OS RELACIONAMENTOS AFETIVOS DE MULHERES COM TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE Élide Dezoti Valdanha, Fernanda Kimie Tavares Mishima e Valéria Barbieri. INTRODUÇÃO De acordo com o DSM-IV-TR - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Associação Americana de Psiquiatria, 2002), as características primordiais do Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) são a instabilidade dos relacionamentos interpessoais, da autoimagem e dos afetos, assim como intensa impulsividade que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos. Os principais critérios indicativos do diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline são: Pessoas com TPB podem demonstrar tais atitudes e comportamentos: evitação exacerbada de um abandono real ou imaginário (1); padrão de relacionamentos instáveis e intensos (2), relacionado a uma autoimagem instável (3); impulsividade em, no mínimo, duas áreas prejudiciais em sua vida (4); presença de comportamentos, gestos ou ameaças suicidas ou comportamento auto-mutilante (5); instabilidade afetiva (6); sentimentos crônicos de vazio (7); expressão de raiva intensa ou inadequada, ou dificuldade para controlar a raiva (8); ideação paranóide ou sintomas dissociativos transitórios, durante períodos de estresse (9). De acordo com Bergeret (1974/1991), teórico estruturalista da personalidade, levando em consideração a evolução pulsional, o ego (nas organizações borderline) se desenvolve em direção ao complexo de Édipo e, em seu início, sofre uma frustração intensa e impactante, o que impede que a relação triangular edípica seja vivenciada plenamente, ou seja, há um salto do complexo de Édipo, o qual é nomeado pelo mesmo autor de trauma psíquico precoce. O mesmo seria um trauma afetivo, um risco de perda do objeto, uma emoção demasiado intensa, não possível de ser elaborada por um
aparelho psíquico ainda imaturo. Pode ocorrer uma entrada brusca no complexo de Édipo, por uma criança que ainda não estaria preparada para tal, o que impossibilita experienciar uma relação triangular e genital com seus objetos, bloqueando seu desenvolvimento maturacional. As relações interpessoais estabelecidas por estes indivíduos são caracterizadas por extrema dependência (relação anaclítica) em relação ao objeto e intenso medo de perdê-lo, há uma necessidade constante de apoio, asseguramento e compreensão e uma luta incessante contra a depressão (pela possível perda do objeto). Neste sentido, essas pessoas teriam experiências permeadas por relacionamentos envoltos em tentativas heróicas e desmesuradas para manter e assegurar o amor e a presença do objeto anaclítico. Kernberg (1967, 1975) buscou analisar pacientes borderline de acordo com a perspectiva psicanalítica, trazendo a expressão organização de personalidade borderline, com características de padrões de fragilidade do ego, operações defensivas primitivas e relações objetais problemáticas. Os pacientes com TPB parecem vivenciar repetidamente uma antiga crise infantil, na qual há temor que uma tentativa de separação da mãe resulte em seu desaparecimento completo ou abandono. Essa situação acontece pelo prejuízo no processo de internalização de uma imago materna tranquilizadora, devido à presença inconstante da mãe. Assim, tais pacientes não toleram a separação e não são capazes de ficar muito tempo sozinhos, pois os períodos de solidão são tão angustiantes quanto o temor em ser abandonado pelas pessoas significativas (KERNBERG, 1975). As personalidades de organização borderline estão, em termos de desenvolvimento pulsional, fixadas em uma pseudolatência, não verdadeiramente genital. Para Winnicott (1989/1994) essas personalidades, em virtude de um ambiente
demasiado intrusivo ou ausente, possuem sua tendência ao desenvolvimento interrompida, como uma maneira de reação à intrusão ambiental, o que poderia levar à cisão em dois selves: o self verdadeiro e o falso self cindido. Na divisão em dois selves, em um nível patológico, o self direcionado para a adaptação exterior pode ser hipertrofiado o suficiente para impedir que as vivências e impactos não se aproximem do self verdadeiro, ou então se aproximem de modo muito filtrado, até disfarçado. Neste sentido, a sexualidade pode ter sua formação incipiente, ou até mesmo impedida, já que o indivíduo não vivencia genuinamente suas experiências, o que implicaria em um contato direto do self verdadeiro (gesto espontâneo) com o ambiente, ou seja, os impulsos sexuais seriam gradativamente assumidos e apropriados como parte do ser. Em termos pulsionais, é possível comparar tal falha no desenvolvimento da sexualidade com o não desenvolvimento da genitalidade, característico de pacientes borderline, conforme proposto por Bergeret. Outra característica observada em pacientes borderline refere-se à vivência de maternagem. A função materna suficientemente boa exige da mãe uma disposição interna para doação afetiva ao filho, a fim de atender suas necessidades físicas e emocionais. Contudo, tais pacientes têm dificuldade em perceber as necessidades do outro como diferentes das suas, o que prejudica a experiência de preocupação materna primária e a identificação da mãe com seu bebê (WINNICOTT, 2000). Seguindo essa linha de raciocínio, o exercício da maternagem fica comprometido, o que causa impacto no desenvolvimento da criança (MURRAY & COOPER, 1997). Crandell, Patrick e Hobson (2003) realizaram um estudo que evidenciou mães com TPB como intrusivamente insensíveis na relação com seus filhos pequenos. Em resposta a isso, essas crianças mostram-se atordoadas, ausentes e relativamente deprimidas.
OBJETIVO Este estudo tem como objetivo apresentar casos clínicos de mulheres com TPB, com foco na maternagem, relacionamentos interpessoais e sexualidade. CASOS CLÍNICOS Participaram deste estudo quatro mulheres diagnosticadas com TPB, com idades entre 31 e 37 anos e todas são mães, que passaram por avaliação psicológica interventiva. Os dados foram interpretados segundo abordagem psicanalítica winnicottiana. DISCUSSÃO Os resultados deste estudo mostraram que, todas as mulheres (diagnosticadas com TPB) vivenciaram experiências de privação em relação à satisfação de suas necessidades enquanto crianças. Ao que tudo indica, nesse estágio de desenvolvimento, elas não tiveram suas necessidades afetivas supridas, devido a prejuízos no holding e apoio emocional por parte das próprias figuras maternas. Essa deficiência no cuidado afetivo fez com que as participantes desenvolvessem dificuldades em entrar em contato com seu mundo interno, e, assim, não pudessem conhecê-lo e integrá-lo à personalidade. Por conseqüência, houve o aparecimento de intensos sentimentos de incapacidade, insegurança, baixa auto-estima, demonstrado na maneira como as elas concebiam sua auto-imagem. Esse comprometimento no conhecimento do mundo interno está relacionado à dificuldade que as participantes demonstraram em serem espontâneas, em exercerem sua criatividade e soltarem a imaginação, expressando a possibilidade de existir de forma verdadeira e pessoal no mundo. Conseqüentemente, há dificuldades de se relacionar com o ambiente externo; se não conseguem olhar para si mesmas, é muito
difícil olhar e entender o que o outro quer e deseja. Assim, demonstraram ter e manter com seus maridos e companheiros esse tipo de relação, buscando seu apoio e cuidado, que deveriam ter sido experienciados com as próprias figuras parentais, especialmente a materna. Elas manifestam uma intensa necessidade de receber afeto do outro, chegando mesmo a sufocá-lo. Nessa busca de contato agem, muitas vezes, de maneira impulsiva, por levarem a necessidade e o desejo em primeiro lugar, que surgem pouco mediados pelo pensamento. A percepção de que dependem do outro e de que não bastam a si mesmas, acarreta nessas mulheres uma dolorosa ferida narcísica, por contrariar as exigências de seu ideal de ego. Por outro lado, acreditar que podem ser independentes implica perder o objeto amado. Dessa forma, o conflito e a angústia continuam presentes, e, por não conseguirem solucioná-lo, acabam por sentirem mais ansiedade e intensificam o sentimento de desvalorização de si. A fragilidade emocional apresentada por elas remete à pouca tolerância às frustrações que elas apresentam, pois estas remetem-nas àquelas vividas nas experiências infantis significativas. Como buscam o outro com o intuito de suprir suas próprias necessidades, não conseguem fazer o inverso, ou seja, atender as necessidades dos filhos. Em suma, a criança é vista como alguém que também pode satisfazer as necessidades da mãe, e não como aquela que precisa ser atendida por ela. Essa situação também indica o prejuízo das participantes em relação à aquisição da autonomia, já que não tiveram possibilidades de conhecer seu mundo interno, sugerindo dificuldade de se doar afetivamente ao outro, de olhá-lo como ele realmente é e compreender quais são as suas reais necessidades. Sendo assim, o filho acaba por se sentir inseguro para criar soluções para seus problemas, em agir de modo espontâneo e se sentir pertencente a um lugar no mundo.
A busca por relacionamento anaclítico com os maridos, buscando neles a satisfação de suas necessidades, é mal sucedida, porque eles não conseguem suprir as necessidades afetivas de suas companheiras, devido à presença de defesas rígidas de tipo obsessivo, geradoras de dificuldades de contato com seus afetos. Assim, eles não conseguem estabelecer um relacionamento afetivo pleno com suas esposas, não correspondem às expectativas delas e não suprem suas necessidades. Dessa forma, a lacuna afetiva das participantes continua existindo. Como em um círculo vicioso, essa dificuldade na relação com o esposo intensifica as dificuldades já existentes na relação da mãe com o filho, já que o desempenho da função materna depende de como elas são vistas e apoiadas pela figura masculina (WINNICOTT, 1997). Em suma, por não se verem de uma maneira integrada e não terem suas necessidades supridas, as mulheres também não conseguem satisfazer as necessidades do filho, deixando de suprir a dependência deste, necessária para que ele alcance sua autonomia; assim, não criam possibilidades para que ele expresse seu self verdadeiro. Dessa forma, corrobora-se o fato de que o envolvimento da mãe com seu bebê depende da sua auto-imagem e da sua relação com aqueles que estão à sua volta, especialmente dentro do círculo familiar (WINNICOTT, 1993). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders DSM-IV-TR. Washington (DC). (2002). BERGERET, J. (1974). Personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. CRANDELL, L. E., PATRICK, M. P. H., HOBSON, R. P. Still-face interactions between mothers with borderline personality disorder and their 2-month-old infants. Br J Psychiatry V. 183, p. 239-47, 2003. KERNBERG, O. F. Borderline personality organization. Journal of american Psychoanalysis Association, v. 15, 641-685.
KERNBERG, O. F. Borderline conditions and pathological narcissism. Nova York: Jason Aronson, 1975. MURRAY, L. & COOPER, P.J. Postpartum Depression and Child Development. Guilford, 1997. WINNICOTT, D.W. (1945). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993 WINNICOTT, D.W. (1956). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. WINNICOTT, D. W. (1989). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. WINNICOTT, D. W. Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.