Segundo dados da American Speech-Hearing-Language Association (1981), uma população



Documentos relacionados
A EXPERIÊNCIA DA USP. 1) Laboratório de Neuropsicolingüística Cognitiva Experimental

A MEMÓRIA DE TRABALHO NO PARALISADO CEREBRAL: PROCEDIMENTO PARA AVALIAR HABILIDADE

Objetivos. Introdução. Letras Português/Espanhol Prof.: Daniel A. Costa O. da Cruz. Libras: A primeira língua dos surdos brasileiros

TÉCNICAS DE PROGRAMAÇÃO

SISTEMA NERVOSO INTEGRADOR

O que é coleta de dados?

20/08/2010 REABILITAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA NA PESSOA COM TRANSTORNO DE APRENDIZAGEM

Educação especial: um novo olhar para a pessoa com deficiência

Conhecendo o Aluno com Deficiência Múltipla

1 Um guia para este livro

Metadados. 1. Introdução. 2. O que são Metadados? 3. O Valor dos Metadados

O uso do passaporte da comunicação no desenvolvimento de Interação e comunicação de pessoas com surdocegueira e com deficiência múltipla sensorial

Profa. Ma. Adriana Rosa

UML & Padrões Aula 3. UML e Padrões - Profª Kelly Christine C. Silva

III SEMINÁRIO EM PROL DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA Desafios Educacionais

O LETRAMENTO DE SURDOS NA SEGUNDA LÍNGUA

1. Introdução. Avaliação de Usabilidade Página 1

Base Nacional Comum Curricular Lemann Center at Stanford University

AVALIAÇÃO FONOLÓGICA EM DESTAQUE RESENHA DO LIVRO AVALIAÇÃO FONOLÓGICA DA CRIANÇA, DE YAVAS, HERNANDORENA & LAMPRECHT

6 A coleta de dados: métodos e técnicas utilizadas na pesquisa

Questão 1: SignWriting é:

AMOSTRAGEM ESTATÍSTICA EM AUDITORIA PARTE ll

A Psiquiatria e seu olhar Marcus André Vieira Material preparado com auxílio de Cristiana Maranhão e Luisa Ferreira

4 Metodologia e estratégia de abordagem

Gráficos. Incluindo gráficos

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação

ITIL v3 - Operação de Serviço - Parte 1

FUNÇÕES ATRIBUÍDAS AOS LOBOS FRONTAIS. Profª. Jerusa Salles

Resolução da lista de exercícios de casos de uso

A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA POR CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN. FELDENS, Carla Schwarzbold ¹; VIEIRA, Cícera Marcelina ²; RANGEL, Gilsenira de Alcino³.

INVESTIGANDO O ENSINO APRENDIZAGEM MEDIADO POR COMPUTADOR - UMA METODOLOGIA PARA REALIZAR PROTOCOLOS

LISTA DE VERIFICAÇAO DO SISTEMA DE GESTAO DA QUALIDADE

O profissional também tem um relevante papel em ajudar a família a se engajar no tratamento de sua criança, tanto oferecendo a ela recursos para

Figura 5.1.Modelo não linear de um neurônio j da camada k+1. Fonte: HAYKIN, 2001

Especificação Operacional.

Portal do Projeto Tempo de Ser

TEXTO 7: DELINEAMENTOS PRÉ-EXPERIMENTAIS 1

6. Pronunciamento Técnico CPC 23 Políticas Contábeis, Mudança de Estimativa e Retificação de Erro

4. Tarefa 16 Introdução ao Ruído. Objetivo: Método: Capacitações: Módulo Necessário: Análise de PCM e de links

Aula 1 Dados & Informações & Indicadores

1) O que é a consciência fonológica?

Implementadas por Computador

Índice. 1. Metodologia de Alfabetização Aprendizagem da Escrita Aprendizagem da Leitura...6

Copyright Proibida Reprodução. Prof. Éder Clementino dos Santos

Técnicas de ensino e domínios de aprendizagem

Invenções Implementadas por Computador (IIC) Patentes

NeuroBiologia da Cognição Como o sistema nervoso decodifica os sinais do ambiente?

Guia de utilização da notação BPMN

A SEGUIR ALGUMAS DICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DE UM PROJETO CIENTÍFICO

O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa

Deficiência Visual Cortical

O uso de jogos no ensino da Matemática

Mestrado Profissional em Ensino de Biologia em Rede Nacional - PROFBIO PROPOSTA

A Visão das Educadoras Sobre a Inclusão de Pessoas com Necessidades Especiais na Rede Regular de Ensino do Município do Rio de Janeiro.

Estudo Exploratório. I. Introdução. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Pesquisa de Mercado. Paula Rebouças

ABA: uma intervenção comportamental eficaz em casos de autismo

CURRÍCULO 1º ANO do ENSINO UNDAMENTAL LINGUAGEM

ARTETERAPIA na EDUCAÇÃO INCLUSIVA

INCLUSÃO DE ALUNOS SURDOS: A GESTÃO DAS DIFERENÇAS LINGUÍSTICAS

Gerenciamento da Integração (PMBoK 5ª ed.)

Identificação do projeto

PLANEJAMENTO OPERACIONAL - MARKETING E PRODUÇÃO MÓDULO 11 PESQUISA DE MERCADO

Vestibular UFRGS Resolução da Prova de Língua Portuguesa

O processo de aquisição da linguagem escrita: estudos de A. R. Lúria e L. S. Vygotsky

PROJETOS DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: DO PLANEJAMENTO À AÇÃO.

Síntese de voz panorama tecnológico ANTONIO BORGES

Preparação do Trabalho de Pesquisa

Objetivo: descrever como abrir uma solicitação de suporte técnico através da internet.

Breve histórico da profissão de tradutor e intérprete de Libras-Português

Tecnologia de faixa para falha

DISLEXIA. Por: Ainzara Rossi Salles Fonoaudióloga 08/04/10

NORMA NBR ISO 9001:2008

c. Técnica de Estrutura de Controle Teste do Caminho Básico

Banco de Dados Orientado a Objetos

SÍNDROME DE DOWN E A INCLUSÃO SOCIAL NA ESCOLA

O PROCESSO DE INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: UM ESTUDO DE METODOLOGIAS FACILITADORAS PARA O PROCESSO DE ENSINO DE QUÍMICA

O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO -AEE E O ALUNO COM SURDOCEGUEIRA E OU COM

JANGADA IESC ATENA CURSOS

A INCLUSÃO DIGITAL COMO FATOR SIGNIFICATIVO PARA A INCLUSÃO SOCIAL. Autores: Carlo Schneider, Roberto Sussumu Wataya, Adriano Coelho

Presença das artes visuais na educação infantil: idéias e práticas correntes

Índice. 1. Tipos de Atividades O Trabalho com Leitura Estratégias de Leitura Grupo Módulo 7

Introdução à Programação. João Manuel R. S. Tavares

A QUALIDADE DOS PLANOS DE DISCIPLINAS

Data 23/01/2008. Guia do Professor. Introdução

O Princípio da Complementaridade e o papel do observador na Mecânica Quântica

AVALIAÇÃO. Introdução à Neuropsicologia. Introdução à Neuropsicologia LINGUAGEM: AVALIAÇÃO 25/3/2015 AULA 2

ECONTEXTO. Auditoria Ambiental e de Regularidade

TRANSMISSÃO DE DADOS Prof. Ricardo Rodrigues Barcelar

4. Conceito de Paralisia Cerebral construído pelos Professores

permanência dos alunos na escola e as condições necessárias para garantir as aprendizagens indispensáveis para o desenvolvimento dos alunos e sua

DISLEXIA PERGUNTAS E RESPOSTAS

Análise de Tarefas. Análise Hierárquica de Tarefas

Como enviar e receber correio eletrónico utilizando o Gmail

Programação em papel quadriculado

Déficits Receptivos e Expressivos da Linguagem

POC 13 - NORMAS DE CONSOLIDAÇÃO DE CONTAS

TERMO DE REFERÊNCIA PARA A AUDITORIA DE DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS DO PRODAF

Transcrição:

Capovilla, F. & Nunes, L. R. (2003). Sistemas de comunicação alternativa como próteses sensoriais, motoras e cognitivas em paralisia cerebral: uma abordagem de processamento de informação. Em L. R. Nunes (Org.), Favorecendo o desenvolvimento da comunicação em crianças e jovens com necessidades educacionais especiais (PP. 49-61). Rio de Janeiro: Dunya. Sistemas de comunicação alternativa como próteses sensoriais, motoras e cognitivas em paralisia cerebral : Uma abordagem de processamento de informação Fernando C. Capovilla Universidade de S. Paulo Leila Regina d'oliveira de Paula Nunes Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1. Sistemas de comunicação como próteses Segundo dados da American Speech-Hearing-Language Association (1981), uma população estimada em meio porcento da população mundial é privada de comunicação oral, e depende de meios alternativos de comunicação. Há uma série de sistemas de comunicação alternativa, como por exemplo a semantografia Bliss (Hehner, 1980), as pictografias PIC (Maharaj, 1980) e PCS (Johnson, 1992) e o sistema computadorizado ImagoAnaVox (Capovilla, Macedo, Duduchi, Gonçalves et al, 1996). Quando portadores de distúrbios de comunicação passam a fazer uso cotidiano de sistemas de comunicação estes tendem a integrar-se em seu comportamento e cognição sociais. Ao integrar-se funcionalmente aos sistemas comportamentais e cognitivos dos usuários, tais sistemas passam a 43

constituir autênticas próteses cognitivas e de comunicação (Capovilla, no prelo). Sistemas de multimídia para comunicação alternativa podem ser empregados como próteses de pensamento e linguagem para superar deficiências sensoriais, motoras e de processamento cognitivo. Nesse contexto mais amplo, eles deixam de servir a propósitos meramente comunicativos e passam como próteses de sistemas aferentes, centrais e eferentes que eventualmente encontram-se prejudicados. 1.1. Contornando déficits sensoriais e motores Ao permitir apresentar coordenadamente imagens com animação gráfica, texto, sons da natureza e voz digitalizada, os sistemas de comunicação alternativa baseados em multimídia permitem usar os canais de input que encontram-se intactos em pacientes com diferentes quadros de deficiências, das sensoriais (e.g., visuais, auditivas) às simbólicas (e.g., agnosias, dislexias, surdez verbal). Por exemplo, embora tenha dificuldade com o texto, um disléxico compreende a fala; reciprocamente, embora tenha dificuldade em compreender a fala, um afásico auditivo, ou surdo puro a palavras, compreende o texto). Quando tais sistemas de comunicação são adaptados para operação direta e indireta via variados dispositivos sensíveis ao toque, movimento, alteração na direção do olhar, sopro ou gemido, passam a permitir o uso dos canais de output que encontram-se disponíveis em pacientes com diferentes quadros de deficiências neuromotoras (e.g., paralisias cerebrais, distrofias musculares), com amplo potencial de uso em quadros de múltiplos comprometimentos sensório-motores (e.g., esclerose lateral amiotrófica) e centrais (e.g., afasias global, de Broca, de Wernicke). 1.2. Sistemas AfeCenEfe Neste sentido, adaptados às características particulares aferentes (Afe), centrais (Cen) e eferentes (Efe) que encontram-se disponíveis em cada paciente em particular, os sistemas de comunicação podem ser denominados AfeCenEfe. Permitindo contornar deficiências sensoriais, motoras e cognitivas, tais sistemas AfeCenEfe podem ser empregados em auxílio à transmissão de informação, tanto de sua 44

recepção e expressão (i.e., comunicação) quanto de seu processamento interno (i.e., pensamento). Considerando que próteses são aparelhos (i.e., sistemas artificiais) que auxiliam ou substituem órgãos (i.e., sistemas naturais) no exercício de suas funções, permitindo executar uma dada função que encontra-se deficitária devido a lesão no órgão por ela responsável, os sistemas AfeCenEfe qualificamse como próteses de comunicação e pensamento. O objetivo desta seção é ilustrar resumidamente como sistemas AfeCenEfe podem ser empregados como próteses de comunicação e pensamento para compensar deficiências sensoriais, motoras e cognitivas. 1.3.Características de sistemas AfeCenEfe Os sistemas AfeCenEfe desenvolvidos no Laboratório de Neuropsicolinguística Experimental da USP, como ImagoAnaVox, NoteVox, PIC-Comp, PCS-Comp, Bliss-Comp e Logofone-Libras-Ameslan (Capovilla, Macedo, Duduchi, Capovilla et al., 1996), representam o estado da arte em sistemas de comunicação em nível mundial. Eles são baseados numa concepção avançada de design que incorpora os seguintes princípios: 1) Personalização gráfica e vocálica para máxima transparência e naturalidade, já que usam fotos, filmes e vozes gravados do ambiente natural de cada paciente; e conferem ao paciente voz digitalizada apropriada às suas características (sexo, idade, origem étnica, personalidade); 2) Codificação múltipla de informação nos modos pictorial (contêm os picto-ideogramas PIC; e os desenhos de linha PCS) e linguístico, tanto visual (contêm toda a semantografia Bliss e as línguas de sinais brasileira e americana) quanto fônico (permitem escrever logográfica, silábica ou fonemicamente por meio de diacríticos); 3) Display ativo e dinâmico, com centenas de milhares de símbolos e sinais disponíveis, com animação gráfica representando a ação envolvida, 4) Comunicação multimodal on line e pre-stored, permitindo tanto liberdade de composição quanto naturalidade e rapidez de expressão; 5) Múltiplo acesso direto (via mouse e tela de toque) e indireto (com varredura e seleção via dispositivos sensíveis ao sopro, gemido, ou movimentação grossa indiferenciada) com parâmetros 45

temporais customizáveis; 6) Registro completo em tempo real do desempenho comunicativo do usuário e de díades, incluindo todo o processo de navegação pelo sistema e de edição para composição de mensagens; 7) Portabilidade completa, já que podem ser executados em notebooks com kit multimidia; 8) Comunicação à distância via netware. 1.4.Aplicando a surdos, cegos, anártricos, agráficos Em termos de deficiências sensoriais, quanto aos surdos, o sistema Logofone-Libras-Ameslan contém milhares de sinais animados das línguas brasileira e americana de sinais. Permite aos surdos comunicar-se via redes tanto com outros surdos brasileiros e norte-americanos, já que traduz entre línguas de sinais, quanto com ouvintes e leitores, já que traduz entre línguas de sinais e línguas faladas e escritas. Quanto aos cegos, todos os sistemas de comunicação alternativa podem ser adaptados para permitir seleção com varredura auditiva, soando serialmente os nomes das categorias semânticas e das operações como gravação, recuperação, desdobramento, impressão, correio, etc. Em termos de deficiências motoras, como na paralisia cerebral, os distúrbios motores que impedem a articulação da fala e a execução da escrita por meios convencionais podem ser contornados pelos sistemas AfeCenEfe na medida em que podem emitir fala e imprimir texto, e que tais mensagens faladas e escritas podem ser compostas pelo paralisado cerebral ao selecionar itens na tela via gemidos, movimentos indiferenciados, etc. 1.5.Abordando implicações cognitivas de déficits sensório-motores O interesse do psicólogo usualmente não se limita aos distúrbios sensorial e de execução motora propriamente ditos ou na possibilidade de usar sistemas AfeCenEfes como próteses para a compensação das funções sensoriais e motoras deficitárias específicas, mas estende-se aos prejuízos que tais déficits acarretam ao desenvolvimento do sistema interno de processamento e representação de informação e à possibilidade de empregar tais sistemas como próteses para reparar aqueles prejuízos. É necessário 46

estabelecer quais os produtos nobres de funções sensoriais e motoras, e como compensar sua falta ao desenvolvimento do sistema cognitivo via prótese. Neste nível, começamos a falar em deficiências de processamento. Por exemplo, consideremos o desenvolvimento da memória de trabalho auditiva e a aquisição da leitura-escrita. Os distúrbios articulatórios observados no paralisado cerebral tendem a dificultar o ensaio da informação ouvida por repetição vocal. Embora o processo articulatório seja central e não dependa essencialmente do controle muscular, na criança o desenvolvimento da repetição vocal precede o da subvocal. Dificultando o desenvolvimento do ensaio subvocal, o distúrbio articulatório resulta na redução da eficiência da consolidação de informações ouvida e vista, acarretando atraso da aquisição de leitura-escrita. Na Seção 2 veremos como uma prótese pode ajudar. 1.6.Breve exemplo de prótese O caso de uma de nossas pacientes, a paralisada cerebral MR (Capovilla, Macedo Duduchi, Gonçalves et al, 1996), demonstra o uso ativo de um sistema AfeCenEfe como prótese de processo de controle articulatório para a consecução da consolidação da informação fonológica durante a aprendizagem de correspondências grafo-fonêmicas na aquisição da leitura-escrita em nível silábico. Ao escrever uma palavra trissílaba, MR repetia a fala digitalizada da primeira sílaba várias vezes antes de progredir à segunda; e repetia a sequência das duas anteriores mais algumas vezes antes de progredir à terceira. Isto continuou com milhares de outras palavras, com o número de repetições caindo proporcionalmente ao uso, e o tempo de escrita encurtando-se à medida que o processo automatizavase. Para MR neste caso, mais que um sistema de comunicação alternativa, o sistema AfeCenEfe funcionou como prótese de pensamento, i.e., de comunicação interna consigo mesma, já que boa parte do pensamento dá-se de maneira verbal subvocal. Assim como a mastigação envolve mais que aquilo que os dentes fazem (e.g., sinergia entre língua, mandíbula, glote, além de secreções de glândulas 47

salivares) o pensamento é mais que aquilo que o processo de controle articulatório faz. Não obstante, ao substituir a dentição, a dentadura é uma prótese de mastigação; do mesmo modo, ao substituir o processo de controle articulatório, o sistema AfeCenEfe é uma prótese de pensamento. 1.7.Ausência da fala e déficits fonológicos O estudo de Capovilla (no prelo) demonstra o emprego do sistema de comunicação ImagoAnaVox como prótese cognitiva em substituição ao processo de controle articulatório da memória de trabalho para fomentar o desempenho dessa memória e a aquisição de leitura-escrita por parte de um paralisado cerebral incapaz de articular. Tal abordagem, embora nova, tem pleno respaldo na bibliografia em áreas circunjacentes, como a da dislexia e da consciência fonológica. Por exemplo, de acordo com Webster e Plante (1992), o ensaio subvocal mantém na memória de trabalho a informação codificada fonologicamente para o processo de recodificação fonológica que é necessário para a aquisição, o desenvolvimento e a prática da leitura. De acordo com Jenkins e Bowen (1994), um distúrbio fonológico expressivo pode afetar o desempenho em tarefas de consciência fonológica porque impede a codificação fonológica eficiente na memória de trabalho. Quando o processo de controle articulatório encontra-se insuficientemente desenvolvido como no paralisado cerebral pré-alfabetizado, o fornecimento de uma prótese do processo de controle articulatório pode auxiliar na aquisição e desenvolvimento eficazes tanto da leitura-escrita, na medida em que expande a consciência fonológica, quanto da comunicação por meios alternativos, na medida em que permite a mediação de processos verbais (fala encoberta) na escrita com base em pictogramas ou em ortografias fônicas. 1.8.O papel da fala interna na escrita de ortografias fônicas A importância da fala interna para facilitar a escrita foi enfatizada por Luria (1970), embora estudos recentes em neuropsicologia tenham demonstrado que ela não é condição necessária. Por exemplo, os pacientes EB de Levine et al (1982) e RD de Ellis et al (1983) liam e escreviam 48

corretamente, embora fossem incapazes de fala encoberta. Demonstrativo de que EB carecia da representação auditiva dos nomes falados de figuras ou palavras conhecidas é o fato de que ele era incapaz de escolher, dentre nomes escritos, os que rimavam com os nomes falados (não apresentados) das figuras que lhe eram apresentadas. Era também incapaz de escolher não-palavras escritas em presença das mesmas não-palavras faladas. 1.9. O papel da fala interna na escrita pictorial A importância da mediação de processos verbais na escrita pictorial foi demonstrada experimentalmente num estudo com a paralisada cerebral RT (Capovilla, Gonçalves et al, 1996), nãovocal e não-alfabetizada, e com 13a de idade. Durante sete anos, RT havia feito muito pouco progresso em comunicar-se via tabuleiro Bliss. No último ano, no entanto, havia obtido grande progresso com o sistema pictorial PIC-Comp que usa voz digitalizada. Para explicar tal progresso, foi levantada a hipótese de que o uso da voz digitalizada poderia ter facilitado o desenvolvimento da fala interna, que agora estaria a mediar a escrita pictorial. Para verificar a existência da mediação de processos verbais subjacentes, num primeiro estudo RT foi solicitada a compor 18 mensagens (compostas de verbo e objeto) sob diferentes estimulações: ou auditiva verbal (transcrevendo sentenças ouvidas) ou visual não-verbal (descrevendo eventos observados). Resultados mostraram que, para codificar corretamente, RT dispendeu menos tempo e requereu menos reapresentações de estímulo sob a estimulação auditiva que sob a visual. Em seguida, num estudo de facilitação, RT foi solicitada a, novamente sob estimulação auditiva versus visual, compor sentenças com aqueles mesmos elementos (verbo e objeto), mas combinados agora de maneiras diferentes. Foi avaliado se o modo prévio de apresentação (visual versus auditiva) dos diferentes elementos (verbos e objetos) afetaria a composição de sentenças novas sob diferentes estimulações (visual versus auditiva). Resultados indicaram que a transcrição de sentenças ouvidas 49

foi fácil a ponto de não sofrer qualquer benefício de facilitação visual; já a descrição de eventos observados foi difícil, beneficiando-se bastante da facilitação auditiva, sendo que o efeito de facilitação para verbos foi maior que para objetos. A conclusão é que a escrita pictorial por RT envolvia a fala encoberta, e que seu sistema pictorial encontrava-se indexado com base na imagem auditiva dos nomes falados dos pictogramas. Assim, quando solicitada a descrever pictorialmente eventos observados ela tinha que nomeá-los internamente antes de conseguir fazer acesso aos pictogramas no sistema; e a nomeação de ações foi mais difícil que a de objetos. Quando os nomes dos pictogramas já eram fornecidos na apresentação auditiva, o acesso aos pictogramas para a escrita foi muito facilitado. 2. O processamento de informação na memória de trabalho 2.1. O circuito de reverbeação fono-articulatória e a tábua de desenho visuo-espacial De acordo com o modelo de Baddeley e Hitch (1974), a memória de trabalho é constituída de três componentes: um executivo central e dois auxiliares, uma tábua de desenho visuo-espacial (TDVE) e um circuito de reverberação fono-articulatória (CRFA). O circuito de reverberação fonoarticulatória é muito importante para permitir processar informação verbal apresentada auditivamente na memória de trabalho, permitindo que tal informação sobreviva para além dos dois segundos de duração da memória sensorial ecóica (Treisman, 1964) e seja consolidada, i.e., passe para a memória de longo prazo (Carlson, 1987). O papel do circuito de reverberação fono-articulatória para a eficiência de processamento na memória de trabalho é indicado em casos em que ele encontra-se temporariamente desabilitado por uma tarefa concorrente de supressão articulatória (Baddeley & Lewis, 1981), ou insuficientemente desenvolvido, como em não-alfabetizados (Halliday et al, 1990; Hitch et al, 1989) ou comprometido, como em certos cérebro-lesados. Exemplos de casos de déficits de memória de trabalho em cérebro- 50

lesados, devidos a dano no circuito de reverberação fono-articulatória, são encontrados no afásico de condução KF (Shallice & Warrington, 1974) e nos pacientes JB (Shallice & Butterworth, 1977) e PV (Basso et al, 1982), todos com déficit em parte do circuito de reverberação fonoarticulatória, o armazenador fonológico (Baddeley, 1986). 2.2. O armazenador fonológico passivo e a processo de controle articulatório De acordo com o modelo de memória de trabalho de Baddeley (1986), o circuito de reverberação fono-articulatória é composto do armazenador fonológico passivo, que é relacionado diretamente à percepção da fala, e do processo de controle articulatório, que é relacionado à produção da fala. As informações fonológicas sobre as palavras podem penetrar o armazenador fonológico passivo de três modos: diretamente, via apresentação auditiva direta; ou indiretamente via articulação subvocal (apresentação auditiva direta) ou informação fonológica armazenada na memória de longo prazo. A informação no armazenador fonológico passivo (i.e., memória sensorial ecóica) esvanece-se em cerca de dois segundos. Assim, no circuito de reverberação fono-articulatória, a função do processo de controle articulatório é retro-alimentar o armazenador fonológico passivo, permitindo o ensaio encoberto e a consolidação da informação. Na ausência do processo de controle articulatório, como comumente ocorre no paralisado cerebral, para que haja aprendizagem de leitura-escrita, a memorização de correspondências grafo-fonêmicas, de regras de posição e de pronúncias e grafias excepcionais, precisa apoiar-se na via direta da apresentação auditiva repetida e sistemática, a qual deve ocorrer simultaneamente à visual e de modo controlado pelo paralisado cerebral, justamente como é a articulação sob controle da criança normal. 2.3. ImagoAnaVox como prótese do processo de controle articulatório Tal situação ideal ocorre quando o paralisado cerebral incapaz de articular a fala pode usar um sistema de comunicação como ImagoAnaVox com voz digitalizada (Capovilla, Macedo, Duduchi, 51

Gonçalves et al, 1996). Neste caso, sua aprendizagem de leitura-escrita pode aproximar-se bastante à de uma criança capaz de processo de controle articulatório. A diferença é a seguinte: para retroalimentar a informação fonológica no armazenador fonológico passivo impedindo que ela se degrade ao fixar o texto, enquanto a criança que vocaliza pode fazer uso do processo de controle articulatório (subvocalizando o que ouviu), a paralisada cerebral precisa fazer uso da apresentação auditiva direta. Ela pode conseguir isto via sistema de comunicação como ImagoAnaVox ao selecionar repetidamente a sílaba cada vez que a imagem fonológica no armazenador fonológico passivo se esvanecer. Assim, do mesmo modo que a criança normal vê uma sílaba, aponta-a a um adulto e ouve o adulto pronunciá-la (apresentação auditiva direta), repete a pronúncia abertamente (processo de controle articulatório e apresentação auditiva direta), olha novamente para a sílaba e repete para si a pronúncia (processo de controle articulatório); a paralisada cerebral, incapaz de articular fala mas usando um sistema de comunicação como ImagoAnaVox com voz digitalizada, vê uma sílaba, seleciona-a e ouve o computador pronunciá-la (apresentação auditiva direta), fixa-a visualmente enquanto a imagem ecóica no armazenador fonológico passivo ainda está vívida e, quando esta começar a decair, repete o processo (apresentação auditiva direta). De acordo com o modelo, nos dois casos a informação fonológica tende a consolidar-se na memória de longo prazo, e ambas as crianças eventualmente aprendem a ler e escrever, passando da leitura logográfica à alfabética e desta à ortográfica (Frith, 1986). Como o paralisado cerebral pode evocar a voz digitalizada do sistema de comunicação ImagoAnaVox direta ou indiretamente (via toque ou gemido), ele pode resgatar a imagem auditiva das palavras e sílabas quando quiser (i.e., fazer apresentação auditiva direta para refrescar o armazenador fonológico passivo). Na aprendizagem de leitura-escrita via sistemas de comunicação alternativa, as palavras escritas e soadas funcionam como modelo e a escrita é corrigida sistematicamente, comparando o som obtido ao modelo desejado. 52

2.4. A função do circuito de reverberação na compreensão da fala e da escrita O circuito de reverberação fono-articulatória também tem grande importância na compreensão da linguagem tanto na forma falada como na escrita. Neste caso sua função é reter no armazenador fonológico passivo a forma superficial da sentença, ou seja, a ordem exata das palavras na sentença, por tempo suficiente para permitir, via análise sintática, a consecução de sua forma profunda ou proposicional. (i.e., kernel sentence, Chomsky, 1965). Quando a fala interna (i.e., processo articulatório) estiver impedida ocorrem problemas com a compreensão de sentenças cujo significado deriva basicamente de sua sintaxe. A fala interna pode encontrar-se impedida de maneira estável e insidiosa em quadros de lesão cerebral, como a afasia de Broca. Pode também encontrar-se apenas temporariamente desabilitada como na tarefa de supressão articulatória (Baddeley & Lewis, 1981) em que o sujeito é instruído a articular repetidamente uma não-palavra. Experimentos têm sido conduzidos para avaliar como a desabilitação experimental temporária da fala interna ou seu impedimento na lesão cerebral e afetam a compreensão da linguagem. 2.4.1. Evidência de Psicologia Experimental Por exemplo, procurando descobrir o papel que a fala interna desempenha na leitura de pessoas normais, Baddeley e Lewis (1981) pediram a universitários para indicar se sentenças tinham ou não sentido, separando as bem-formadas (ex: o cirurgião operou o paciente ) das anômalas. Havia dois tipos de anomalias: a semântica em que uma palavra era inadequada à frase (ex: o rinoceronte operou o paciente ou descendo as escadas chega-se ao sótão ), e a sintática em que as palavras eram adequadas, mas estavam em ordem trocada (ex: o bebê deu à luz uma mãe saudável ; o paciente operou o cirurgião ). Como foi observado, a supressão articulatória reduziu a habilidade de detectar anomalias sintáticas, aumentando significantemente a frequência de erros. Ao desabilitar o circuito de reverberação fono-articulatória, a supressão articulatória reduziu a retenção de informação 53

sobre a ordem das palavras na sentença, afetando assim a compreensão das sentenças, quando esta dependia daquela retenção. 2.4.2. Evidência de Neuropsicologia Cognitiva Num experimento clássico sobre agramatismo receptivo em afásicos de Broca, os quais tipicamente apresentam dificuldade articulatória, Schwartz, Saffran e Marin (1980) apresentaram a afásicos pares de figuras retratando dois entes, como por exemplo duas pessoas, animais ou veículos, e uma ação entre eles, como por exemplo aplaudir, escoicear ou guinchar. Em cada par os papéis de agente e paciente da ação encontravam-se alternados. A tarefa do afásico era apontar para a figura que representava a sentença simples falada pelo examinador. Por exemplo, aponte o palhaço aplaudindo a bailarina. O desempenho dos afásicos agramáticos em tal tarefa foi próximo do acaso. Novamente, quando a compreensão da sentença depende do elemento sintático ordem das palavras, a dificuldade articulatória é crítica. Quando o significado das sentenças deve ser obtido pela análise baseada na ordem das palavras, as dificuldades no circuito de reverbeação fono-articulatória, quer por lesão, quer por desabilitação temporária, tendem a levar ao insucesso. Um exemplo ulterior da literatura para ilustrar isto é o da paciente MV (Bub et al, 1987), cuja fala interna era deficitária. MV tinha problemas em compreensão sentenças escritas, mas apenas quando estas tinham anomalias sintáticas (ordem alterada), e não semânticas (palavras inadequadas). 54