ENTREVISTA Questões para Adauto José Gonçalves de Araújo, FIOCRUZ, em 12/11/2009

Transcrição

1 FGV CPDOC 29/10/2010 Disciplina: Pesquisas Qualitativas - Prof. Mariana Cavalcanti Aluna: Adriana Maria Ferreira Martins Matrícula ENTREVISTA Questões para Adauto José Gonçalves de Araújo, FIOCRUZ, em 12/11/ Como conheceu Niéde Guidon e o Parque Nacional Serra da Capivara? Conheceu primeiro Niéde. Sua linha de pesquisa é a paraparasitologia. Conheceu a Niéde no início da década de 80, quando era professor da UFRJ e fazia doutorado pela FIOCRUZ. Já tinha contato com os arqueólogos do RJ e de Minas Gerais. Seu primeiro contato com ela foi por carta, depois a conheceu num Congresso de Arqueologia promovido pela Universidade Estácio de Sá, que, na época, oferecia o curso de graduação na área. Foi ao Parque pela primeira vez, a convite dela, em 1984 e logo depois começou a trabalhar para a FIOCRUZ e a Escola Nacional de Saúde Pública. O convite era para todos os participantes do Curso de Especialização em Arqueologia de Teresina, que foi, em 1984, ministrado por Niéde, e também para os alunos de graduação da Estácio de Sá. Mais de 30 pessoas se reuniram para ir conhecer o Parque por aquela ocasião. A parceria FIOCRUZ e FUMDHAM começou logo em seguida, em 1986, e Adauto fazia visitas ao Parque pelo menos uma vez por ano, acompanhado de alunos e outros pesquisadores da Escola de Saúde Pública. 2. Participou do processo de criação do Parque? O Parque já havia sido criado por decreto em 1979 e sua delimitação foi feita em Estava lá quando o pessoal do então IBDF chegou para fazer os estudos de demarcação da área do Parque. 3. Quanto aos estudos sobre a origem do homem americano: _ presença do homem no continente há 50 mil anos: Debate científico ainda persiste. A arqueologia clássica dominante é a que diz que a presença do homem no continente se deu há no máximo 13 mil anos. As datações obtidas

2 por Niéde no Piauí constatam que isso ocorreu há pelo menos 50 mil anos. Enquanto não encontrarem uma evidência cabal, por exemplo, ossos humanos de 50 mil anos, o debate irá permanecer. _ evidências coprólitos (fezes humanas muito antigas e preservadas): procura de parasitas em material arqueológico; recuperação de material genético dos parasitas. O seu tema é a origem e a evolução das doenças infecciosas. Pesquisa a presença de parasitas nas populações pré-históricas a partir da análise dos coprólitos. A preservação do material encontrado no Piauí ainda não permitiu a extração do material genético (em razão das condições do clima, solo), mas é uma questão de técnica. Técnicas novas devem vir a permitir. 4. Participou do processo de criação da FUMDHAM? Sim. Foi diretor científico da Fundação de 1996 a Antes disso, em 1986, houve uma reunião em Campinas promovida pela Niéde quando se decidiu criar a Fundação. Estavam, além dela, ele e mais uma pesquisadora da Fiocruz (Márcia Chame), Ane Marie Pessis, na época pesquisadora da França, e mais alguns pesquisadores da UNICAMP. Já havia um museu em São Raimundo Nonato onde ficavam guardados os materiais que eram recolhidos. O criador do museu, José Lopes, também participou da criação da Fundação. Devido à constante presença da Niéde em Brasília, conseguiu-se com que finalmente houvesse o processo de demarcação do Parque pelo então IBDF, também em Nessa mesma reunião, o grupo resolveu criar o Projeto Educação, Saúde e Desenvolvimento Sustentável junto com o Governo da Itália através da Agência Terra Nova de Cooperação Internacional por indicação de Cristina Pompa, antropóloga, e Flávio Parente, arqueólogo, ambos pesquisadores italianos que eram da FUMDHAM. Com isso, investiu-se em educação (escolas), saúde (construção de um Centro de Saúde que, posteriormente foi municipalizado, com formação de agentes locais de saúde) e novas fontes de renda (apicultura e cerâmica), atividades que são desenvolvidas pela população local até hoje. Era já uma tentativa de proteger o Parque e de oferecer aos povoados condições mínimas de sustento.

3 Especificamente sobre a área de saúde, o Centro, instalado em um dos povoados no entorno do Parque, fazia inicialmente atendimento diário de cerca de 500 pessoas, pois era o único atendimento de saúde daquela região. Além disso, o pessoal mesmo da FIOCRUZ, por exemplo, levava de carro, do Rio de Janeiro até São Raimundo Nonato, vacinas e geladeiras portáteis para as campanhas de vacinação infantil, que eram praticamente inexistentes no local naquela época. Mais tarde somente é que o serviço foi municipalizado. Pessoas dos diversos povoados se dirigiam até o Centro. Com o tempo e o trabalho das agentes locais de saúde treinadas, que faziam visitas domiciliares, esse nº diminuiu enormemente. A equipe era constituída de um médico italiano, uma enfermeira brasileira e 3 agentes locais de saúde formadas pelo projeto. Eles implantaram um programa de saúde da família. Com isso, os casos de morte de crianças por diarréia, que eram extremamente comuns, foram a zero, bem como por doenças imuno-previsíveis, já que todas elas estavam vacinadas. O projeto formou também cerca de 15 técnicos em exames laboratoriais. Embora nem todos tenham seguido nessa área, alguns deles hoje são pessoas bem sucedidas. 5. Sobre o estudo de viabilidade econômica para o Parque e região: O turismo é, em sua opinião, a grande saída. Com esse projeto da Itália, vieram agricultores italianos que testavam plantas, não só com fins comestíveis, mas também com fins ornamentais. Algumas até podiam ter alguma viabilidade, ocorre que a população local, que não tem nenhuma tradição nisso, não seria capaz de se sustentar. O isolamento entre os povoados daquela região era tão grande que mesmo entre eles havia divergência nos usos das plantas tidas como de uso medicinal. Esse também foi um tema de pesquisa desenvolvido por alunos da Escola Nacional de Saúde Pública. 6. A FUMDHAM teve êxito em suas propostas de desenvolvimento (educação, cultura, apicultura, cerâmica)? Sim, o projeto deu certo. O que existe lá ainda hoje, já bem mais desenvolvido agora, é fruto dessa iniciativa. 7. A criação do Parque gerou atritos com a população local? Como foi esse processo?

4 Essas dificuldades devem ser esperadas sempre. No momento em que se começa a mudar os modos de vida das populações, os conflitos são inevitáveis, inclusive por parte de lideranças políticas locais. É difícil contentar a todos e é isso que a Niéde vem enfrentado durante todo esse tempo. Algumas pessoas se associam e colaboram, outras se associam e se mantêm contra. A própria questão da implantação de um serviço público estruturado de saúde causou polêmica. Em 84, por exemplo, havia, em São Raimundo Nonato, apenas um hospital público totalmente inoperante e duas clínicas privadas que atendiam a todos e que não viram com bons olhos esse esforço para o oferecimento de um serviço de saúde gratuito. Esse tipo de conflito se estende a todas as outras áreas. Hoje em dia o hospital funciona muito bem, mas isso é resultado de uma mudança gradual que ainda está acontecendo em toda a região. Por exemplo, foram criados novos municípios no entorno do Parque. Hoje são quatro, naquela época era apenas um. Isso acaba trazendo mais recursos municipais, estaduais e federais para a região. 8. Sobre a parceria FIOCRUZ e FUMDHAM para pesquisas: Foi formalizada em 1986, embora já houvesse troca de conhecimentos entre as equipes desde 1984, a partir da primeira visita ao Parque. 9. Essa parceria envolve recursos humanos da FIOCRUZ e da FUMDHAM? O número de pessoal é suficiente? Há alguma dificuldade? Sim, envolve pesquisadores das duas instituições e não há nenhuma dificuldade quanto a número de pessoal nem quanto a qualquer outra questão. 10. A hipótese que caba sendo construída é de que o Parque ainda é visto com descaso pelo Governo Federal porque não há no país uma política cultural estruturada e voltada para a área de patrimônio. Não teve e talvez agora esteja criando. Parece que hoje há algum esforço, porém incipiente e pontual, por parte do Governo. 11. Perspectiva futura para o Parque:

5 Uma coisa inacreditável já aconteceu que é a perspectiva próxima e concreta de inauguração do aeroporto na cidade de São Raimundo Nonato. Com isso não é absurdo se pensar que a segunda ideia da Niéde, de colocar um trem bala de São Raimundo ao Delta do Parnaíba, se realize. Com a Niéde, a gente pode acreditar em qualquer coisa. A perspectiva é otimista sim, pois a mudança ao longo desse tempo já foi muito grande. Quando chegou em São Raimundo, em 84, havia um único telefone público na cidade e, nas épocas de seca, os homens migravam em busca de trabalho e dinheiro para São Paulo ou para a mineração no Pará. As mulheres ficavam sozinhas com a família e houve vez em que ouviu, na telefônica, uma moça, acompanhada de uns quatro ou cinco filhos, pedindo, ao telefone, que seu marido retornasse para casa pois não havia mais criação, os animais haviam morrido, e um menino já tinha morrido também. Depois que Niéde começou a montar toda aquela infraestrutura do Parque, para além da melhora em saúde já citada, os homens em geral pararam de migrar; permaneciam lá porque tinham emprego, tinham dinheiro. Construiu-se o museu, construiu-se um hotel. E, fora os investimentos feitos pela FUMDHAM, a Fundação atraiu outros investimentos também consideráveis para a cidade.