RELATÓRIO FINAL DO PROJETO PÓS DOUTORADO CNPQ. Modalidade Bolsa: Pós-Doutorado Júnior PDJ



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RELATÓRIO FINAL DO PROJETO PÓS DOUTORADO CNPQ Modalidade Bolsa: Pós-Doutorado Júnior PDJ Bolsista: Rita de Cácia Oenning da Silva Endereço: Servidão do Cravo Branco, 259, Campeche, Florianópolis/SC, 88063-522 Endereço eletrônico: oenningdasilva@gmail.com CPF: 632.460.239-72 Processo: 162725/2011-6 Período inicial: 01/2012 a 11/2012 Prorrogação: 12/2012 a 11/2013 Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (PPGAS) Supervisor: Prof. Dr. Rafael José de Menezes Bastos (PPGAS/UFSC) Projeto: Duplos e múltiplos: Crianças e Performances Musicais dos Ameríndios do Vale do Javari nas cidades. Janeiro de 2014

RITA DE CÁCIA OENNING DA SILVA SOBRE JABUTIS, JAGUARES E AVATARES: Performances, narrativas e produção fílmica de e sobre crianças ameríndias nas cidades. Relatório de Estágio Pós Doutoral, modalidade Recém Doutor submetido ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do grau de Pós Doutora. Sob a supervisão do Prof. Dr. Rafael José de Menezes Bastos. Florianópolis, Janeiro de 2014. ii

Oenning da Silva, Rita de Cácia. Sobre Jabutis, Jaguares, e Avatares: Performance e narrativas de e sobre crianças ameríndias nas cidades. Relatório Final de Estágio Pós-Doutoral. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina:, 2014. Resumo O presente Relatório Sobre Jabutis, Jaguares e Avatares: Performances e narrativas de e sobre crianças ameríndias nas cidades, apresenta os resultados do desenvolvimento do projeto Duplos e múltiplos: Crianças e Performances Musicais dos Ameríndios do Vale do Javari nas Cidades com bolsa concedida pelo CNPq para Projeto Pós-Doutorado Júnior PDJ, Processo número 162725/2011-6, vigência de 11/01/2012 a 30/11/2013. O projeto foi realizado na UFSC, junto ao grupo do Núcleo de Pesquisa Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe MUSA com uma parte na Universidade da Califórnia Los Angeles UCLA com o professor Antony Seeger sob a supervisão geral do Professor Doutor Rafael José de Menezes Bastos. O relatório contém Apresentação, Resumo e objetivos do Projeto de pesquisa, Descrição das atividades realizadas e Resultados da Pesquisa nos dois anos do pós doutoramento. Palavras chave: etnologia indígena, antropologia da arte, narrativas e performances, crianças indígenas, noroeste amazônico, produção da pessoa. Florianópolis, Janeiro de 2014. iii

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 01 Apresentação do projeto, com Resumo e Objetivos da pesquisa 02 1. INTRODUÇÃO 03 2. ATIVIDADES REALIZADAS E RESULTADOS DA PESQUISA 10 2.1. Realização de pesquisa teórica, sonoro-vídeo-bibliográfica 10 2.1.1 Introdução à pesquisa teórica 10 2.1.2 O lugar e a presença da criança na literatura do Noroeste Amazônico 11 2.1.3 Pesquisa áudio-videográfica 28 2.2. Realização de pesquisa etnográfica e videográfica de performances de ameríndio 35 2.3. Produzir material audiovisual dessas performances 45 2.3.1. Filmes gravados em Itacoatiara Mirim SGC 47 2.3.2. Filmes gravados no Bairro Tiago Montavo SGC 48 2.3.3.Filmes gravados em Tabocal de Uneiuxi Santa Isabel do Rio Negro 48 2.4. Escrever artigo etnográfico relacionado ao tópico específico do projeto de pesquisa e publicações 49 2.4.1.Artigos escritos encaminhados para publicação e DVDs produzidos 50 2.4.2. Artigos, livros e DVDs sendo produzidos 53 2.5. Cooperar e participar do Núcleo MUSA 54 2.5.1. Participação de apresentações de projetos de pesquisa e palestras dos membros do MUSA 55 2.5.2. Apresentação do Projeto Duplos e Multiplos e dos resultados da pesquisa de Pós-Doc no MUSA 56 2.6. Participar de seminários ministrados pelo Professor Anthony Seeger na UCLA entre os meses de janeiro e março de 2012 57 2.6.1. Aulas de Archiving ministrada por Anthony Seeger 57 2.6.2. Colóquios na UCLA 57 2.6.3. Participação da 46th Annual Meeting of SEMSCHC 58 2.6.4. Pesquisa na Biblioteca da UCLA 58 2.7. Realizar entrevistas com pesquisadores reconhecidos na área de etnomusicologia e etnologia 58 2.7.1 Entrevista com Anthony Seeger 59 2.7.2 Entrevista com Steven Feld 59 Florianópolis, Janeiro de 2014. iv

2.7.3 Entrevista com Suzanne Oakdale 60 2.7.4 Entrevista com Amanda Minks 61 2.7.5 Entrevista com Deise Lucy Montardo 62 2.7.6 Entrevista com Acácio Tadeu Piedade 62 2.7.7 Entrevista com Júlia Mello Piedade 62 2.7.8 Entrevista com Judith Seeger e filhas 63 2.7.9 Entrevista com Rafael José de Menezes Bastos 63 2.8. Fazer contatos e estabelecer diálogos com pesquisadores da antropologia da música e da performance 63 2.9. Participar de seminários, conferências, congressos da área temática 66 2.9.1. Como ouvinte 66 2.9.2. Apresentando trabalhos 69 2.10. Atividade docente 71 2.11 Atividades Realizadas não previstas no projeto 73 2.11.1. Manter o site do MUSA 73 2.11.2. Participação da Banca de defesa 73 2.11.3. Participação de aulas no PPGAS UFSC 73 2.11.4. Coordenação do projeto A saúde de crianças em áreas rurais no Estado do Amazonas 74 2.12 Dificuldades Encontradas 79 3. AVALIAÇÃO 70 4. BIBLIOGRAFIA 81 ANEXOS OBS: Todos os anexos estão com link para acesso online. Em anexo: 1- Artigo: Performance Narrativa, literatura oral e subjetivação entre crianças pequenas. 2- Artigo: Cuidando de crianças: Uma introdução para a pesquisa das práticas amazonenses 3 Artigo: A produção de Pessoas e os sistemas de saúde no Amazonas. 4 Artigo: Quem conta um conto aumenta muito mais que um ponto 5 - Capa Encarte do DVD Crianças Amazônicas. Narrativas e performances de (e sobre) crianças indígenas e caboclas do Amazonas. 6 - Entrevista: Revisitando o Brasil e o campo entre os Kisêdjê (Suyás): Conversa com Anthony Seeger. 7 - Entrevista: Sons e Sentidos: Entrevista com Steven Feld 8- Entrevista: Tornando-se outro: Entrevista com Suzanne Oakdale 9 - Cartaz da mostra de filmes feita no Instituto Socioambiental (ISA Rio Negro) Florianópolis, Janeiro de 2014. v

APRESENTAÇÃO O presente relatório Sobre Jabutis, Jaguares e Avatares: Performance e narrativas de e sobre crianças ameríndias nas cidades, apresenta os resultados do desenvolvimento do projeto Duplos e múltiplos: Crianças e Performances Musicais dos Ameríndios do Vale do Javari nas Cidades com bolsa concedida pelo CNPq Projeto Pós-Doutorado Júnior. O projeto foi realizado na UFSC, junto ao grupo do Núcleo de Pesquisa Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe MUSA com uma parte na Universidade da Califórnia Los Angeles UCLA com o professor Antony Seeger sob a supervisão geral do Professor Doutor Rafael José de Menezes Bastos. O projeto Duplos e múltiplos visou contribuir para o debate da área Arte, Cosmologia e Filosofia nas Terras Baixas da América do Sul, com ênfase na Amazônia. O objetivo desse projeto foi colocar a pesquisadora em contato com uma nova área de pesquisa, a etnologia brasileira, realizando pesquisa de campo para produzir material etnográfico e videográfico sobre essa pesquisa. Para tanto, o projeto de pesquisa propôs o estudo de performances entre crianças indígenas que vivem na cidade, onde se pretendeu observar como essas performances refletem e produzem a socialidade ameríndia nas cidades, buscando o entendimento de aspectos sóciocosmológicos e políticos manifestos nessas. A pesquisa propôs como viés analítico cruzamentos entre as teorias antropológicas da pessoa, do ritual, do corpo e da performance, onde os eixos complementares são centrais: 1) a antropologia da arte para uma reflexão sobre a artisticidade dos povos indígenas; 2) os estudos de performance, que tem possibilitado uma análise intertextual do rito e das manifestações estéticas com seus enquadres variados; 3) a antropologia audiovisual compartilhada, onde o uso da mídia digital serve não apenas para o registro dos eventos, mas especialmente como meio de salientar a reflexividade das performances, acessando assim as performances em si, mas também o ponto de vista dos performers sobre essas. Tendo crianças indígenas como foco da pesquisa, pretendeu-se pensar o lugar da criança e o modo como essas

se posicionam no contexto das performances encontradas no campo, contribuindo para uma etnologia de indígenas nas cidades e seus processos de transformação. Objetivamente a pesquisa propôs: 1) Produzir artigo com os dados etnográficos encontradas nas cidades. 2) Produzir material videográfico que abordem e incluam as performances encontradas em campo. 3) Produzir uma série de entrevistas e filmes dessas, quando possível, que enriqueçam o conhecimento e o debate/pesquisa sobre etnomusicologia e performance, entrevistando importantes referências da área. Os entrevistados foram Anthony Seeger, Steven Feld, Suzanne Oakdale, Amanda Minks, Acácio Piedade, Júlia Mello Piedade, Deise Lucy Montardo, Rafael José de Menezes Bastos. 4) Contribuir para uma abordagem da artisticidade, procurando entender como as performances e seus enquadres (ou gêneros) constroem relações. 5) Pensar o lugar da criança e o modo como essas se posicionam no contexto das performances encontradas no campo. (ver projeto). Florianópolis, Janeiro de 2014. 2

INTRODUÇÃO A formação antropológica oferece múltiplos caminhos, podendo um antropólogo se especializar em diversas áreas ou escolher uma área específica para perseguir durante sua formação e atuação. Os caminhos que tracei durante minha formação tanto no mestrado quanto no doutorado estiveram bastante relacionados com uma antropologia na cidade, pensando os agrupamentos urbanos e as relações e subjetividades estabelecidas nesse ambiente. Trabalhando com classes populares com pouco acesso aos recursos do estado (populações que se autodenominam da periferia ) foquei nos modos de organização social, parentesco, mobilidade social, modos de expressão locais e especialmente na subjetividade que brota naquele meio. As pesquisas buscavam entender como crianças se situam e são situadas nesses contextos e como estão relacionando-se com os múltiplos universos culturais e sociais aos quais têm acesso. Realizando uma antropologia que ouve e observa crianças em diferentes contextos e universos culturais (que hoje vem sendo chamada de antropologia da criança), primeiro em Florianópolis (mestrado em Antropologia Social no PPGAS/UFSC 1996-1998) estudei crianças consideradas de rua e minha observação permitiu entender os fortes laços que essas mantem com suas famílias extensas. Entre a casa e a rua, um universo específico de parentesco e de redes sociais permite que essas crianças circulem entre mundos distintos, de modo pouco observado em contextos com mais recurso financeiro. A rua é um lócus importante na formação da subjetividade do grupo (e não apenas das crianças) e nela as relações se desenrolam tanto quando na casa. A marginalização da rua pela sociedade nacional, por outro lado, cria a falsa ideia de poucos laços familiares. A circulação de crianças, como sugere o trabalho de Cláudia Fonseca (1995) sobre as classes populares de Porto Alegre, uma estratégia usada pelas famílias para a sobrevivência e continuidade do grupo, apresentou-se como uma importante dinâmica entre os grupos estudados em Florianópolis. A dissertação A porta entreaberta (Silva 1998) mostrou então os caminhos e as estratégias dessas famílias e dessas crianças para poder viver num universo urbano, com baixíssimos recursos financeiros recursos sociais que Florianópolis, Janeiro de 2014. 3

possibilitam essa circulação das crianças são fundamentais para a continuidade do grupo e representam uma ampliação de laços de parentesco, e não o contrário, uma quebra deles. Para realizar a pesquisa de campo no doutorado (PPGAS/UFSC - 2003-2008) escolhi um grupo de crianças também de classes populares em Recife (PE) que tinham em comum o gosto e um contato com diferentes tipos de manifestações artísticas populares. Nesse meio foi possível perceber que a conexão das crianças com a arte permite a essas uma série de ferramentas para a expressão, mas mais que tudo para a constituição de si enquanto sujeitos sociais. Em Superar no Movimento (2008) mostro como essas crianças, criativas e capazes de inventar cultura, abriam aos seus pais e familiares outras perspectivas sobre trabalho e sobre a vida cotidiana, colocando-os em rituais não comuns nas suas próprias infâncias. Os estudos de performances foram nesse sentido fundamentais para essa análise. No entanto, minha aproximação das populações urbanas me tornaram ciente que a divisão entre urbano e rural não são tão claramente definidas pelos grupos. A antropologia urbana me oferecia ferramentas para entender essas subjetividades, mas embora vivendo nas cidades, uma gama impressionante de aspectos remetiam à vida e à experiência rural, mediada por parentes, especialmente tios e avós, por amigos, e mesmo pelo acesso a bens provenientes dessa área. Portanto, essa foi uma divisão que aprendi a relativizar no trabalho de campo com essas crianças. Chamei de socialidade estética da periferia o modo como essas crianças e seus pares se organizavam em relação à cultura Recifense. Corpos e mentes são construídos pela dança, pelas narrativas, pelo andar nas ruas; uma estética que está intimamente conectada com uma ética e com a construção desse sujeito social. Atuando como antropóloga e como professora universitária fiz uma aproximação tímida com a etnologia indígena trabalhando com crianças indígenas em dois contextos: 1) Em 2007 na Colômbia, numa comunidade Saliba, grupo falante da língua Saliba que tem sido pouco estudado. Eles fizeram contato com um ONG que eu prestava assessoria e fizemos diversos filmes curtas na língua sáliba. 2) Em 2009 trabalhei com crianças guaranis no Paraguai, promovendo um curso de produção Florianópolis, Janeiro de 2014. 4

audiovisual. Em ambos os casos realizamos filmes sobre o contexto onde viviam, captando narrativas das mesmas, e promovendo uma antropologia visual compartilhada, onde a câmera e o ponto de vista do filme são negociados/compartilhados com as crianças e os seus cuidadores. Esses dois contatos despertaram em mim interesse enorme em poder aprofundar meus estudos nessa área antropológica: a antropologia sobre e com os povos indígenas. A aproximação com a etnologia, uma área importante na antropologia mundial e uma das referências na antropologia brasileira, foi inevitável. O desenvolvimento do projeto de Pós doutoramento Duplos e múltiplos: Crianças e Performances Musicais dos Ameríndios do Vale do Javari nas Cidades, o qual de agora em diante chamarei simplesmente Duplos e Múltiplos, foi uma oportunidade única de me aproximar de crianças indígenas brasileiras. Foi também uma oportunidade de ir a campo em família, envolvendo meu marido e minha filha de pouco mais de 2 anos no processo da pesquisa, o que certamente criou uma dinâmica diferenciada com a população alvo. A presença de ambos em campo trouxe facilidades para criar vínculos com as pessoas, especialmente com as crianças, ao mesmo tempo em que dificultou minha permanência por muito tempo em campo. Foi necessário estabelecer horários específicos para realizar a pesquisa, negociando entre os horários das crianças pesquisadas e os horários que uma criança de dois anos exige, como descanso nas tardes, etc. Embora no projeto do pós-doutorado tenha proposto estudar crianças no Vale do Javari, a pesquisa de campo foi realizada no noroeste amazônico, abrangendo especialmente crianças e cuidadores dos grupos étnicos Baniwa, Curipaco, Nadëb, Tariano, Tucano. O contato com crianças num contexto mais urbanizado no Noroeste Amazônico (São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro) foi bastante produtivo, colocando a pesquisadora em contato com uma diversidade de modos de vida onde as crianças estão inseridas, ampliando o conhecimento sobre a etnologia amazônica. Pesquisa de campo e a revisão bibliográfica sobre o tema foram dois eixos desse aprofundamento na área etnológica brasileira. A mudança do lócus da pesquisa de campo, abandonando a ideia de ir para o Florianópolis, Janeiro de 2014. 5

Vale do Javari, se deu por orientação de pesquisadores da área, especialmente por Pedro Cesarino, conhecedor da situação sanitária da região. A região do Vale do Javari vem sendo assolada nos últimos anos por uma grande epidemia de malária, hepatite e tuberculose. Como a proposta da pesquisa era ir a campo com a família, conforme descrito no projeto, fui orientada a proceder a pesquisa noutra área do país, preservando a saúde de minha filha de apenas dois anos de idade. Hepatite, Malária, tuberculose e outras doenças tropicais têm levado rapidamente à óbito crianças e adultos pela escassez de recursos médicos que o Vale do Javari sofre há anos. Essas orientações, de cunho bastante prático, levaram a pesquisar crianças do Noroeste Amazônico, mais especificamente na região de São Gabriel da Cachoeira e em Santa Isabel do Rio Negro. O Noroeste amazônico constitui-se num campo extremamente rico para uma pesquisa de indígenas na cidades, pois São Gabriel da Cachoeira é a cidade mais indígena do Brasil e oferece um universo multilíngue muito complexo. São Gabriel da Cachoeira, município situado no extremo noroeste do Estado do Amazonas, na microrregião da Bacia do Rio Negro, tem limítrofes ao norte com a Colômbia e a Venezuela, ao sul e ao leste com o município de Santa Isabel do Rio Negro e ao sul com Japurá. Boa parte do seu território é abrangido pelo Parque Nacional do Pico da Neblina, além das terras indígenas Alto Rio Negro; Médio Rio Negro I, II e III e Rio Téa. Além de ser considerado ponto estratégico pelo país por causa da sua localização, com uma forte presença militar na cidade, são reconhecidas na região como línguas oficiais além do português, três idiomas indígenas tradicionais falados pela maioria dos habitantes, a saber Nheengatu, Tucano e Baniwa 1. Segundo Cristiane Lasmar, pesquisadora da cidade de São Gabriel da Cachoeira, esse é o núcleo populacional mais expressivo do alto Rio Negro, com 15 mil habitantes 2, sendo 80% indígenas. Portanto, a pesquisa sonoro-vídeo-bibliográfica se focou em particular na produção sobre a região, sem no entanto fechar-se nela. 1 Lei Municipal 145, de 22 de novembro de 2002. 2 Toda região do município de SGC corresponde a área de 109.184,896 km2, com população de 39.097 habitantes (Dados do IBGE, 2012). Florianópolis, Janeiro de 2014. 6

O Município de São Gabriel da Cachoeira é habitado tradicionalmente por 27 etnias (22 presentes no Brasil) que falam idiomas pertencentes a três famílias linguísticas, o Aruak, Macu e Tucano e que se articulam numa complexa rede de trocas. Embora essas etnias têm características particulares, compartilham ou tem como eixo de ligação mitos, aspectos da cultura material, da cosmovisão e da organização social. Partilham por exemplo, o mito da origem e trajetória comum da Cobra Ancestral, que segundo eles concebeu todos estes povos; Também partilham os rituais de oferecimento (dabucuri) e cerimônias com os cantos dos velhos, cantos que são semelhantes em toda a área. Por esse mito as hierarquias entre esses grupos são explicados e estabelecidos, inclusive a relação desses com o homem branco. Esse mito estabelece também o vínculo com os lugares onde cada um desses povos foi gerado dentro da área. Os rituais são espaços de troca e de interação entre diferentes grupos e são também um momento de reconexão da vida cotidiana com a ancestralidade. Estudar crianças indígenas nas cidades não teve como proposta separar os campos do conhecimento: a antropologia urbana e a antropologia dos povos indígenas. Ao contrário, buscou entender como estas duas área antropológicas estão se comunicando e como as crianças e seus familiares estão fazendo conexões entre diferentes universos culturais. Muitos grupos indígenas vivem nas cidades e nessa caso essa divisão é artificial. Uma etnologia que descreve comunidades como blocos isolados parecem desprezar os fluxos que existem entre diferentes mundos e seus processos de transformação. Trabalhos sobre indígenas na cidade (Lasmar, 2005; Andrello, 2006; Cesarino, 2008; Santos, 2008, Albuquerque, 2011) apontam a importância de entender os processos de transformação e as permanências que envolvem esse vínculo com o modo de vida dos brancos. Alguns desses trabalhos destacam as mudanças evidentes nos modos de vida, mas vários deles apontam para uma reinvindicação da identidade indígena com mais ênfase. A ida para as cidades tem sido motivada pelo acesso aos sistemas de saúde e o escolar, e essas são estratégias para manter o próprio grupo. No noroeste amazônico essa relação entre comunidades e vilas nas cidades vem sendo feita há séculos. (Andrello, 2006; Wright,1981). Lá estão também seus parentes. Florianópolis, Janeiro de 2014. 7

Estudar crianças indígenas nas cidades é reconhecer que na cidade ou nas pequenas comunidades, a antropologia se faz na dobra, no confronto, no encontro, no desgaste, no embate mas também reconhecer capacidades de adaptação, de planejamento do grupo e de transformação, sem deixar de pertencer a um grupo (Lasmar, 2008). Durante o desenvolvimento do projeto Duplos e Múltiplos, nesses quase dois anos de pesquisa e de contatos com a etnologia brasileira, busquei entender a dinâmica da vida de crianças provenientes de agrupamentos indígenas do noroeste amazônico 3 ouvindo e vendo suas performances e narrativas, e através delas perceber como essas revelam um imaginário sobre o mundo que lhes cerca. Observar, ouvir crianças, conversar com elas sobre temas variados tem sido um exercício interessante no fazer antropológico. Dois aspectos pareceram importantes de pesquisar: 1) tentar entender que lugar as crianças ocupam na sociedade em que vivem como a infância e a criança são vistas pelo seu grupo. 2) tentar entender como essas crianças se posicionam dentro da sociedade em que vivem como argumentam, narram e se constroem como sujeitos nessas comunidades. Como essas performances e narrativas são usadas na produção do sujeitos e da suas subjetividades, não somente revelando aspectos da vida das crianças e de suas sociedade, mas constituindo essas dentro do grupo em que vivem foi um dos eixos da pesquisa. Durante a pesquisa, o encontro com uma diversidade de crianças e seus familiares foi possível, já que a pesquisa se deu em várias comunidades. No primeiro ano estive em contato com crianças de dois no município de São Gabriel da Cachoeira, um deles no Bairro Tiago Montavo, e o outro na comunidade indígena de Itacoatiara Mirim. No segundo ano a pesquisa se estendeu a Santa Isabel do Rio Negro, município vizinho de São Gabriel da Cachoeira. No bairro Tiago Montavo, São Gabriel da Cachoeira, estive com crianças e com uma família Tariano/tucano provenientes da região Bacia do Rio Uaupés, da 3 Mas não necessariamente vivendo aldeados embora o que é uma aldeia é também algo bastante variável, especialmente no Rio Negro. Florianópolis, Janeiro de 2014. 8

cidade de Iauareté. As crianças já tinham nascido na cidade de São Gabriel e eram todas parentes próximas entre si primos e irmãos da família Araújo. Já em Itacoatiara Mirim estive com um número maior de crianças, mas o predominante do grupo era Baniwa/Curipaco, de famílias provenientes do rio Aiari, da Bacia do Rio Içana. Algumas das crianças tinham nascido nesse local, mas muitas delas tinham migrado junto com a família. A comunidade tem sua própria escola, já que situa-se numa região mais isolada da parte urbana do município. Trabalhei com as crianças da escola, o que incluía uma diversidade de etnias Curipaco, tucano, Baniwa, tapuia. No segundo ano esse contato na pesquisa de campo se estendeu para um agrupamento um pouco mais isolado, mas ainda em constante contato com a vida nas pequena cidade de Santa Isabel do Rio Negro. Estive especialmente na comunidade Tabocal de Uneiuxi, situada no Rio Uneiuxi, num grupo predominantemente Nadëb, do tronco-linguístico Macu. Esse contato se deu por intermédio de uma pesquisa que fui convidada a participar, que visava entender os modos de cuidados de crianças pequenas nas comunidades de Santa Isabel do Rio Negro. Através desse projeto de pesquisa A saúde de crianças rurais no Estado de Amazonas, descrito no item Atividades não Previstas desse relatório, tive acesso também à saberes locais sobre cuidados de crianças de Lábrea (Rio Purus) e Atalaia do Norte (Vale do Javari). Embora a pesquisa não tenha sido feita no Vale do Javari como tinha sido proposto no projeto de pesquisa devido as péssimas condições sanitárias do Vale para levar uma criança pequena a campo (nesse caso minha filha, como tinha sido minha proposta), coordenar a pesquisa sobre saúde e cuidados de crianças ribeirinhas do Estado do Amazonas permitiu conhecer um pouco da realidade de crianças naquele Vale. Descrevo a seguir com mais detalhes as Atividades realizadas e os Dados obtidos na pesquisa. Florianópolis, Janeiro de 2014. 9

2. ATIVIDADES REALIZADAS E RESULTADOS DA PESQUISA Para cumprir os objetivos do projeto, foram realizadas diversas ações e atividades, que serão descritas a seguir, todas previstas conforme se apresentam enumeradas e em negrito. Com essas atividades os resultados da pesquisa foram se delineando, os quais vou relatar no decorrer desse relatório. 2.1. Realização de pesquisa teórica, sonoro-vídeo-bibliográfica da produção recente em antropologia da arte e da etnologia indígena da região estudada; também aquela que pensa o lugar da crianças em diferentes sociedades. 2.1.1 Introdução à pesquisa Teórica A pesquisa teórica, sonoro-vídeo-bibliográfica da produção em etnologia indígena levou em conta trabalhos antropológicos que enfocam a presença das crianças em temas que envolvam arte, narrativas, produção da pessoa, performances, ritos, produções fílmicas sobre a região amazônica, especialmente do noroeste. Procurei vislumbrar como crianças indígenas vêm sendo abordadas em trabalhos etnográficos sobre povos indígenas, ainda que essas não sejam o foco central dessas produções; também pesquisar como o tema arte e artisticidade vem sendo desenvolvido nos últimos anos naquela região e se há um investimento para entender e registrar os modos de vida das crianças indígenas nas cidades. Uma crescente produção vêm dando atenção ao ponto de vista das crianças, e a arte é dos caminhos para essa abordagem juntamente com temas como educação, jogos, história, noção de pessoa, religião, mitos e ritos, entre outros. Grande parte da pesquisa teórica foi feita no Brasil, em bibliotecas como a da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mas também na biblioteca da UCLA, Los Angeles, Califórnia (USA), onde a pesquisadora realizou parte do projeto, e na biblioteca da Universidade do Novo México, NM, onde desde 2005 tenho estabelecido vínculos com pesquisadores daquela instituição. O acesso online à artigos trabalhos acadêmicos e Florianópolis, Janeiro de 2014. 10

de produções audiovisuais possibilitou investigar o tema em revistas e bancos de dados de filmes e de teses bibliotecas nacionais e internacionais. O acesso online de acervos fílmicos, como o do Núcleo de Antropologia Visual da UFAM (http://www.navi.ufam.edu.br/index.php/acervo) facilitaram a pesquisa de filmes sobre a região do noroeste amazônico. O banco de teses do Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/Unicamp) que tem link na Biblioteca Digital da UNICAMP, do Museu Nacional e outros mais, facilitaram a pesquisa de teses e dissertações mais recentes. Do mesmo modo contatos com pesquisadores que estudam etnologia na Amazônia foi fundamental para ampliar a possibilidade dessa revisão. Além dessa revisão que seguirá aqui, textos produzidos durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa e anexados nesse relatório, mostram esse contato com bibliografia pesquisada, especialmente aquele que envolve a produção da pessoa e aquele que envolve narrativas e performances. Os textos introdutórios das entrevistas, também em anexo expõem outra parte da revisão no campo da etnomusicologia e da etnologia. Citarei aqui mais que tudo alguns pontos considerados importantes para a pesquisa etnográfica feita nesses dois anos. Embora tenha buscado também a produção sonoro-áudio-bibliográfica sobre crianças e arte no Brasil, um olhar mais minucioso foi dado à produção que ajuda a entender as dinâmicas dos povos onde a pesquisa etnográfica foi realizada, ou seja, o noroeste amazônico. 2.1.2 O lugar e a presença da criança na literatura do Noroeste Amazônico A presença das crianças na literatura referente ao noroeste brasileiro, embora não diretamente enfocando o ponto de vista dessas como tem sugerido a antropologia da criança, se apresenta especialmente em temas como guerra, nascimento, vida cotidiana, redes de troca, rituais (especialmente os de nascimento, nominação e de passagem ao mundo adulto), brincadeiras e educação. Elas, as crianças, estão presentes nem sempre de modo direto, mas são citadas com certa frequência nos trabalhos de alguns pesquisadores, como o de Robin Wright e de Flora Cabalzar. Florianópolis, Janeiro de 2014. 11

Já num dos primeiros registros sobre os grupos indígenas do noroeste, o livro Dois anos entre os indígenas, que se refere à longa viagem pelo Rio Negro e seus afluentes feita pelo etnologista e explorador alemão Theodor Koch-Grunberg, aparecem relatos sobre as crianças e o modo como essas são vistas e cuidadas em algumas das comunidades, entre as várias populações visitadas. Koch-Grunberg já escreve sobre ritos e técnicas corporais que referem-se à produção da pessoa naquele contexto, muito embora não use esse termo. Em vários pontos da sua obra podemos ver fotos e ler a descrição que o viajante faz de situações que envolvem ritos, evitações ou aparatos indígenas próprios para as crianças. Normalmente carregadas junto às mães, as crianças pequenas são amamentadas até aproximadamente 2 anos. O autor descreve objetos fabricados especialmente para bebês, como um pequeno suporte feito de palha que oferece segurança aos que ainda não caminham enquanto seus pais trabalham. Segundo Koch-Grunberg, o nascimento de uma criança é tratado de modo especial, e envolve vários atores, especialmente os pais e parentes de ambas as partes, mas também pajés e rezadores. Benzimentos, prescrições e evitações mostram como a chegada de uma criança na vida de um casal muda a condição do sujeito no grupo. Viajando por um dos afluentes do Rio Negro ele cita: Dois dos meus Umaua, casados mas não tendo filhos, não queriam comer do veado assado, mostrando explicitamente sua forte repugnância, enquanto o terceiro, que já tinha um filhinho, comia com bom apetite. (Koch-Grunberg, 2005: 312) Koch-Grunberg descreve o parto, que nos mostra como era rodeado de cuidados. As observações feitas em campo por Theodor Koch-Grunberg vão ser depois consideradas por inúmeros pesquisas naquele contexto e vão servir de base para uma antropologia da região. O parto realiza-se na maloca ou numa barraca afastada, ou mesmo na mata, com auxilio e presença de todas as mulheres casadas que tem o rosto pintado solenemente de vermelho. Quem corta o cordão umbilical e a mãe do esposo. Ela usa tiririca, um capim cortante. O cordão umbilical e as páreas enterram-se logo, imediatamente. Se há gêmeos, o segundo-nato é morto e enterrado ali mesmo, imediatamente depois do nascimento. Se os gêmeos são de sexos diferentes, matam a menina. Poucas horas depois de um nascimento Florianópolis, Janeiro de 2014. 12

em Namocolfba, o pajé foi para perto da parturiente, que tinha sido isolada numa repartição feita de lascas de paxiúba e folhas de bananeira, e levou consigo todos os apetrechos da pajelança, chocalho, cristais de quartzo etc., colocados num balaio. Lá ele realizou as recitações de defesa, num monótono murmúrio, estando presentes somente a parturiente, seu marido, e os pais dele. A conclusão do resguardo, que sempre se realiza na repartição onde reside o jovem casal, e que durara cinco dias, era acompanhada por usos iguais aos do rio Tiquié. Antes de levarem o recém nascido para o primeiro banho, esvaziaram a casa inteira. Também nós tínhamos que levar toda a nossa bagagem para fora. Somente no dia seguinte foi que um parente próximo - pelo costume, e o irmão do marido - trouxe peixinhos cozidos para a refeição, e com isto estava terminado o tempo de jejum. Oito dias depois do nascimento, os pais preparam uma festa de bebida, em honra do seu recémnascido, e nela se reúne toda a parentela. Nesta ocasião, o avô (o pai do pai) dá o nome à criança. Os meninos quase sempre recebem dois nomes, e as meninas somente um. (Koch-Grunberg, 2005: 312,313) São esses rituais de nascimento e nominação que foram observados ainda por outros pesquisadores do noroeste que servirão de base para uma reflexão sobre os sistemas de organização, parentesco e sobre o xamanismo local. Os Tucanos (ver Jean Jackson, Hugh-Jones) são os que mais foram estudados nesse sentido, mas também existem muitas pesquisas sobre os Baniwa. No artigo Nomes Secretos e Riqueza Visível: nominação no noroeste Amazônico, Hugh-Jones (2002) fala que o processo de nominação acompanha os processos de desenvolvimento, de modo que uma pessoa adquire nomes no início da vida e deve despir-se deles no fim. O autor descreve o nascimento de um Makuna (tucano) e sobre esses dados desenvolve inúmeras reflexões importantes. Uma mulher, normalmente, dá à luz nas roças de mandioca em torno da casa; ela é, em geral, assistida por sua sogra ou outra mulher experiente que se torna a madrinha (masolio) da criança. Não há homens presentes. O bebê é pintado com tinta preta (wee) e banhado no rio; a mãe, então, retorna à casa onde o rosto e o corpo do recémnascido são ungidos com pintura vermelha (günanya). Antes de sua entrada, os homens removem de dentro dela todos os bens domésticos itens rituais, armas, bancos, potes e outros aparatos de cozinha etc. e eles mesmos saem da casa. Um xamã faz então a fumigação desta com cera de abelha incandescente, um ato que marca a separação entre os vivos e o mundo dos espíritos (ver S. Hugh-Jones 1979:186-189). Os pais e a criança ficam então de três a dez dias reclusos juntos, em um compartimento no interior da casa. Durante esse período, as atividades e a dieta de ambos ficam restritas Florianópolis, Janeiro de 2014. 13

para evitar males à criança; em particular, o pai deve abster-se do trabalho. O fim da reclusão, com seus alimentos e outras restrições, é marcado pelo banho no rio dos pais e da criança, tendo a água sido antes tornada segura através da fumaça (de lenha, tabaco ou cera de abelha) soprada por um xamã, ou um homem ou uma mulher mais velhos. Antes do banho, a mãe e o bebê têm a pele pintada com uma tintura preta (wee), todos os bens domésticos são mais uma vez removidos, os moradores saem e a casa é novamente fumigada com cera incandescente. Uma vez de volta a esta, o bebê é novamente ungido com pintura vermelha. Agora é considerado completamente humano e seus pais podem retomar gradualmente sua dieta e as atividades normais. (Hugh-Jones, 2002: 52) Segundo o autor (Hugh-Jones, 2002), os grupos tucano mais centrais e ao norte, como os Desana, Cubeo e Tucano, adiam a nominação até que os ossos da criança estejam duros e ela comece a andar e falar, considerando que os nomes são muito pesados e potentes para serem portados por bebês pequenos. Ainda segundo o autor, os que vivem na região do Pirá-Paraná e nas redondezas conferem nomes às suas crianças logo após o nascimento; neste caso, a justificativa é que a nominação transforma e modifica a alma (üsü wasoase) da criança, dando-lhe força e vitalidade e aumentando suas chances de sobrevivência. E o autor segue sua reflexão sobre o tema da chegada de um novo membro e o significado que tem isso em termos da relação com espíritos de ancestrais. Segundo suas observações: Como a mãe dá à luz na roça, o xamã (kumu), idealmente o parente agnático do pai da criança, submete-se a um processo paralelo, sentando-se em um banco durante horas a fio enquanto sopra encantamentos sobre a pintura vermelha e/ou a cera de abelha (basere, wanore). Em seus pensamentos, ele viaja para a casa de origem do grupo ou casa de transformação (masa yuhiri wii), onde ele localiza a criança em forma de espírito. Consultando os ancestrais (hee büküra), ele também escolhe um nome e um papel ritual para a criança e adivinha seu destino e os perigos que lhe podem ocorrer na vida. Ele, então, acompanha e protege a criança-espírito (üsü) e o nome, enquanto juntos eles se movem gradualmente do mundo espiritual imaterial dos ancestrais para assumir forma material aqui e agora, o bebê como carne e sangue, o nome como pintura vermelha (para meninas) ou cera de abelha (para meninos) aplicadas em seu corpo. O nome é o hee üsü ma, o caminho da alma ou elo com os ancestrais e enquanto o xamã sopra, o seu sopro confere vida, um processo de transformação que começa durante o trabalho de parto, mas que só é concluído no final do período de reclusão. A partir deste breve relato, emerge um padrão de nascimento duplo, que é ao mesmo tempo material e espiritual, que acontece tanto na roça como no rio, que vem tanto da mãe quanto do xamã, e que é reduplicado nas sequências paralelas do banho, que estruturam o período de reclusão. (Hugh-Jones, Florianópolis, Janeiro de 2014. 14

2002:53) É notório no trabalho de Hugh-Jones que temáticas do corpo, pessoa e substância compõem linhas fundamentais da análise do autor quando fala dos tucanos. O corpo do bebê é formado por substâncias fornecidas por ambos os pais: o sêmen paterno se torna osso e o sangue materno se converte em carne e sangue. Como uma entidade viva, o bebê também tem um coração, pulmões e respiração todos eles üsü. A linha de sêmen que passa do pai para a criança e a relativa durabilidade dos ossos em relação à carne são importantes idiomas de patrilinearidade tucano. Os instrumentos sagra- dos mostrados aos rapazes na iniciação são, simultaneamente, os ancestrais do clã e os ossos do único ancestral do grupo que adota os iniciandos como filhos (ver S. Hugh-Jones 1977). Sob forma simbólica, esses ritos também envolvem a transmissão de sêmen dos mais velhos para os mais novos (ver S. Hugh-Jones 2001). A vitalidade da criança, üsü, contrapõe-se ao seu nome e espírito üsü aqui como alma-nome, que está sob os cuidados do xamã e não provém do pai, mas da coletividade de ancestrais e, em particular, de um avô recentemente falecido. A contribuição de ossos do pai é relativamente durável, o nome do ancestral indiscutivelmente também. Comparando os nomes às flautas sagradas, aos ornamentos plumários e a outros bens, um xamã makuna afirma: eles são como o sol não apodrecem (ver, também, C. Hugh-Jones 1979:134-135). É apenas no final da reclusão, quando o corpo e o espírito da criança, alma-corpo e almanome, estão completamente unidos que ela é considerada completamente humana, um momento marcado tanto pelo banho conjunto dos pais com a criança, como pela queima de mais cera de abelha e por uma nova remoção dos bens domésticos. (Hugh-Jones, 2002:53) Tomando como referência a classificação de E. Viveiros de Castro dos sistemas de nominação ameríndios enquanto continuum do pólo exonímico ao pólo endonímico, Hugh-Jones (2002) faz uma comparação entre os sistemas de nominação Tucano, Jê e Bororo (2002:46). O autor diz que o sistema tucano combina endonímia e elementos de exonímia a partir de grupos patrilineares que dependem de seus afins para a reprodução, o que o distingue desses outros sistemas (2002:63). Hugh Jones cita uma seção de um mito que forma a base de grande parte do xamanismo envolvendo o parto tucano e que segundo ele, esclarece o padrão de duplo nascimento. Sugere que se a origem material dos bebês está nas mulheres, Florianópolis, Janeiro de 2014. 15

sua origem espiritual está no rio, assim como todos os Tucano afirmam uma origem aquática única a partir dos ancestrais saídos da Cobra d Água. Diz o mito Depois que a mãe de Warimi foi morta pelas onças, ele escapa para o rio, sob a forma de espírito. Ali ele brinca com um grupo de crianças que tramam agarrá-lo. Enterram uma menina na margem arenosa do rio, urinam sobre sua pélvis e se afastam. Enquanto Warimi brinca com as borboletas atraídas pela urina, ela bate suas pernas e lhe dá à luz, encarnado em uma criança (ver S. Hugh-Jones 1979:277). Numa das passagens da tese de Geraldo Andrello ele diz que quando uma pessoa morre, o corpo se desfaz na terra, volta para a terra, ye pâ. E o autor segue Mas a alma se decompõe, pois uma parte dela, que já nasceu junto com o corpo se dirige para dia-wapîra wi i, e outra parte, aquela associada ao nome pessoal volta para a casa de transformação à qual o nome da pessoa que morreu está associado. E assim, é como uma essência que retorna à sua fonte de origem, podendo ser realocada em outras crianças que venham a receber o mesmo nome. A reciclagem dos nomes é feita em geral em gerações alternadas, de maneira que há uma tendência de que um filho primogênito receba o nome do avô paterno. (Andrello, 2006:242,243) Um texto fundamental para a temática da produção da pessoa entre os ameríndios é o artigo de 1979, A construção da pessoa nas sociedades indígenas de Anthony Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro. O artigo já citado no projeto de pesquisa, e valeu ser reconsiderado aqui pela sua importância. Esse foi um dos tópicos tratados na entrevista que fiz com Anthony Seeger, um dos autores, descrito nesse relatório. Segundo o próprio autor, imbuídos de levar adiante um movimento que se fazia na antropologia brasileira no final dos anos 70, o artigo tornou-se uma referência. Espelhando-se em Mauss, Dumont e em etnografias dos povos da América do Sul, inclusive várias do Noroeste, o artigo mostra como a noção da pessoa e de corporalidade são bases para entender as dinâmicas sociais e a organização social dos povos indígenas nas Terras Baixas da América do Sul. O tema é um marco importante para a antropologia brasileira. Aponta para a preocupação dos povos aqui residentes privilegiarem uma reflexão sobre a Florianópolis, Janeiro de 2014. 16

corporalidade na elaboração de suas cosmologias. Este privilégio da corporalidade se encontra dentro de uma preocupação mais ampla: a definição e produção da pessoa pela sociedade (1979:03). Diversas etnografias da Amazônia mostram como as práticas corporais são fundamentais e são diversas para construir uma pessoa são os cuidados que se deve ter para produzir e criar gente, na relação com os demais membros de uma sociedade. Tais práticas corporais envolvem teorias de concepção, teoria de doenças, papel dos fluidos corporais no simbolismo geral da sociedade, proibições alimentares, ornamentação corporal, entre outras. Para Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, (1979:03) a fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social. Uma fisiologia dos fluidos corporais sangue, sêmen e dos processos de comunicação do corpo com o mundo (alimentação, sexualidade, fala e demais sentidos) parece subjazer às variações consideráveis que existem entre as sociedades sul-americanas, sob outros aspectos. (1979:11). Os autores citam pesquisas etnográficas sobre essa população A produção física de indivíduos se insere num contexto voltado a produção social de pessoas, isto é, membros de uma sociedade específica. O corpo, tal como nós ocidentais o definimos, não é o único objeto (e instrumento) de incidência da sociedade sobre os indivíduos: os complexos de nominação, os grupos e identidades cerimoniais, as teorias sobre a alma, associam-se na construção do ser humano tal como entendido pelos diferentes grupos tribais. Ele, o corpo afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano. (Seeger, Da Matta, Viveiros de Castro, 1979:03, 04). Em grande parte das populações que tive acesso durante a pesquisa neste projeto as crianças são tidas como um iniciante que precisa (assim como qualquer membro do grupo que se inicia em algo) de um controle ainda maior e um investimento constante para se situar e se educar para esse mundo prático e sobrenatural (ver Pereira, 2013; Souza, Deslandes e Garnelo, 2011). Fechar o Florianópolis, Janeiro de 2014. 17

corpo, um termo que surgiu nas conversas com os familiares das crianças em pesquisa de campo, envolve rituais diversos é uma das principais práticas no cuidado das crianças quando doentes ou para a prevenção da doença. Mostra como essas devem ser, desde o nascimento, alvo de técnicas preventivas e de cura. Viveiros de Castro (1986) lembra que entre os Araweté, quando uma criança nasce ela está aberta às ações e substâncias paternas, especialmente as da mãe, penetram em seu corpo. "Ainda bem pequenas (de "cabelo novo", como dizem), as crianças são frequentemente submetidas a uma operação xamanística, a pedido dos pais: o "fechamento do corpo" ou "tapagem". Seu objetivo é permitir que os pais retomem paulatinamente suas atividades, e evitar que a criança tenha "dor na carne". A simbólica e evidente: a criança está aberta, as ações e substâncias paternas penetram em seu corpo."(1986:447). A dissertação "Criando Gente no Alto Rio Negro: um olhar Waikhana de Rosilene Fonseca Pereira (2013), recentemente defendida no PPGAS da UFAM, trata de modo particular do tema entre seus familiares residentes no Rio Negro. A autora, uma antropóloga descendente do grupo que aborda na sua dissertação, mostra como entre seus familiares um bebê é cuidado da gestação ao nascimento. Diz a autora que o nascimento "é entendido como a passagem de um mundo bom para um mundo sujo e cheio de doenças. Por isso prepara-se o local com o bharceyé (conjunto de benzimentos, narrativas sagradas) para protegê-las. Durante todo o ciclo da gestação vão sendo compartilhados conhecimentos tanto do pai quanto da mãe e dos avós. (Pereira, 2013: 49). O bhaeceyê é considerado uma ação de proteção extremamente importante, que acompanha os waikhana desde a criação (narrativas de criação dos waikhana), o nascimento, o processo de formação de nirhinonrriré (pessoa desde o nascimento até 14 anos) para adulto, alianças matrimoniais, deslocamento na mata, nos novos rios, igarapés e para outros lugares distantes de nossos contextos, abertura de novos sítios, construção de moradia, meios de transporte, confecção de utensílios domésticos (...).(Pereira, 2013:49) A ausência desses cuidados pode gerar a perda da criança, já que Se não houver bharceyé logo que o bebê nasce, os hiorkiê-marsawirirhê ficam bravos, fazem Florianópolis, Janeiro de 2014. 18

barulho, a terra treme, e os whaimarsãwirriré, os seres da água aparecem e querem levar o bebê. (Pereira, 2013:55). O trabalho de Rosilene Fonseca é o único da região que toma o tema infância como foco, muito embora ela não trabalhe diretamente com as crianças e seus pontos de vista e sim com a memória dos seus pais e parentes sobre suas infâncias. No entanto, o trabalho da autora mostra como o tema é rico e cheio de possibilidades de descobertas. Trata-se de uma excelente etnografia sobre a vida das crianças na região do Rio Negro. Na dinâmica cotidiana dos grupos do Rio Negro há um indicação que toda criança fala pelo menos duas línguas, a do pai e a da mãe. Segundo Flora Cabalzar, falando dos tuyuca, a criança terá mais intimidade com a língua da mãe no início de sua socialização, fato que garante, justamente, a persistência do multilinguíssimo característico desta região. Na socialização da criança, entretanto, deve-se levá-la a, progressivamente, abandonar a língua da mãe pela do pai (Gómez-Imbert, 1996: 443), uma vez que compreenda que há mais de uma subcomunidade linguística no seu campo social. Mahecha (2004: 235-6) enfatiza a importância da competência cultural tanto na língua do pai como na da mãe, mais valorizadas respectivamente pelos parentes agnáticos e afins. O domínio da língua seria um indicador concreto dos conhecimentos que a pessoa tem de sua Gente. O emprego correto das diversas formas retóricas valorizadas em diversos contextos seria a condição básica para poder afirmar que se tem um pensamento completo. Também seria igualmente importante dominar um vocabulário básico em outras línguas faladas nas regiões por onde a pessoa circula (idem: 235-6).(Cabalzar, 2012: 14) Estudando os hupd äh da região do Rio Negro, Renato Athias diz os modos de passagem do conhecimento entre esses não se difere dos demais grupos da região, salvo detalhes específicos. O autor refere-se aos clãs (famílias) como fundamentais na transmissão do conhecimento. A importância da família se mostra nos cuidados que os pais e as mães têm com as crianças Hupd'äh. Após o nascimento os recém nascidos permanecem sempre com a mãe, e conforme vão crescendo começam a aprender a falar a língua corrente, por volta dos quatro a cinco anos de idade. (Athias, 2010:08). O autor diz ainda que é na vida prática, na atividade diária que os Florianópolis, Janeiro de 2014. 19

ensinamentos são passados, mas também pelos mitos narrados especialmente pela noite na casa comunal, quando o silencio é maior. Mas ainda se ensina pelos rituais, como o do dabucuri. Entre os Hupd'äh, as festas, os rituais de iniciação são os momentos centrais para falar nos saberes tradicionais, no entanto, todos os momentos podem ser aproveitados para a transmissão, como no banhos matinais, caçadas, pescarias, na selva e nos locais de trabalho (Athias, 2010:05). A oralidade parece ser uma maneira especial para repassar seus conhecimentos. Entre os Hupd'äh são transmitidos e assimilados, os mitos, as histórias, as tecnologias de caça, as fórmulas terapêuticas e de proteção - a hierarquia dos clãs, todos estes conhecimentos são repassados pela oralidade tanto pelos pais aos filhos, avôs aos netos. As narrativas mitológicas e as histórias, as fórmulas terapêuticas e de proteção e a hierarquia dos clãs acontecem durante as festas de Dabucuri, ou também os conhecimentos podem ser repassados durante a noite, segundo os Hupd'äh é o momento em que todos estão acomodados, sem barulhos que lhes incomode e principalmente pela mente estar descansada, facilitando a memorização dos extensos conteúdos relativos à trajetória percorrida pelos seus ancestrais.(athias, 2010: 06). O autor diz ainda que quando questionados sobre como adquiriram conhecimento sobre suas atividades econômicas, os Hupd'äh, recorrem sempre as narrativas da passagem de K'eg-teh neste mundo. São episódios incríveis e de transmissão de conteúdos metereológicos para realizar alguma iniciativa. E faz parte daquele repertório das histórias dos Hipãh-teh, de um conjunto de exemplos que se encaixam no saber-fazer hup. Por exemplo, sobre os locais de caça e as técnicas de caça, a armação das armadilhas de caça, que conhecem, afirmam que foi K'eg-teh que deixou para a humanidade (incluindo todos nós). (Athias, 2010:08). Segundo o autor as histórias míticas são fontes de conhecimentos dos Hupd'äh, e as ações de personagens míticos são justificativas dos seus comportamentos. É nesse sentido que fazem questão de transmitir essas histórias aos filhos, pela importância que tem no contexto vivido por eles. São essas histórias que norteiam as suas atividades. (Athias, 2010:08) Os Hupd'äh, (assim como os demais povos da região do Rio Uaupés e Tiquié) são compreendidos por outros povos da região através das histórias mitológicas que Florianópolis, Janeiro de 2014. 20