AUMENTO DE TARIFA E DEMANDA DE TRANSPORTE POR ÔNIBUS URBANOS EM SÃO PAULO Maurício Cadaval Como reagem os usuários do transporte coletivo urbano aos aumentos de tarifa? Teoricamente, à medida em que sobe a tarifa, a utilização dos serviços tende a diminuir numa proporção que varia de sistema para sistema. Para medir esse fenômeno, os economistas criaram o conceito de elasticidade preço da demanda, que pode ser definido como a relação entre a proporção de variação na demanda para uma dada proporção de variação no preço (tarifa) 1. Apesar de muito úteis para a avaliação do impacto de políticas tarifárias, as medidas de elasticidade são raras nas cidades brasileiras. Na Inglaterra, Smith e McIntosh (1974) constataram, para diversos sistemas de ônibus urbanos, elasticidades variando numa faixa de - 0,21 a - 0,61; em outro estudo, Collins, Rigby e Welsby (1976) estudaram 46 sistemas de ônibus, também na Inglaterra, e observaram uma elasticidade média de - 0,28, ou seja, para um aumento médio de 1% nas tarifas, as viagens de ônibus diminuem cerca de 0,28% 2. Valores mais baixos foram constatados para cidades americanas: McGillivany s estudou o caso de San Francisco em 1970 e observou uma elasticidade em torno de - 0,2 e Lave encontrou, em Chicago (1970), uma elasticidade média de - 0,11 no sistema de transporte coletivo como um todo 3. Nos últimos dois anos, o sistema de ônibus no Município de São Paulo se defrontou com situações de política tarifária muito significativas para observações sobre a elasticidade preço da demanda. A primeira delas ocorreu em agosto de 1993, quando a Prefeitura determinou um aumento real de tarifa da ordem de 43%, visando eliminar os deficits financeiros do sistema. Estabeleceu-se, a partir de então, um novo patamar tarifário que foi mantido, com pequenas variações, até a implantação do Plano Real, em julho de 1994. A segunda situação é exatamente o processo de redução do valor real da tarifa que se seguiu a julho de 1994 e que teve como consequência o seu retorno ao patamar anterior a agosto de 1993. A estabilidade do nível tarifário enquanto a inflação média da economia continuava sua escalada (embora num ritmo muito inferior ao que prevalecera até o início do Plano Real) foi a responsável por uma expressiva queda no valor real da tarifa. O Gráfico 1 ilustra o comportamento da tarifa em São Paulo, de janeiro de 1993 a dezembro de 1994. 1 Tecnicamente, a elasticidade preço da demanda de um serviço pode ser definida como dq / Q dq P, onde Q * dp / P dp Q = quantidade demandada e P = preço. Para uma exposição detalhada sobre elasticidade nos transportes, ver: Button K.J. - Transport Economics, Gower Publishing Company Ltd., Londres, 1986, pp. 44-55. 2 Estudos citados por: P.C. Stubbs, W.J. Tyson e M.Q. Dalvi - Transport Economics, George Allen & Unwin Ltd., edição revista, Londres, 1984, p. 23. 3 Estudos citados por: Button K.J. - Transport Economics, Gower Publishing Company Ltd., Londres, 1986. 1
T a rifa (R $ c o n s t. d e D e z. 9 4 ) SÃO PAULO Tarifa de Ônibus Urbanos Jan.93 - Dez.94 0,8000 0,7500 0,7000 0,6500 0,6000 0,5500 0,5000 0,4500 0,4000 0,3500 0,3000 0,2500 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Mês/Ano Na Tabela 1, as variações de tarifa nas duas situações mencionadas são cotejadas com as variações no número de passageiros transportados pelo sistema municipal de ônibus, numa aproximação da sensibilidade da demanda a médio prazo. As informações disponíveis permitem apenas uma abordagem grosseira do fenômeno mas ainda assim importante face ao estado elementar dos estudos de elasticidades. Tabela 1 MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Sistema de Ônibus Urbanos Valor da Tarifa e Passageiros Transportados Abr. e Out. de 1993 e 1994 Mês Tarifa Passageiros Valor* Variação % No.(milhões) Variação % Abr./93 0,4340 155,6 49,3-5,5 Out./93 0,6479 147,0 Abr./94 0,6160 144,9-16,4 10,8 Out./94 0,5153 160,7 Fonte: NTU-Sistema de Informações Técnicas (*) Em R$ constantes de dez./94 pelo IGP da FGV. 2
Quando se compara as elasticidades preço da demanda dos períodos abr.-out./93 e abr.-out./94 os resultados são desconcertantes, embora em ambos os casos as elasticidades sejam negativas, como indica a teoria. Em 1993, face a um aumento de 49,3% no valor da tarifa houve uma queda de 5,5% no número de passageiros transportados, o que sugere uma elasticidade média em torno de - 0,11; em 1994, quando a tarifa cai cerca de 16,4%, a demanda sofre um aumento muito elevado, em torno de 10,8%, o que seria indicador de uma elasticidade média da ordem de - 0,61. Uma explicação para a discrepância entre os dois valores de elasticidade é a possibilidade do coeficiente de elasticidade estar medindo não apenas a variação de preços mas também o aumento de renda (estimado em torno de 13 a 15%) verificado com a implantação do Plano Real, no segundo semestre de 1994. A elasticidade preço da demanda em torno de - 0,11, tal como sugerido pelos dados de 1993, condiz melhor com um mercado de baixa renda em que grande parte dos usuários do transporte coletivo não possue outra alternativa modal de deslocamento. Ainda assim, a proporção crescente de viagens a pé na Região Metropolitana de São Paulo, verificada no último decênio, indica que este modo é uma alternativa bem mais realista do que se admitia há alguns anos atrás. Em todo caso, o coeficiente de elasticidade preço da demanda parece ser insuficiente para indicar o comportamento dos usuários num mercado de serviços tão complexo como o de transporte urbano em São Paulo. Esta complexidade decorre não apenas da fantastica variedade de origens e destinos, de meios de transporte e de condições socioeconômicas dos usuários mas sobretudo das condições de acesso aos meios de transporte, como revela uma recente pesquisa da Fundação SEADE. Em 1994, a Fundação Estadual de Estatísticas e Análise de Dados de São Paulo - SEADE realizou novamente a Pesquisa de Condições de Vida (PCV) 4 na Região Metropolitana de São Paulo e desta vez incluiu o transporte urbano como um dos indicadores da qualidade de vida. Embora o processamento dos dados ainda não tenha sido concluido, os resultados preliminares já revelam fatos inusitados a respeito da estrutura de mercado dos transportes na Região. A Tabela 2 resume algumas informações sobre as condições de uso e pagamento do transporte urbano, destacando a população empregada e as viagens por motivo trabalho. Uma primeira observação é sobre o local de trabalho. A pesquisa revelou que cerca de 9,5% da população empregada exerce suas atividades profissionais no próprio local de residência e, portanto, não realiza deslocamentos com esta finalidade. Esta proporção é muito superior à que se supunha existir e provavelmente reflete, de um lado as altas impedâncias à movimentação dentro da cidade, levando as pessoas a tentarem uma atividade remunerada no próprio domicilio e, de outro, uma nova dinâmica do mercado de trabalho que viabiliza tais atividades. 4 A primeira pesquisa foi realizada em 1990, tomando uma amostra de aproximadamente 5.500 domicílios da Região Metropolitana de São Paulo. A esse propósito, ver: SEADE, Pobreza e Riqueza: Pesquisa de Condições de Vida na Região Metropolitana de São Paulo; Definição e Mensuração da Pobreza na RMSP - Uma Abordagem Multisetorial, São Paulo, SEADE, 1992 (154 p). 3
Tabela 2 REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO Uso e Pagamento do Transporte Urbano 1994 Condição No. % % (amostra) INDIVÍDUOS QUE TRABALHAM 6021 100,00 Trabalham fora de casa 5449 90,50 Pagam condução coletiva ou fretada 2566 42,62 100,00 Com recurso próprio 1034 17,17 40,30 Dinheiro do próprio bolso 921 15,30 35,89 Passes (exceto VT) 54 0,90 2,10 Transporte fretado 59 0,98 2,30 Com recursos de terceiros 1532 25,44 59,70 Dinheiro dado pelo patrão 262 4,35 10,21 Vale-transporte 1270 21,09 49,49 Fonte: Fundação SEADE (PCV-1994) Do total das pessoas empregadas, 42,6% pagam algum tipo de condução coletiva ou fretada. Os outros 57,4% usam meios de transporte não-motorizados (a pé ou bicicleta), andam de carona, têm gratuidade no transporte (os idosos, por exemplo) ou utilizam-se de veículo motorizado privado (automóvel, motocicleta, caminhão etc.). Uma outra forma de agrupar os dados é incluir as pessoas que se utilizam de veículo motorizado próprio entre as que pagam o transporte (21,6% das pessoas utilizam-se de algum tipo de veículo privado, segundo os dados da Tabela 3), pois elas efetuam desembolsos financeiros, embora não o façam no ato do deslocamento. Procedendo desta forma, verifica-se que 35,8% das pessoas empregadas não efetuam qualquer tipo de despesa com transporte para trabalhar. Neste total, é muito expressivo o número dos que se deslocam a pé nas viagens para o trabalho: segundo a Tabela 3, elas são 23,6% das pessoas empregadas. Esta porcentagem refere-se apenas às viagens por motivo trabalho e nisto se diferencia do dado divulgado da Pesquisa de Origem-Destino do Metrô-SP (36,2%) que toma por base todos 4
os motivos. Na mesma linha de considerações, a pesquisa do Metrô-SP apontou um expressivo aumento das viagens a pé entre 1977 e 1987 5. 5 A proporção de viagens a pé elevou-se sensivelmente no último período, passando de um quarto em 1977 para pouco mais de um terço do total de viagens em 1987 (Metrô-SP, Pesquisa Origem-Destino 1987; Síntese das Informações, São Paulo, Metrô-SP, 1990, p. 32) 5
Tabela 3 RMSP Distribuição das Viagens (Indivíduos) Totais (ida) segundo o Meio Principal* de Deslocamento para o Trabalho 1994 No. Modo (amostra) % NÃO MOTORIZADOS 1316 24,2 A pé 1287 23,6 Bicicleta 29 0,5 MOTORIZADOS 3847 70,6 Privado 1391 25,5 Automóvel 1109 20,4 Motocicleta 33 0,6 Veículo fretado 26 0,5 Ônibus de empresa 193 3,5 Caminhão 30 0,6 Público 2456 45,1 Ônibus de linha 1970 36,2 Metrô 243 4,5 Trem de subúrbio 214 3,9 Outro veículo coletivo 29 0,5 CARONA/GRATUITO** 263 4,8 OUTROS** 21 0,4 SEM INFORMAÇÃO 2 0,0 TOTAL 5449 100,0 Fonte: SEADE, PCV-94 (*) Utilizado na maior extensão do percurso total (**) Público ou privado 6
Mas, os dados mais reveladores da PCV-94 dizem respeito ao grupo das pessoas empregadas que pagam algum tipo de condução coletiva ou fretada para ir ao trabalho (42,6%). Neste grupo, quase 60% pagam suas viagens com o vale-transporte ou com dinheiro dado pelo patrão, ou seja, são subsidiadas pelos empregadores 6. Os que pagam com recursos tirados do próprio orçamento familiar são minoria, somando cerca de 40%. Em síntese, apenas 17,7% das pessoas empregadas na Região Metropolitana de São Paulo realizam despesa com recurso próprio para ir trabalhar. Assim, os dados do SEADE permitem delinear uma segmentação do mercado de transporte de passageiros em São Paulo (viagens por motivo trabalho) caracterizada pela presença de quatro grandes grupos de pessoas: a) os que se utilizam de estratégias não convencionais para evitar qualquer tipo de desembolso com o transporte voltado para o trabalho, destacando-se entre êles os que se deslocam a pé 7 e os que não se deslocam por trabalharem no próprio local de residência. Em 1994, este segmento poderia ser estimado em cerca de 35-36% do total; b) os que dispõem de veículos privados e os usam para seus deslocamentos com motivo trabalho, arcando com o seu custo; estes, que representam cerca de 21-22%, são geralmente proprietários-usuários de automóveis. c) os que se utilizam do transporte coletivo ou fretado e são quase totalmente subsidiados por seus empregadores, através do vale-transporte e de auxílio em dinheiro; situam-se aí cerca de 25-26% do total; d) finalmente, os que se utilizam do transporte coletivo ou fretado e pagam suas viagens com recursos próprios, ou seja, com recursos retirados de seus rendimentos pessoais ou familiares; estes são a minoria e representam cerca de 17-18% do total. Esta composição de mercado - que apenas recentemente começou a se esboçar com mais clareza - tem uma influência decisiva na avaliação das decisões tarifárias e de investimento na infraestrutura de transporte e por isso precisa ser conhecida em maior profundidade. Ela deveria sugerir uma revisão dos modelos compreensivos que ainda são largamente empregados no planejamento de transportes e que, com muita frequência mas não necessariamente, contribuem mais para esconder do que para revelar o comportamento efetivo dos usuários do transporte nas grandes cidades. Conhecer a maneira específica como se estrutura a demanda de transporte deveria ser o ponto de partida para os modelos econométricos, entre êles os que se apoiam no estudo das elasticidades e que ainda são pouco utilizados no Brasil. Face às condições da demanda de transporte delineadas pela PCV-94 do Seade, as considerações sobre elasticidades-preço que introduzem ao presente artigo não passam de um chamariz para o problema - este sim, crucial para explicar o comportamento dos consumidores - de como se organiza o mercado em seus vários componentes. 6 No caso do pagamento com o vale-transporte o subsídio cobre as despesas que excedem a 6% do salário. Entretanto, além desta parcela ser geralmente baixa face ao total das despesas mensais de transporte, muitas empresas isentam seus empregados do desconto dos 6% em folha. 7 A elevada incidência de viagens a pé na RMSP e seu crescimento nos últimos anos é o objeto da tese de mestrado de Francisco Villa Ulhôa Botelho, em desenvolvimento no Mestrado de Transportes Urbanos da Universidade de Brasília. 7
O autor é Consultor de Transporte (Brasília). Tel: (061) 983-4415 Fax:(061) 274-4523 8