ABRINDO OS OLHOS PARA AS NARRATIVAS DO MUNDO: A PALAVRA DO OUTRO E O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DA LEITURA DE UMA CRIANÇA AUTISTA



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Transcrição:

ABRINDO OS OLHOS PARA AS NARRATIVAS DO MUNDO: A PALAVRA DO OUTRO E O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DA LEITURA DE UMA CRIANÇA AUTISTA CLÁUDIA CRISTINA DOS SANTOS ANDRADE claudiandrade1466@gmail.com UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ TATIANE MAIA DE FREITAS maia.tatifreitas@gmail.com UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RESUMO O presente relato apresenta o processo de aquisição de leitua e escrita de um estudante com oito anos com diagnósticado com Transtorno do Espectro Autista TEA. Desde 2013 temos buscado desenvolver suas competências leitoras e escritoras, de forma a garantir maior autonomia em seu processo de aprendizagem. Nesse processo, o principal desafio sempre foi a constituição da narrativa, enquanto discurso sobre si e sobre o outro, pois exige uma continuidade reflexiva, neste caso prejudicada pelas peculiaridades do transtorno. Consoante ao trabalho que desenvolvemos com crianças neurotípicas, propusemos atividades de leitua (com ajuda) e reescrita de fábulas, músicas e poemas. Porém, só obtivemos êxito com a fluêcia leitora, a partir do momento em que passamos a escutar, com mais atenção, as narrativas que ele trazia, dos filmes e séries que assistia, perceptíveis em sua ecolalia. Este passou a ser então, o texto-objeto de análise para as atividades de leitura e escrita. Ao longo do relato, refletimos teoricamente sobre os caminhos percorridos e a percorrer, apoiando-nos em Benjamin (1997), em especial o fator constituinte da narrativa, o processo de produção de enunciados a partir da ótica da teoria da enunciação, de Bakhtin (1997) e, a relação entre pensamento e linguagem exposta por Vykotsly (1984) PALAVRAS-CHAVE: Inclusão Autismo Narrativa. 1

Caminhante, são teus rastos O caminho, e nada mais; Caminhante, não há caminho, E ao olhar-se para trás Vê-sea senda que jamais Se há de voltar a pisar Caminhante, não há caminho, Somente sulcos no mar (Antônio Machado) O fazer pedagógico se faz assim: buscando-se o caminho ao caminharmos. Os sulcos da estrada, como nos diz o poeta sevilhano, Antonio Machado, nos garantem pistas que a reflexão constante vai juntando em busca de novas possibilidades. Foi assim, procurando formas de construção da leitura, que nos deparamos com o desafio aqui relatado. No ano de 2011 recebemos, no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira um menino com então 6 (seis), anos com suspeita diagnóstica de Transtorno Global do Desenvolvimento. O estudante fora matriculado no 1º ano do Ensino Fundamental em uma turma de ensino regular, e nesta permaneceu até o fim do ano letivo de 2012, no 2º ano de escolaridade,quando, por uma decisão do Conselho de Classe, optou-se por sua retenção nesse ano de escolaridade, para desenvolvimento do incipiente processo de alfabetização, garantindo espaço-tempo para que tal aprendizagem acontecesse de forma mais produtiva. Nesta instituição desenvolvemos um trabalho de inclusão baseado na ideia de bidocência, ou seja, há a possibilidade de uma professora que acompanha o aluno com necessidade educacional especial, em sala de aula, como mediadora do processo de ensino e aprendizagem, em colaboração com a professora regente da turma. Este trabalho é fundamentado no conceito do Ensino Colaborativo e nas diretrizes legais nacionais para o atendimento educacional especializado, diante da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Assim, em 2013 o estudante foi alocado em uma nova turma de 2º ano. Para esta nova fase, uma mudança foi essencial, por decisão ainda do Conselho de Classe: a professora que o acompanha passa a ser a mesma (nos outros anos havia rotatividade 2

das bidocentes, ao longo da semana), como o objetivo de tornar o trabalho mais focado no desenvolvimento das competências leitoras e escritoras. Com base em trabalhos anteriores, com alunos autistas, iniciaram-se atividades dentro de um programa de educação individualizada, em que o currículo foi totalmente adaptado para atender as necessidades especificas do estudante. As atividades iniciais tiveram como resultado, entre outros aspectos, a diminuição de interesses restritos e a maior disponibilidade para realizar as atividades focadas em temas estudados pela turma como um todo 2013. O uso da linguagem oral esteve mais presente, e a pronúncia do pronome EU finalmente apareceu em seu discurso, nos momentos em que dizia: Eu não quero! Em relação à alfabetização propriamente dita, optou-se pela consolidação da relação fonema x grafema, em palavras, inicialmente, e, depois, consolidando o padrão silábico. Assim, o percurso se deu do fonema, passando pelo reconhecimento das famílias silábicas e, por último, a leitura de palavras. Porém, tal procedimento, se, por um lado, garantia a escrita do que era ditado, proposto, não dava margem aos processos autônomos de leitura e escrita. Em especial, o aluno não lia espontaneamente, e nem quando dirigido. Neste ponto, passamos a nos perguntar o porquê deste bloqueio. Voltando-nos para as pesquisas psicolinguísticas e do desenvolvimento da linguagem em crianças autistas, buscamos novos caminhos. Passaremos agora, a explicitar as reflexões teóricas feitas neste momento. Dividimos em dois momentos, por uma questão de compreensão do texto, mas os dois eixos foram sendo, dialeticamente, pensados todo o tempo. 1º MOMENTO: AS PESQUISAS PSICOLINGUÍSTICAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA LEITURA E A QUESTÃO DA NARRATIVA O conceito de leitura, o conhecimento de como se dá sua aprendizagem e as consequências desses conceitos para o ensino têm sido objeto de preocupação de muitas investigações nas áreas da educação e linguística. Tais investigações têm apontado alguns resultados comuns. 3

Uma definição comum para o ato de ler valoriza a instauração de significados e a necessária relação entre o que se lê e as experiências prévias do leitor. O escritor Ítalo Calvino (1996), relatando suas experiências como leitor e escritor, nos dá uma excelente definição neste sentido: Ler não é tanto um estilo óptico, e sim um processo que envolve mentes e olhos, um processo de abstração, ou melhor, é extrair o concreto de operações abstratas, como identificar sinais característicos, reduzir tudo que vemos a elementos mínimos, reunilos em elementos significativos, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças, repetições, exceções, substituições, redundâncias. Smith (1991), Foucambert(1994), entre outros, sinalizam com a importância do desenvolvimento de atitudes que, segundo eles, caracterizam o bom leitor: antecipações, previsões e leitura por bloco de significação. Kleiman (1992) e Barbosa (1994) nos chamam a atenção, ainda, para a necessidade de se esclarecerem os objetivos da leitura. Cada tipo de texto pressupõe uma determinada estratégia de leitura, de acordo com o objetivo que se tem. Assim, não se lê da mesma forma um catálogo telefônico e um livro de ficção. Estes estudos sugerem modificações na prática pedagógica, derrubando mitos, como o da necessidade de oralização para que o professor verifique a compreensão do aluno. Barbosa (1994) esclarece, baseado em F. Richaudeau, que a leitura oral diminui a possibilidade de compreensão, já que se faz um circuito maior, onde os olhos mandam mensagens para o cérebro que as passa para as cordas vocais, dirigem-se aos ouvidos para então encontrarem-se com a memória visual. Já na leitura silenciosa, a mensagem passa dos olhos para a memória visual, garantindo uma compreensão mais rápida e eficiente do texto. Todas essas discussões têm direcionado a prática de ensino de leitura para atividades que antes eram consideradas equivocadas. Ednir e Cardoso (1998), em um texto que discute a prática pedagógica de ensino da língua materna, apontam a necessidade de se colocar o aluno em contato com os mais diferentes tipos de textos, de onde podemos inferir a necessidade de o professor e a professora lerem para os alunos, para que eles possam estabelecer este contato, e efetivamente, observarem 4

seus professores e professoras colocados no lugar de leitores. Assim, podemos pensar que os alunos deste grupo aprendem ao observar a leitura da professora, ao se colocarem no lugar de ouvintes. O texto ouvido também representa um desafio intelectual para o aluno, tanto quanto o escrito, dando-lhes oportunidades que talvez eles não tivessem em uma leitura autônoma, o que nos serve para repensar a ideia de que para ler bem os alunos precisem apenas ler muito, e sozinhos. Em nossas práticas cotidianas temos percebido que as ações de ler junto, ler para, a leitura do professor em voz alta, permitem a relação com o Outro leitor. Em nosso caso, em estudo aqui, buscamos trazer sua atenção para estes momentos coletivos, mas as atitudes típicas não favorecem, ainda, tais condutas. Porém, compreendemos, a partir destes estudos, que é necessário que os textos tenham sentido, possam se constituir como narrativas ou informações pertinentes. A partir daí, buscamos tais textos, considerando as peculiaridades do transtorno, a seguir elencadas. 2º MOMENTO: O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM/COMUNICAÇÃO EM CRIANÇAS AUTISTAS O Autismo foi descrito pela primeira vez pelo médico austríaco Leo Kanner no ano de 1943, na ocasião, o médico descreveu o transtorno sob o nome de "distúrbios autísticos do contato afetivo" um quadro caracterizado por autismo extremo, obsessividade, estereotipias e ecolalia. Atualmente utiliza-se o nome Transtorno do Espectro Autista TEA para descrever o tripé que constitui um conjunto de manifestações que afetam o relacionamento social, o desenvolvimento da linguagem, comunicação, bem como um padrão de comportamento restrito e estereotipado. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde OMS, a prevalência do transtorno é mais elevada em homens sendo de 4 a 5 vezes maior do que em mulheres(paiva JUNIOR, 2010). De acordo com o DSM-IV-TR, As Perturbações do TEA referem-se a uma disfunção neurológica, que clinicamente se manifesta por atraso ou desvio nas aquisições do neurodesenvolvimento e por alterações do comportamento.(manual, 2014) 5

O aspecto central para nós é o desenvolvimento da linguagem, especialmente a narrativa. Cabe ressaltar que, apesar dos diagnósticos, cada indivíduo é único, e mesmo o TEA tendo padrões tão marcantes, esses se darão de formas distintas de indivíduo para indivíduo. No caso que relatamos, a comunicação do estudante se apresenta de modo repetitivo, com expressiva alteração de prosódia, tendo um ritmo peculiar, volume baixo e discurso repetitivo. Inicialmente apresentava, na sintaxe, o uso de pronomes possessivos como eu ; meu de modo bem peculiar, (o T pode beber água? Esse lápis é do T, o T vai para casa, ao invés de eu posso beber água, esse lápis é meu, eu vou para casa) quando empregados em discursos orais. Temos ainda déficit significativo na comunicação não verbal, em que o ato de apontar tende a ser substituído por ações, tais como utilizar um adulto como instrumento para conseguir comunicar o que deseja. O choro e a birra foram bastante utilizados como meio de comunicação de possíveis insatisfações e/ou possíveis incômodos sensoriais. Há ainda repertório restrito, interesses e comportamentos repetitivos e estereotipados. A teoria Sócio-Histórica do Desenvolvimento de Vygotsky aponta que o desenvolvimento humano se dá por meio das relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si e o meio ao longo da vida. As relações em questão se dão por meio de signos construídos socialmente onde de acordo com o teórico, a conquista da linguagem representa um marco no desenvolvimento do homem (REGO, 1995, p. 66). A capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a ação para um problema antes da sua execução e a controlarem o seu próprio comportamento (...) signos e palavras constituem para as crianças o primeiro, e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais. Sendo assim, a linguagem tanto expressa o pensamento da criança como age como organizadora desse pensamento. (VYGOTSKY, 1984, apud REGO, 1995, p.31). A função primordial da fala é o contato social a comunicação, significa dizer que o desenvolvimento da linguagem é impulsionado pela necessidade social de comunicação. A partir desta análise, compreendemos que o grande desafio do processo de comunicação em nosso trabalho de inclusão está intimamente 6

relacionado com a aquisição eficaz dos processos de comunicação. Ressaltamos o que nos disse Vygotsky (op.cit): a capacitação humana para linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos para solução de tarefas difíceis, a superarem ações impulsivas, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento sem auxílio externo. Essa é a questão central que nos move a compreender o desenvolvimento da linguagem em crianças autistas, e nos impele a buscar estratégias pedagógicas que permitam a construção de tal autonomia. APÓS O ESTUDO, O CAMINHO. O terceiro período da turma no ano letivo de 2013 foi marcado pela leitura de fábulas. A partir de perguntas relacionadas sobre personagens e as ações realizadas por eles, fomos orientando a conversa com o estudante. Nestes momentos, percebemos que ele era capaz responder às informações do texto ouvido de forma muito sucinta, na maioria das vezes com ausência de artigos e preposições. Com muita negociação, intervenção e colaboração, o estudante conseguia produzir imagens, com ajuda do IPAD, a partir dos textos que explicitavam de modo bem objetivo, mas de gosto estético apurado, a sua compreensão do que lia com os ouvidos. Foram muito produtivos os momentos do seu processo de construção da escrita, apesar de sua resistência ao ato de escrever e a nossa demora em pensar formas alternativas para trabalhar com o registro escrito. Em outras circunstâncias, acreditamos que o salto qualitativo seria maior. O seu processo da escrita oscilou muito, marca própria de seu processo de construção. Havia palavras que eram escritas quase convencionalmente, outras dentro de um padrão silábico(uma letra para cada sílaba), e, em raros momentos, não se realizava a relação entre a letra e o som. Em alguns momentos podíamos vê-lo realizando a autocorreção da palavra, no ato da escrita e até mesmo tempos depois. Destacamos que o fator TEMPO é algo que merece uma discussão no processo ensino aprendizagem do aluno, desde o tempo para se envolver numa atividade, ao 7

tempo de realização de uma atividade, para processar as informações, que consegue focar numa atividade... Ao lado desta questão, tínhamos a falta de iniciativa e autonomia no processo de leitura. Como fazê-lo se envolver com a fala do Outro, do que lhe é exterior? Recorremos a Bakhtin para a compreensão do processo de escuta responsiva e de produção de enunciados. Para o autor, a construção de enunciados se dá a partir do constante diálogo com o Outro, imerso nas relações sociais. Em seu texto Problemas da Poética em Dostoiévski (1997b, p.195), nos diz que: O nosso discurso da vida prática está cheio das palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendonos de quem são; com outras reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas. Como alcançar as palavras do menino, e compreender como elas dialogavam com a palavra de outros, no caso, as histórias que tentávamos ler com ele, se seu processo de comunicação é permeado por características que nos afastavam de sua palavra, de seu eu? Benjamin(1987) nos fala do material que guardamos em nossa experiência, como ele nos constitui e garante a humanidade, no sentido pleno da palavra. Histórias, palavras, sentidos... O discurso, dialeticamente, reflete e refrata o sujeito e as relações sociais (BAKHTIN, 1997a), e externar o mundo interior do menino, através da palavra escrita é também uma forma de buscar a relação com o mundo social. Estas reflexões se deram após um insight, encontrado em um momento de frustração pelo não envolvimento do menino com o texto que tentávamos ler: reproduzimos, por escrito, uma de suas ecolalias e, com ela, fizemos as atividades de leitura (inferência, antecipação, decodificação), tão importantes para o desenvolvimento das competências leitoras. O seu envolvimento imediato nos fez caminhar por outras histórias, guardadas em seu coração(de cor) e reveladas pela intensa repetição ecolálica. O caminho, tomado no susto, nos trouxe os textos que o habitavam, a palavra do Outro, ainda não misturada ao eu misterioso que tentamos, ainda, descobrir. 8

Um passo importante foi dado, e conseguimos hoje, contribuir para que ele abrisse seus olhos para as narrativas do mundo, para a escrita que nos rodeia. O menino lê, com autonomia, tudo o que cai em suas mãos, preferindo os quadrinhos, gênero escolhido para reproduzir, de forma autônoma, as narrativas que o encantam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail (V.N. Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8 a. ed. São Paulo, Editora Hucitec, 1997a.. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997b. BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e Leitura. São Paulo, Cortez Editora, 1994. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2010. Obras escolhidas I. CARDOSO, Beatriz e EDNIR, Madza. Ler e escrever, muito prazer! Rio de Janeiro, Editora Ática, 1998. FOUCAMBERT, Jean. A Leitura em Questão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. KRAMER, Sônia. Leitura e escrita como experiência notas sobre seu papel na formação. In ZACCUR, Edwiges. A magia da linguagem. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2000. MANUAL de Diagnostico e Estatística de Doenças Mentais da Academia Americana de Psiquiatria. Acesso em set 2014. Disponível em http://www.cadin.net/wpcontent/uploads/sinaisalerta_pea.pdf PAIVA JUNIOR. Pesquisa do CDC revela número alto de prevalência de autismo nos EUA em crianças de oito anos, além de grande aumento em relação à pesquisa anterior. Revista Autismo. 16 de set 2010. Disponível em http://www.revistaautismo.com.br/edic-o- 0/numero-impressionante-uma-em-cada-110-criancas-tem-autismo REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva Histórico-Cultural da Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. SMITH, Frank. Compreendendo a leitura. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991. 9