concepts of activities within the role of occupational therapy in mental health, to present the models and methods and their concepts, expanding possibilities for action, as well as to consolidate the professional identity. This study was carried out drawing on books, articles and experiences as a mental health professional. In order to understand the configuration of the practical and theoretical trends of occupational therapy in mental health it is essential to reflect on the strategies and concepts that constitute the psychiatric thought and its contemporary crisis, the transformation of psychiatric institutions and the process of overcoming the nursing homes, as well as the construction of a regional network of mental health care in the National Health System. It is in this context that the propositions of attention in Occupational Therapy in the mental health field are sought to be understood and situated. KEYWORDS: Historicity. Methods. Occupational therapy. Mental health. Concepts. RESUMEN LA TERAPIA OCUPACIONAL Y SUS POSIBLES APORTES A LA SALUD MENTAL COLECTIVA Basado en una perspectiva histórica, este trabajo tiene como objetivos: describir la historicidad de la profesión y explicar los conceptos de las actividades de la terapia ocupacional en salud mental; presentar los modelos y métodos y sus conceptos, ampliando las posibilidades de acción, así como la consolidación de la identidad profesional. Se realizó con el uso de libros, artículos y experiencia como profesional de salud mental. Para entender la configuración de las tendencias teóricas y prácticas de la terapia ocupacional en salud mental, es fundamental reflexionar sobre las estrategias y conceptos que constituyeron el pensamiento psiquiátrico y su crisis contemporánea. La transformación de las instituciones psiquiátricas y el proceso de superación de los hogares de internación, la construcción de una red regional de atención de salud mental en el Sistema Nacional de Salud (SUS, Brasil). Es en este contexto que hemos tratado de comprender y situar las propuestas de atención en Terapia Ocupacional en el ámbito de la salud mental. PALABRAS CLAVE: Historicidad, métodos, terapia ocupacional, salud mental, conceptos. * Terapeuta Ocupacional do CAPS Conviver; especialista em Saúde da Família FURG. ** Psicólogo do CAPS Conviver; mestre em Educação Ambiental FURG. VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 63

INTRODUÇÃO Existem registros de atividade humana com fins terapêuticos desde os egípcios, 2000 anos a. C. Mais tarde, os gregos descreveram a recreação e diversão como forma de cuidar dos doentes. A partir do século XVIII surgem as abordagens científicas propondo a doença deveria ser tratada com trabalho e atividades de lazer, buscando o equilíbrio (HAGEDORN 1, 1999). Em decorrência do grande número de feridos e mutilados durante a Primeira Guerra Mundial, surgem as escolas formadoras de Terapeutas Ocupacionais. Em 1915, uma equipe da ONU instala-se no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, para ministrar um curso de formação nessa área. No mesmo ano foi criado por Eleanor Slagle o primeiro curso profissionalizante para Terapeutas Ocupacionais, que desenvolveu um programa denominado Treinamento de hábitos, que consistia em adaptar socialmente indivíduos portadores de problemas físicos e emocionais (BENETTON 2, 1991). O portador de sofrimento psíquico durante muito tempo foi tratado apenas em sua doença e não como um indivíduo com potencial para superar essa condição através de tratamento terapêutico adequado. A saúde mental no Brasil passou por uma longa trajetória, com grandes modificações no que se refere a tratamento e métodos de reabilitação, desde os asilamentos, as longas internações em hospitais psiquiátricos, até os atuais dispositivos das redes de atenção em saúde mental. Por volta de 1978, na Itália, cresciam os movimentos de democratização das instituições, a concepção de medicina social e o movimento de reforma sanitária. Na saúde mental brasileira, era crescente a luta de ampliação de ambulatórios, centros de saúde e outros recursos de assistência extra-hospitalar. Surgiam as experiências de comunidades terapêuticas; a formação de equipes multiprofissionais, a idéia de prevenção e promoção de saúde mental; a antipsiquiatria, sob grande influência da psiquiatria italiana, representada por Franco Basaglia em sua visita ao Brasil em 1979 (PÁDUA 3, 2003). O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação passa a tornar-se política pública no Brasil a partir dos anos de 1990, e ganha grande impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde, que instituem mecanismos claros, eficazes e seguros para a redução de leitos psiquiátricos a partir dos macro-hospitais (BRASIL 4, 2005). Torna-se preponderante que no planejamento da rede de reabilitação psicossocial, a cuja construção é chamada a Terapia Ocupacional, seja considerada a importância dos projetos de trabalho, e, portanto um desafio ainda maior: o de construir uma nova forma de sociedade com lugar para os excluídos. Após muitas lutas, foram fechados muitos leitos psiquiátricos; está sendo implantada uma significativa rede de serviços e dispositivos de saúde mental em todo o território nacional, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que são hoje uma referência importante para o acolhimento das pessoas em sofrimento psíquico; também foi uma grande conquista a aprovação da Lei federal 10.216/01, da Reforma Psiquiátrica (AMARANTE 5, 2008). A PROFISSÃO TERAPEUTA OCUPACIONAL Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Terapia Ocupacional é a ciência que estuda a atividade humana e a utiliza como recurso terapêutico para prevenir e tratar dificuldades físicas e/ou psicossociais que interfiram no desenvolvimento e na independência do cliente para suas atividades de vida diária, trabalho e lazer. É a arte e a ciência de orientar a participação do indivíduo em atividades selecionadas para restaurar, fortalecer e desenvolver a capacidade, facilitar a aprendizagem das habilidades e funções essenciais para a adaptação e produtividade, diminuir ou corrigir patologias e promover e manter a saúde (BARTALOTTI 6, 2001). Por princípio, é no processo terapêutico que, por meio do fazer (ato, ações, atividades), o paciente pode reconhecer-se como sujeito que cria, atua, reconhece, organiza e gerencia seu cotidiano concreto. A regulamentação profissional do Terapeuta Ocupacional no Brasil se deu através do Decreto-Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969, que dispõe: O fisioterapeuta e o terapeuta ocupacional, diplomados por escolas e cursos reconhecidos, são profissionais de nível superior. [...] É atividade privativa do VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 64

terapeuta ocupacional executar métodos e técnicas terapêuticas e recreacional com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade mental do paciente. Em 17 de dezembro de 1975 é criado o Conselho Federal e Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. A TERAPIA OCUPACIONAL NO CENÁRIO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Pinel, na França, e Tuke, na Inglaterra, foram os propositores do tratamento moral, partindo do pressuposto de que a organização e as ocupações no ambiente hospitalar levavam à reorganização e ao equilíbrio do doente mental, ainda presente nas práticas asilares. Foi por seu intermédio que a Terapia Ocupacional construiu seu primeiro modelo de intervenção, durante o chamado processo de re-emergência, em torno de 1920 (BARTALOTTI 6, 2001). Com o passar dos anos surge o modelo reducionista de tratamento, que se divide em modelo psicanalítico, cinesiológico e neurológico, em que a visão do homem era voltada para os mecanismos internos. A década de 70 foi um período de busca e crescimento no campo profissional. Surge a abordagem psicodinâmica em Terapia Ocupacional, que abrange todas as faixas etárias e grupos populacionais considerados marginalizados e estigmatizados, como por exemplo, os deficientes mentais, visuais, auditivos, menores carentes, idosos e detentos (PÁDUA 7, 2005). Bartalotti, Mângia e Nicácio 6 (2001), ao analisar o processo de desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, referem a possibilidade de a Terapia Ocupacional redefinir seus objetivos na atenção, pautados na produção da autonomia e de itinerários que enfrentem a exclusão social. No processo de transformação das instituições asilares, a ocupação se apresenta como uma resposta à ociosidade. Diferente dessa compreensão, a perspectiva institucional revela que o vazio institucional não é produto da falta de ocupação, e sim, remete ao processo de institucionalização e à ausência de intercâmbio, de relações, expressão do manicômio como lugar zero de trocas (PÁDUA 3, 2003). O Terapeuta Ocupacional utiliza uma metodologia de trabalho conhecida como trilhas associativas, que tem como princípio norteador a concepção de que a dinâmica estabelecida pela tríade terapeuta-paciente-atividade compõe um campo transicional no qual é possível ao paciente, por meio do trabalho associativo com as produções realizadas nos settings terapêuticos, construir e reconstruir sua história (BENETTON 2, 1991). Através da relação entre terapeuta, paciente e atividade, é procurado levar o indivíduo a encontrar formas mais gratificantes de vida, seja nos pequenos grupos, seja na sociedade em geral, tendo as atividades como elemento centralizador e orientador do processo terapêutico e permitindo que o paciente se aproprie da definição de seu projeto terapêutico. O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira, contemporânea da Reforma Sanitária, é inscrito num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e por outro, na eclosão dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, é maior do que a sanção de novas leis e normas e maior do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde. É compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais. É no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios (AMARANTE 5, 2008). O movimento formado por trabalhadores em saúde mental, através de variados campos de luta, passa a protagonizar e a construir a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência, e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio é inspiradora, e revela a possibilidade de ruptura com os antigos paradigmas. Em 1989 são implantados no município de Santos (São Paulo) Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, são criadas cooperativas, residências para os egressos do hospital VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 65

e associações. Também no ano de 1989, dá entrada no Congresso Nacional o projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. É o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativos e normativos. Com a Constituição de 1988, é criado o SUS Sistema Único de Saúde, formado pela articulação entre as gestões federal, estadual e municipal, sob o poder do controle social, exercido através dos Conselhos Comunitários de Saúde. A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. É a partir desse período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos. É na década de 90, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial) e Hospitais-Dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. Do mesmo modo, as normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos. É somente no ano de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, que a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um substitutivo do projeto de lei original, que traz modificações importantes no texto normativo. Assim, a Lei 10.216/01 redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ainda assim, a promulgação da lei federal impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil (BRASIL, 2005) 4. Nesse mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas longamente internadas é impulsionado, com a criação do Programa De Volta para Casa. Uma política de recursos humanos para a Reforma Psiquiátrica é construída, e é traçada a política para a questão do álcool e de outras drogas, incorporando a estratégia de redução de danos. Esse processo caracteriza-se por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais, para efetivar a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário. O período atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos: a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro (BRASIL 4, 2005). No Sistema Único de Saúde (SUS) os centros de atenção psicossocial (CAPS) são referência para o tratamento do portador de transtornos mentais severos e persistentes, garantindo ao usuário o acolhimento e acompanhamento, proporcionando um vínculo terapêutico humanizado. São articuladores da rede de atenção de saúde mental no território e organizam os recursos existentes em variadas redes sócio-sanitárias, jurídicas e educacionais, promovendo a reinserção social, a vida comunitária e a autonomia. A atenção inclui ações dirigidas aos usuários e familiares, através de projetos de inserção social, a fim de minimizar o estigma e promover a cidadania, a qualidade de vida e a inserção social (AMARANTE 5, 2008). O Terapeuta Ocupacional no Sistema Único de Saúde trabalha questões específicas e coletivas, no atendimento individual ou em grupo nos CAPS, NAPS, ambulatórios, residenciais terapêuticos; proporciona supervisão e apoio específicos para as Equipes Saúde da Família, objetivando integrar as dificuldades do usuário da família e até mesmo da comunidade, despertando o potencial de cada um. As atividades são grupos, oficinas, assembleias, grupos de familiares, visitas domiciliares, participação em feiras e passeios, entre outras atividades no VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 66

dia a dia do serviço. As atividades que se desenvolvem possibilitam o resgate da sua autoestima, da autoconfiança, do seu valor como sujeito. O processo terapêutico tem por principio ser o lugar onde, por meio do fazer (atos, ações, atividades), o paciente possa reconhecer-se como sujeito que cria, atua, reconhece, organiza e gerencia o seu cotidiano concreto. Um lugar onde a convivência com as contradições vividas pelas suas ações cotidianas possa ser trazida para fazê-lo concreto no manuseio de diferentes materiais/atividades/situações, abrindo assim a possibilidade de reconhecimento e enfrentamento de suas dificuldades cotidianas, na busca por um enriquecimento de suas necessidades e possibilidades concretas, no interior da coletividade (FRANCISCO 8, 2001). A desinstitucionalização inscreve a necessidade de desmontar as soluções existentes para (re)conhecer, (re)contextualizar o problema representado pelo sofrimento psíquico e inventar novas possibilidades, processo que, necessariamente, permeia as diferentes disciplinas (AMARANTE 5, 2008). As práticas de atenção em Terapia Ocupacional pautadas na desinstitucionalização têm exigido e propiciado novas formas de olhar com a experiência do adoecer e da exclusão, o conhecer e o interagir (BARTALOTTI 6, 2001). PRODUZINDO SAÚDE OCUPACIONAL As oficinas terapêuticas passam a ter um novo enfoque e grande importância no tratamento dos pacientes com sofrimento psíquico. Deixaram de ser apenas uma forma de ocupação e de passar o tempo e se tornaram uma alternativa na reinserção, inclusão social e familiar, independização e autonomia dos pacientes. Não apenas para os pacientes psiquiátricos, o trabalho e a arte têm a função de inserção no mundo e de rompimento do isolamento. Através dessa reformulação o papel da Terapia Ocupacional passou a ser relevante, devido ao conhecimento e às atividades desenvolvidas (AMARANTE 9, 2000). Durante as oficinas de Terapia Ocupacional o profissional utiliza as mais variadas atividades, devidamente analisadas para cada indivíduo, desenvolvendo principalmente a relação de grupo, a convivência e a comunicação com o outro (COSTA 10, 2004). Quando se deseja, por meio da arte ou do trabalho, produzir territórios existenciais (inserir ou reinserir socialmente, torná-los cidadãos), deve-se fazer com que o trabalho e arte se reconecte com o primado da criação, ou com o desejo ou com o plano de produção da vida. Pois que o plano da produção desejante é também o plano de engendramento do mundo humano. Trata-se de reinventar a vida em seus mais cotidianos, pois é do cotidiano, principalmente, que se encontram privados os chamados doentes mentais (AMARANTE 9, 2000). Segundo a psiquiatra e terapeuta ocupacional Nise da Silveira, o ateliê de pintura a fez compreender que a principal função das atividades na terapêutica ocupacional seria criar oportunidades para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão, o que permite ao doente viver um processo que lhe possibilitará dar forma às desordens internas vividas, uma vez que são instrumentos que permitem ao mesmo tempo organizar a desordem interna e reconstruir a realidade, pois, na medida em que as imagens do inconsciente vão sendo objetivadas nos desenhos e pinturas, torna-se possível tratá-las (FRANCISCO 8, 2001). O Terapeuta Ocupacional é um agente facilitador e estimulador junto com sua equipe multiprofissional de trabalho, em que ao usuário é permitido ensaiar, errar, aprender, trocar e experimentar o que por muito tempo não foi possível ou nunca aconteceu. O corpo do sujeito, aos poucos, deixa de ser um sinalizador de sintomas, torna-se algo a ser descoberto, algo que faz surgir bem-estar, que faz circular afetos, e que mostra a cada um novas possibilidades de ser e estar no mundo, que ajuda a ultrapassar a barreira da exclusão. Habilitar, trocar as identidades, produzir e trocar mercadorias e valores delineiam os cenários, contextos e relações que revelam a riqueza e a banalidade da vida cotidiana e se configuraram como eixos fundamentais para gerar o enriquecimento de relações de trocas e a potencialização de contratualidades (FRANCISCO 8, 2001). Novas indagações teóricas e práticas emergem, inscritas nos desafios que, cultivando saberes, práticas, culturas e políticas inovadoras, ousem compartilhar a produção de possibilidades de projetos de vida para todos. VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 67

CONSIDERAÇÕES FINAIS Traduzir a subjetividade do sujeito com transtornos mentais é trilhar um caminho desconhecido e que parece não ter fim, é buscar um sentido que aparentemente não tem sentido, é transformar ideias, é repensar, é desconstruir, é habilitar, é ampliar os limites, é sonhar, é criar, é reviver, é viver. E acima de tudo, produzir inquietações no fazer cotidiano, desacomodando o que está estático. No entanto, quanto mais buscamos respostas para as inquietações que surgem a partir do trabalho que desenvolvemos, mais produzimos inquietações, que podem vir a produzir saúde mental e fazer a diferença entre o cuidar e o reabilitar. A reabilitação propõe um desafio gigantesco em que a desrazão deve encontrar novos fazeres e pensares originais, para muito além do treinamento ou adestramento (SARACENO 11, 2001). No cenário da política nacional de saúde mental, novos atores sociais foram chamados a compor esse panorama democrático de construção conjunta de uma política efetiva na perspectiva de redes de atenção psicossocial (MARTINS 12, 2003). O Terapeuta Ocupacional saiu de uma prática apenas (práxis) para um futuro cheio de possibilidades que procura mobilizar e produzir saúde, utilizando diferentes formas de atividades, respeitando a subjetividade e singularidade dos sujeitos, o seu entorno e as atividades para ele significativas, encontra o desafio de criar práticas que conduzam a desinstitucionalização, favorecendo a autonomia, e consequentemente a inclusão do sujeito estigmatizado pela doença mental em seu próprio território. Nestes novos paradigmas de atenção ao portador de sofrimento psíquico, é na transdicisplinaridade que a ressocialização do sujeito ecoa. REFERÊNCIAS 1. Hagedorn R. Fundamentos da prática em terapia ocupacional. São Paulo: Dynamis; 1999. 2. Benetton J. Trilhas associativas: ampliando recursos na clínica das psicoses. São Paulo: Lemos; 1991. 3. Pádua EMM, Magalhães LV. (org.) Terapia ocupacional: teoria e prática. 4. ed. Campinas: Papirus; 2003. 4. Brasil, Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília; nov. 2005. 5. Amarante P, Cruz LBD (org.). Saúde mental, formação e crítica. 22. ed. Rio de Janeiro: Laps; 2008. 6. Carlo MMP, Bartalotti CC, Mângia E, Nicacio F. Terapia ocupacional: tendências principais e desafios contemporâneos. terapia ocupacional no brasil: fundamentos e perspectivas. São Paulo: Plexus; 2001. 7. Pádua EMM, Magalhães LV (org.). Casos, memórias e vivências em terapia ocupacional. 2. ed. Campinas: Papirus; 2005. 8. Francisco BR. Terapia ocupacional. 2. ed. Campinas: Papirus; 2001. 9. Amarante P (org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. 20.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. 10. Costa C, Figueiredo AC. Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2004. 11. Saraceno B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Belo Horizonte: Instituto Franco Basaglia, 2001. 12. Martins, M.B.S. A educação ambiental na interface saúde e educação: novos rumos em saúde mental. Rio Grande: 2003. Dissertação [Mestrado em Educação Ambiental] Universidade Federal do Rio Grande. VITTALLE, Rio Grande, 24(2): 63-68, 2012 68