BRASIL CONIC Que modelo de Estado? Perspectivas sociológicas, teológicas e bíblicas. Documento Final



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Transcrição:

CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL CONIC Secretaria Geral: SCS Qd. 01 Bl. E Ed. Ceará Sala 713 - Brasília - DF CEP: 70303-900 Fone/Fax: (61) 3321-4034 www.conic.org.br - conic@conic.org.br XV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL CONIC Que modelo de Estado? Perspectivas sociológicas, teológicas e bíblicas. Documento Final Nos dias de 08 a 10 de março de 2013, realizou-se a XV Assembleia Geral Ordinária do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil CONIC, no Instituto Pio XI, em São Paulo. A Assembleia contou com 51 participantes, incluindo delegados das Igrejas que formam o CONIC, representantes das organizações ecumênicas regionais do CONIC e delegados das entidades ecumênicas fraternas. O tema central de estudos foi a pergunta: Que modelo de Estado? Perspectivas sociológicas, teológicas e bíblicas. A Assembleia refletiu sobre o que se entende por Estado, qual a relação do Estado com a sociedade civil e como deve ser a relação entre o Estado e as Igrejas e religiões. Também foi abordada a questão do significado da presença e da ação das Igrejas e das religiões na sociedade brasileira. I - QUE MODELO DE ESTADO? A relação Estado - Sociedade civil A reflexão sociológica sobre o modelo de Estado permite compreender que, não obstante as dificuldades de definição do que é o Estado, ele se constitui como um pacto, uma aliança assumida pelos cidadãos de uma determinada nação. Esse pacto, que se expressa, entre outros elementos, pelas leis, normas e princípios que regulamentam o comportamento de uma nação, pode tanto contribuir para afirmar os princípios de justiça, igualdade e liberdade de todos os cidadãos, como pode também apenas representar os interesses de grupos hegemônicos da sociedade. Ao longo da história da humanidade, construiu-se se o sistema democrático, entendido como o modelo de Estado que melhor contribui para a realização das aspirações de todos os cidadãos e todas as cidadãs de uma nação. Infelizmente, constata-se que esse sistema manifesta falhas quando, entre outros problemas, gera uma classe política e favorece grupos econômicos que exercem forte influência, tanto sobre o governo quanto sobre a sociedade civil, e se tornam autônomos em relação ao Estado e à sociedade como um todo. Isso é visível no Estado brasileiro. Ele encontra-se atrelado a grupos econômicos hegemônicos, a serviço do sistema capitalista que aboliu a dimensão ética de sua estrutura, evidenciando-se como um Estado patrimonialista e tributarista, fundamentado na exploração dos recursos humanos e naturais. Politicamente, o Estado reproduz os vícios históricos do autoritarismo e do clientelismo, em detrimento da democracia participativa. Economicamente, a atual elite política do Brasil implanta uma lógica financeira que sustenta um programa neoliberal de governo, cooptando os partidos políticos em detrimento da 1

possibilidade de realização do desejo de justiça e igualdade para todas e todos. Há uma subordinação do Estado à lógica do capital financeiro. Ao longo das últimas décadas, as organizações da sociedade civil lutaram fortemente contra o regime autoritário e pela sua democratização, exigindo do poder público a incorporação das demandas populares no processo social. São exemplos disso o processo constituinte, os avanços na garantia de direitos sociais, a constituição de um governo popular, a implementação de políticas públicas voltadas às populações carentes. Mesmo assim, porém, o governo ainda permanece omisso na busca de solução de problemas estruturais da sociedade brasileira, particularmente os que se referem à saúde, à educação, à distribuição de renda, entre outros. Grande parte da população continua sofrendo as consequências do subdesenvolvimento, da marginalização, da pobreza e da miséria. Constata-se também, atualmente, um enfraquecimento do vigor das organizações da sociedade civil, que perdem cada vez mais sua capacidade de contribuir para a implementação de políticas públicas que atendam aos interesses da população brasileira como um todo. Torna-se necessária uma reforma do Estado brasileiro. Essa reforma precisa restabelecer o vínculo entre o governo e a sociedade civil, fortalecendo os instrumentos de participação popular na administração pública. As iniciativas tomadas para isso até hoje, como os Conselhos de Cidadania e as Conferências temáticas, não alteram substancialmente a correlação de forças no Estado, mantendo os espaços tradicionais de negociação e alianças táticas a serviço dos interesses capitalistas. Como Igrejas, entendemos que a reforma do Estado se dá por uma efetiva participação dos cidadãos na defesa e promoção dos direitos sociais, capacitando os setores excluídos da sociedade para a vivência dos próprios direitos e exercício dos seus deveres. Os setores populares exigem a transformação do Estado e da sociedade como um todo a partir das reais necessidades da população, fundamentada nos valores éticos. II A PRESENÇA DAS RELIGIÕES NO ESPAÇO PÚBLICO Há muitas formas de presença das religiões na sociedade, entre elas as Igrejas cristãs que o CONIC representa. Cada uma segue suas próprias doutrinas e tem sua forma de organização e de ação. Esses elementos orientam também a compreensão que as tradições religiosas têm da sociedade e das questões que envolvem o complexo social. A partir do modo de entender e abordar essas questões podem impulsionar ou dificultar a integração e a harmonia da vida social, a cidadania, a participação política. As comunidades religiosas tanto podem ser parceiras na realização de projetos que possibilitam encontros, diálogos e cooperação entre as diferentes expressões sócio-culturais e religiosas, como podem também obstaculizar processos que a isso conduzem. Uma pergunta teológica se coloca diante de nós, como religiosos: qual a presença que Deus exige de nós (cf. SOUC 2013)? No Brasil, a separação entre Igreja e Estado, que acontece a partir de fins do século XIX (Decreto n. 119 A, de 07/01/1890), estabelece a liberdade de culto para todos os credos. Esse fato, contudo, até bem recentemente, não foi suficiente para levar ao reconhecimento das religiões de matriz africana e de seus locais de culto. Influenciado pelas ideias liberais oriundas da Revolução Francesa, o fim do padroado afirmava o princípio Igreja livre em Estado livre. A liberdade religiosa inclui não apenas a proibição de qualquer coerção (liberdade negativa), mas também o livre exercício, inclusive público, de uma fé (liberdade positiva). O Brasil vive no contexto da modernidade, em que os direitos passam a ser compreendidos a partir dos indivíduos e não são mais outorgados pelo soberano aos seus 2

súditos. Em decorrência disso, a religião torna-se opção pessoal, afirma-se a liberdade religiosa que legitima o pluralismo religioso existente na sociedade atual e o Estado mantém uma postura de neutralidade em matéria religiosa (como Estado laico ). Isso não significa que o Estado é anti-religioso; ele pode estabelecer canais de relação e cooperação com as religiões em prol do bem comum. Em nosso país, as organizações religiosas gozam de privilégios legais que não são estendidos às demais organizações da sociedade civil. Esse fato não se justifica por si mesmo; é preciso esclarecer o que distingue as organizações religiosas das demais entidades, bem como estabelecer com maior clareza os critérios, em sintonia com a Constituição brasileira, que legalmente configurem e legitimem, por exemplo, a imunidade tributária, evitando abusos existentes. Constatamos, com indignação, que religiões de matriz africana, via de regra, são excluídas em relação a esse benefício. É necessária uma reflexão profunda sobre o papel social das religiões, que sirva como meio de relacionar religiões, Estado e sociedade civil numa interface com outras áreas de saber. Essa reflexão contribuiria para orientar as Igrejas na direção de atitudes de ousadia profética (parrhesia) frente às questões conflitivas da sociedade e, ao mesmo tempo, estimularia nelas uma postura de humildade (kenosis) para perceberem que não são as únicas organizações em condições de propor melhorias na vida social a favor de todos os cidadãos. Dentre os elementos que precisam ser contemplados nas agendas das religiões estão a afirmação da liberdade religiosa e a luta pela superação de todas as formas de preconceito, discriminação e violência, seja por motivos religiosos, seja por motivos de gênero, culturais, econômicos e/ou políticos. A sociedade brasileira sofre por atitudes de pessoas ou grupos que alimentam a intolerância e o confronto frente às diferenças. É urgente destacar o direito à diversidade como direito humano fundamental. III. ELEMENTOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS A Bíblia é testemunha tanto da existência e do florescimento de estruturas políticas e estatais, quanto de sua decadência e derrota. Há textos bíblicos que as legitimam e outros que as criticam duramente. A veia profética do Primeiro Testamento denuncia a idolatria, a corrupção, a luxúria, a exploração camponesa pelo tributo e a escravização, praticadas e legitimadas pelo poder político. Em Cristo, Deus mostra sua força com a morte na cruz, marcada por fraqueza, vulnerabilidade e abandono. Jesus, injustiçado, desmascarou todo poder que atende apenas a interesses próprios e que sabe utilizar toda máquina do Estado para tal fim. O testemunho bíblico não nos fornece modelos prontos de Estado e sociedade, mas nos ajuda a refletir sobre os modelos atuais de poder em todas as estruturas: no governo, nos sindicatos, nos movimentos sociais, nas Igrejas e religiões e outras instituições. O foco da crítica está na radicalidade do viver comunitário; ele não está isento de falhas e ambiguidades, porém, é o que mais possibilita uma troca de poderes, um amplo debate participativo e o exercício de autonomia. Símbolo disso é a arca de Noé, que permanece como espaço de proteção à vida no meio da destruição das pretensões de poder. 3

IV O COMPROMISSO DE NOSSAS IGREJAS FRENTE AO ESTADO E À SOCIEDADE BRASILEIRA As religiões e, dentre elas, as Igrejas cristãs que o CONIC representa, são parte das questões sociais do nosso tempo. Tais questões se intensificam quando tendências religiosas voltadas ao fundamentalismo propõem uma espécie de teocracia moral, com um discurso antimoderno e sacralizador da ordem vigente ou quando assumem posições nacionalistas de caráter identitário. As religiões vivem, portanto, a ambiguidade de atitudes que variam entre permitir a morte e ajudar a viver. Buscando superar essa ambiguidade, as Igrejas não podem assumir nenhuma ideologia estatal. Elas são instâncias críticas na relação do Estado com a sociedade e por isso questionam os elementos que expressam relações de injustiça social legitimadas por projetos ou posicionamentos estatais. Dentre os compromissos que as Igrejas precisam assumir para cumprir melhor seu papel na relação com o Estado, destacamos: 1) Recuperar a função social da religião: as religiões possuem uma função social de coesão e coerção. Mesmo se os mecanismos que regem a atual sociedade secularizada prescindem da religião, ela ainda possui o poder para forjar identidades socio-culturais. Sem monopolizar esses âmbitos da vida social, as religiões aparecem como fonte de transcendência e de sentido que oferecem modelos de comportamento para os indivíduos. Aqui, a principal função social da religião é apresentar ao mundo o sentido da existência humana, sobretudo frente às situações existenciais de pessimismo e desânimo causadas pela violência, pelas guerras e pela prática da injustiça. É dever das Igrejas fortalecer o significado e o valor da vida das pessoas, ajudando-as a superar os problemas que as afligem no cotidiano, tanto os de caráter sócio-econômico-político-cultural, como os de caráter psíquicoespiritual. No contexto de pluralismo religioso, essa função não é monopólio de um sistema religioso específico. A busca de coesão social exige das religiões a capacidade de cooperar em projetos que possibilitem a convivência pacífica das pessoas que professam credos diferentes. A elas cabe exercitar e educar a sociedade para a prática da tolerância, do diálogo, da acolhida mútua e da cooperação na diversidade. 2) Função crítica diante da globalização: estamos convictos de que as Igrejas devem ser instâncias críticas em relação às ideologias globalizantes. Elas não podem legitimar tudo o que é proposto pelo sistema econômico, cultural e político. A elas cabe ajudar na identificação e questionamento das ambiguidades da globalização, suas contradições, seus interesses concentradores, suas tendências exclusivistas, que empobrecem nações inteiras. Para isso irão desconstruindo os discursos que atribuem às crenças e aos deuses a causa do sofrimento, da dor e do empobrecimento injusto. 3) O sistema econômico globalizado possui uma religiosidade difusa, um sagrado camuflado no marketing dos produtos do mercado. Isso tende a secularizar a própria religião pela instrumentalização comercial de seus símbolos e imagens. No mercado, as pessoas não compram meros produtos, mas símbolos, e para isso fazem sacrifícios. Com isso há uma desapropriação simbólica de tradições religiosas, substituídas por uma espécie de espiritualidade, pela mística do capital globalizado. 4

Frente a isso, o compromisso das Igrejas se afirma quando elas não se deixam usar como suporte ideológico do sistema econômico, desmistificando a imagem idolátrica do capital e superando o fetiche mercadológico que propõe fazer o elo entre a vida real e o mundo religioso. 4) O sistema sócio-econômico em que vivemos produz a exclusão, a marginalização e o empobrecimento injusto de grande parte da população brasileira. Essa realidade impulsiona as nossas Igrejas à prática da solidariedade evangélica onde as circunstâncias exigem a promoção da cidadania, a afirmação da dignidade da pessoa e dos seus direitos, acima de interesses econômicos e políticos. Onde houver alguém sofrendo injustiça, ali devemos estar presentes. Em especial, faz-se mister a nossa presença junto aos povos indígenas e às comunidades quilombolas, contribuindo para a garantia da defesa de seus territórios e das suas tradições. Igualmente, é fundamental intensificar a nossa presença e ação junto às crianças e adolescentes, sobretudo em relação àquelas que não possuem um abrigo familiar ou estão sujeitas a vários tipos de carência na vivência de seus direitos básicos. Para isso, comprometemo-nos a assumir os compromissos oriundos do acordo estabelecido entre o CONIC e a UNICEF e assinado nesta Assembleia. 5) O uso indevido dos recursos naturais faz emergir em nosso tempo problemas ambientais como o desmatamento das florestas, a escassez dos recursos hídricos, a desertificação, o aquecimento global, que se manifestam como sérias ameaças à vida do planeta. Tais questões mostram a gravidade de uma crise ecológica que se acentua sempre mais como resultado de relações sociais distorcidas, que rompem com os princípios de justiça social e ambiental. É imprescindível um reordenamento dessas relações através de novas formas de vínculos entre as pessoas e do cuidado que elas devem ter com o meio ambiente. Nossas Igrejas contribuem para isso, educando para novos comportamentos em relação ao meio ambiente, desenvolvendo uma espiritualidade que integre a vida humana com a criação como um todo e promovendo processos participativos que cobrem do governo a implementação de políticas públicas que garantam o manejo responsável dos recursos naturais, sua conservação, recuperação e uso adequado. Como Igrejas cristãs, sentimos o forte chamado para a promoção de uma sociedade diferente, com um Estado que esteja a serviço do povo, onde se afirmem a solidariedade, a justiça e o respeito aos direitos humanos. Nossas Igrejas são propiciadoras do serviço da caridade, da solidariedade, da promoção da dignidade da pessoa, de uma economia solidária, da educação, do trabalho, do acesso à terra, à cultura, à habitação e à assistência em todas as necessidades dos indivíduos. Muito temos a contribuir para a reconciliação de pessoas e de povos, atuando de modo a fazer com que nossas Igrejas sejam reconhecidas como instâncias de confiança e de credibilidade no meio social. XV Assembleia Geral Ordinária 08 a 10 de março de 2013 São Paulo 5