Um estudo sobre ouvintes do velho rádio AM na era digital. Mônica Kaseker Pontifícia Universidade Católica do Paraná



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Transcrição:

1 Um estudo sobre ouvintes do velho rádio AM na era digital Mônica Kaseker Pontifícia Universidade Católica do Paraná Em plena era digital, o rádio AM ainda é o principal meio de comunicação para uma parcela da população brasileira considerada excluída, com baixos poder aquisitivo e nível de escolaridade. O artigo apresenta o estudo de caso da rádio Banda B, líder de audiência há seis anos em Curitiba/PR, analisando, por um lado, como a emissora utiliza a internet e se prepara para a digitalização e, por outro, o perfil do ouvinte e seus hábitos em relação ao rádio e à internet. São apresentadas análises de conteúdo da programação e do site da emissora, assim como entrevistas semi-estruturadas com dez ouvintes. O embasamento teórico cita autores como Lèvy, Barbero, Meditsch e Trigo. A pesquisa demonstra que a rádio tem acompanhado o desenvolvimento tecnológico rumo à convergência das mídias, no entanto, para os ouvintes esta é uma realidade ainda distante. O rádio AM, em seu formato convencional, ainda é um elemento formador de identidades e solidariedades locais. Palavras-chave: Rádio, ouvintes, era digital. O rádio e a vida na grande cidade No Brasil, é comum encontrar pessoas analfabetas 1, vivendo em regiões que há pouco tempo não tinham nem mesmo energia elétrica, que agora assistem televisão, ouvem rádio e têm filhos já familiarizados com o computador. Neste contexto complexo, as linguagens oral, escrita, eletrônica e digital se misturam e se sobrepõem. Para Meditsch, não há como isolar e distinguir a oralidade primária, que possa ter sobrevivido de formas combinadas com a tradição escrita e as técnicas eletrônicas de registro da linguagem e do pensamento. (2001, p. 67) O rádio AM, agora se digitalizando e sendo veiculado também na internet, é um exemplo de como essa múltipla temporalidade ocorre no campo midiático brasileiro. O uso da internet pelas emissoras brasileiras é feito desde 1995, quando a própria rede chegou ao Brasil, e vem sendo aprimorado aos poucos, com a exploração de novos recursos, além da simples veiculação de programas on line. Sobre a implantação do sistema de transmissão digital, desde setembro de 1 De acordo com o IBGE, existem no Brasil cerca de 16,3 milhões de jovens e adultos analfabetos, com 15 anos ou mais. Isso representa 10% da população total. Nos grandes centros urbanos, apesar de baixos índices de analfabetismo, é significativo o número absoluto de pessoas que não tiveram acesso à educação. (ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA, 2006)

2 2005, a Anatel autorizou testes com o sistema americano no Brasil e atualmente três emissoras estão efetivamente relatando os resultados da experiência à Agência. O sistema americano foi escolhido por permitir a transmissão simultânea pelo sistema analógico, enquanto todos os receptores não forem substituídos. Com a possibilidade de transmissão de imagens e textos além do áudio, o rádio digital marca o início de uma nova era para o rádio. (ANATEL, 2006) É difícil prever, por enquanto, que modificações acontecerão nas emissoras e na audiência. O certo é que, por alguns anos, o rádio digital e o AM vão conviver no mercado radiofônico brasileiro. O rádio AM, que um dia foi um dos ícones da modernidade, desempenha um importante papel na vida urbana, onde múltiplas temporalidades fazem o passado e o presente se tocarem. Segundo estimativas do próprio setor a partir do acompanhamento do IBOPE, em Curitiba, assim como nas demais capitais e grandes cidades brasileiras, a maioria dos ouvintes de rádio AM concentram-se na faixa etária acima de 40 anos. Muitos adquiriram o hábito de escuta com os pais, migrantes vindos do interior para a metrópole. Isso também nos remete a algumas reflexões sobre essa mudança nos modos de vida entre as gerações. A cidade grande exige do homem mudanças sensoriais e é lugar propício ao esquecimento e à solidão. Para o sociólogo alemão Georg Simmel, a modernidade trouxe transformações para o cotidiano, no estilo de vida, que exigem uma profunda mudança na vida mental do indivíduo e em suas formas de sociabilidade. (1978) O autor ressalta que enquanto na cidade pequena o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, a metrópole oferece um imenso fluxo de imagens, mas os homens ainda não estão preparados para atribuir sentido a elas. A experiência da realidade foi profundamente transformada, num processo de industrialização do tempo e do espaço. Os outros passam a estar muito próximos, mas ao mesmo tempo permanecem distantes, na condição de estranhos e, neste novo contexto, surge um novo tipo de solidão. (WAIZBORT, 2000, p.327) Simmel trata também da questão da capacidade de rememoração, que é muito maior para o que é ouvido do que para o que é visto. Por isso, a cidade grande é para o autor lugar do esquecimento, onde muito se vê e pouco se ouve. Como lugar do moderno, a cidade faz deste o tempo e o espaço do esquecimento. A capacidade de rememoração está relacionada com a oralidade, com ouvir e falar. Se no moderno se ouve menos, há nisso uma perda da experiência. (WAIZBORT, 2000, p.331) Pensando na análise de Simmel sobre os sentidos do ver e do ouvir modificados na cidade grande, pode-se afirmar que o rádio supre a necessidade do homem, recém-chegado à metrópole, em continuar ouvindo e estar próximo do outro. Ouvindo rádio, não está mais só, mas relacionado, interagindo com o outro.

3 Essa análise coincide com a visão de alguns pesquisadores do rádio, como Maria Cristina da Matta, ao dizer que este meio...se ajusta ao ouvinte, o de meio que se deixa reger pela cotidianidade de seus receptores, definindo-se como acompanhante e criado. E nesse servir à cotidianidade, ele é capaz de fazer visível nas imagens elaboradas por outros, uns modos populares de sentir e pensar, de expressar-se e reconhecer-se, de atuar entre si e frente aos demais que podem ser fonte de auto reconhecimento, mas também e as vezes ao mesmo tempo fonte de indiferença. (in MEDITSCH, 2005, p. 272) O rádio substitui a vizinhança e suas solidariedades locais. Por ele, os ouvintes trocam objetos, receitas e dramas pessoais, já não se sentem tão anônimos, nem solitários. Para Winocur, o rádio transforma o sentido do privado ao projeta-lo publicamente, produzindo espaços de pertencimento descontextualizados de toda referência física e simbólica de ordem familiar, de vizinhança ou de comunidade. Tener familiares, vecinos y amigos próximos, o vivir en una localidad determinada, ya no son suficientes para definir la pertenencia y la identidad (2002, p. 206). Assim como na recuperação do sentido do ouvir e no afastamento da solidão, o rádio oferece ao homem ainda adaptando-se à modernidade um novo locus de rememoração. A memória que os ouvintes populares têm do rádio e sua relação com ele constitui, em nossa perspectiva, o lugar imaginário a partir do qual se escuta e a partir do qual pode e deve se interrogar sua capacidade interlocutória com o mundo popular. (MATTA, 2005, p.281) Barbero já havia chamado a atenção para a imensa capacidade que o rádio possui de mediar o popular. Para o autor, ele representa nas grandes cidades, especialmente na América Latina, uma orientação para a existência urbana de operários, migrantes e donas-de-casa. Para Barbero, isso acontece porque o rádio fala a linguagem popular, não apenas por ser a oralidade um subproduto do analfabetismo, mas também porque resulta numa ligação entre a racionalidade expressivo-simbólica e a informativo-instrumental. O rádio é um espaço de identificação no qual se produz uma experiência de profunda solidariedade (2003, p.327-328). Oi, oi, oi gente querida Pedir conselhos, mandar recados, encontrar pessoas desaparecidas, procurar emprego, ouvir mensagens de auto-ajuda e até arranjar namorado são alguns exemplos de como os ouvintes do Programa Luiz Carlos Martins interagem pelo rádio. O programa matinal veiculado pela Rádio Banda B AM 550 é líder de audiência há seis anos em Curitiba. A mediação do público está presente no decorrer do programa diário, que tem quatro horas de duração. A participação dos ouvintes é tão intensa, que fica evidente como o rádio representa para esta parcela da

4 população uma forma de sociabilidade. Oi, oi, oi, oi, gente querida! Vem aí a Melhor atração. Ele é nosso amigo, ele faz com o coração. Programa Luiz Carlos Martins. Este é o jingle que marca o início do programa nas manhãs de segunda a sexta-feira, às 8 horas. Logo em seguida da abertura, o radialista cumprimenta os aniversariantes do dia, citando o nome completo e o bairro em que mora. Depois de anunciar as principais atrações do dia, a primeira parte do programa consiste na leitura das manchetes e principais notícias dos jornais locais e dos principais jornais de circulação nacional. O programa também veicula mensagens religiosas, participação do ouvinte por telefone com suas histórias pessoais e problemas sociais dos bairros mais pobres. Seguem-se quadros como o horóscopo e sobre o que vai acontecer nas novelas logo mais à noite. Há também quadros como o Bolsão do Emprego e a Grande Corrente da Amizade, no qual as pessoas pedem objetos e roupas emprestados ou doados, pedem receitas culinárias e de remédios caseiros. O quadro A Carta do Ouvinte, com trilha sonora melodramática, conta histórias tristes vivenciadas pelo público. Em um outro quadro, ouvintes agradecem graças recebidas aos santos e a Jesus. Também não faltam fofocas sobre celebridades. Luiz Carlos Martins encerra o programa com orações e mensagens. E uma música de Roberto Carlos marca o final: Já está chegando a hora de ir, venho aqui me despedir e dizer... O programa Luiz Carlos Martins é altamente personificado, isto é, gira em torno do apresentador, que representa o papel de pai, amigo e conselheiro do ouvinte. O nome dele é repetido a cada abertura e fechamento de bloco, na vinheta do programa. Com muitas vinhetas e quadros de entretenimento e serviços, o programa reúne muito mais fórmulas de sucesso, do que informação. Nas palavras de Barbero, a qualidade de comunicação que alcança tem pouco a ver com a qualidade de informação que proporciona (2003, p.319). Trata-se da maior emissora de rádio AM da atualidade em Curitiba, a de maior audiência, a que mais emprega e a que possui o maior bolo publicitário. Enquanto a maioria dos programas do rádio AM são sustentados por poucos anunciantes, na Banda B os intervalos comerciais são mais freqüentes, mais longos e mais variados quanto ao número e perfil de empresas que anunciam ali seus produtos. E como o programa depende muito do feed back do ouvinte, seu conteúdo acaba sendo flexível. Em sua rotina de produção o radialista preenche o tempo que eventualmente pode sobrar com música, comentários e leitura de textos e mensagens. Nota-se que o programa se adapta à condição social de seu público alvo, de certa forma excluído e desprovido de condições básicas de vida numa grande cidade. Isso pode ser notado,

5 por exemplo, quando uma ouvinte manda um recado para a mãe, que mora na área rural em um município da Região Metropolitana, dizendo que seu netinho nasceu pela madrugada e está bem de saúde. (LCM, 2004) 2 Um episódio que demonstra as múltiplas temporalidades vividas numa cidade como Curitiba, onde há pessoas ainda sem acesso a telefone. A presença do melodrama em alguns trechos do programa evidencia a matriz cultural latino americana, que alimenta o reconhecimento popular na cultura de massa (BARBERO, 2003, p 316). Ao ler uma carta de ouvinte, com trilha sonora emotiva ao fundo, Luiz Carlos Martins ativa o imaginário coletivo e reforça a identidade de seu ouvinte, apelando para a emoção. Todos se fazem e refazem na trama simbólica das interpelações, dos reconhecimentos. Todo sujeito está sujeito a outro e é ao mesmo tempo sujeito para alguém. É a dimensão viva da sociabilidade atravessando e sustentando a dimensão institucional, a do pacto social. (BARBERO, 2003, p.316) Assim, o programa Luiz Carlos Martins é um espaço de reconhecimento e sociabilidade para as camadas populares de Curitiba, no qual as pessoas se vêem assistidas, representadas e onde podem se sentir menos excluídas e marginalizadas. O melodrama, a religiosidade, a esperança e o otimismo são ingredientes constantes, em pequenos enredos nos quais os próprios ouvintes são os protagonistas. Some-se a isso que a linguagem radiofônica é explorada nas vinhetas, trilhas sonoras, textos, silêncio e entonação de voz. Histórias reais, tristes ou não, fazem com que aquela audiência possa se identificar, se sociabilizar. O repertório do programa se mostra sintonizado com os problemas vividos pelo público, como o desemprego, as doenças e as dificuldades de relacionamento em família, a falta de dinheiro e até a solidão. O velho ouvinte e sua nova rádio O rádio tem feito parte da vida na cidade grande nos últimos 84 anos no Brasil e ele próprio está prestes a passar por profundas alterações sensoriais. Em tempos de digitalização, é provável que passe a ser ouvido de outras formas, passe até mesmo a ser visto a partir da convergência das mídias. Cabe aqui refletir sobre como as emissoras já estão iniciando este processo de transformação. A Rádio Banda B AM 550 possui há três anos um transmissor compatível 3 com a transmissão digital no sistema americano que oferece a possibilidade de transmissão simultânea pelo 2 Programa de Luiz Carlos Martins gravado em 2004 para posterior análise de conteúdo que compôs a dissertação de mestrado da autora O desempenho eleitoral dos radialistas políticos nas eleições proporcionais de 2002. 3 Trata-se de um transmissor modelo Harris 10 KW Hardx 10, conforme informou o coordenador do Departamento Administrativo Financeiro da Rádio Banda B, Ronaldo Prestes, em entrevista concedida à autora por e-mail no dia 28 de agosto de 2006.

6 modelo analógico. Além disso, no site da emissora, a programação é disponibilizada ao vivo, e ainda é possível acessar arquivos de programas já transmitidos. Existe também o Canal do Ouvinte, no qual se disponibiliza várias ferramentas de interação para o público. Na sessão carta do ouvinte, eles enviam as histórias de vida que serão lidas no programa Luiz Carlos Martins. Há também um link para anunciar venda, compra e até troca de objetos usados. No Bolsa de Empregos, oferece-se e procura-se vagas no mercado de trabalho. Existe ainda um espaço para enviar mensagens. Os quadros Corrente da amizade, Rádio Namoro e Gente procurando gente também recebem participações no Canal do Ouvinte. As participações pela internet são selecionadas e encaminhadas para o programa. O site tem ainda um link em construção para webcam, onde no futuro serão disponibilizadas imagens ao vivo dos estúdios da rádio. A Banda B não disponibilizou números absolutos no que se refere à participação dos ouvintes durante a programação da rádio, mas informou que 48% das participações são por telefone, em segundo lugar aparecem as cartas com 18%, só então o e-mail com 15% das participações de ouvintes. A rádio tem utilizado também o Portal de Voz, por meio do qual 12% dos ouvintes interagem com a rádio, e ainda os torpedos telefônicos que chegam a 7%. Segundo pesquisa do IBOPE, fornecida pela emissora, a audiência da Banda B se concentra nas classes C (41%) e D (30%). Esses percentuais são semelhantes na audiência do programa Luiz Carlos Martins, com exceção da participação feminina que é maior no horário da manhã (61%) em relação à média registrada em toda a programação (51,8%). A maior parte dos ouvintes (88,6%) tem mais de 25 anos de idade. Neste segmento, a Rádio Banda B tem disputado o primeiro lugar de audiência inclusive com duas emissoras FM em Curitiba e região. Para o coordenador administrativo da Banda B, Ronaldo Prestes, mesmo que a internet não faça parte do cotidiano da maior parte dos ouvintes, é importante que a emissora esteja atenta às novas possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento tecnológico: verificamos que nossos ouvintes concentram-se em maior número na classe C. Contudo nossa diretoria busca disponibilizar aos nossos ouvintes as mais variadas formas de acesso e participação na nossa programação. Recebemos constantemente e-mails de ouvintes que atualmente residem no Japão, EUA, Espanha, Itália, etc, ouvintes estes que ficam sabendo das notícias de Curitiba e RM, escutando nossa programação pela internet. Assim as tecnologias ofertadas através de sites, e-mails, portal de voz, plataformas de atendimentos telefônicos, etc., tornam-se importantes ferramentas para que possamos alcançar nossos objetivos. O depoimento confirma a tendência, de muitas emissoras continuarem com conteúdos locais, mesmo tendo alcance global, já apontada por Michael Keith (cit por SOUZA in FILHO,

7 PIOVESAN; BENETON, 2004, p.297). Por enquanto, no caso da Banda B o uso da internet ainda é somente um acessório. Como ressalta Lígia Maria Trigo de Souza ainda há muito pouco de exploração das possibilidades do áudio na rede, como a utilização da hipermídia, na construção de links relacionando os diversos áudios ou a disponibilização de produtos e/ou programas de forma a permitir a navegação dos internautas pelos seus blocos e segmentos, reconstruindo a programação oferecida de forma individual e personalizada (in MELO; ADAMI, 2004, p.167) Em relação às possibilidades, as emissoras podem ainda estar dando seus primeiros passos na exploração da internet. No entanto, estão muito à frente da maioria dos ouvintes que hoje caracterizam a audiência AM. Um descompasso que tende a diminuir, por enquanto lentamente porque os ouvintes do AM também se concentram em faixas etárias mais avançadas e mais distantes das novas tecnologias. No entanto, com a digitalização das transmissões e com o incremento na qualidade do áudio pelas ondas é possível que o rádio AM conquiste novos públicos, estes mais familiarizados com a internet. Numa pesquisa qualitativa que acompanha hábitos de recepção radiofônica junto a dez ouvintes de rádio AM em Curitiba 4, constatou-se que metade não possui computador em casa e, portanto, não tem acesso à internet. Nas outras cinco famílias observadas que possuem um computador em casa, apenas duas ouvintes utilizam o computador e a internet, no entanto costumam ouvir rádio em outros momentos pelo equipamento convencional. Nas demais três residências, há computadores, mas estes não são utilizados pelos ouvintes e sim por seus netos. Entre as ouvintes observadas, oito estão na faixa ou acima dos 50 anos, somente uma é mais jovem, com 26 anos. Em geral, o rádio funciona como companhia durante os afazeres diários. Duas ouvintes afirmaram ouvir o programa Luiz Carlos Martins por se sentirem melhor ao perceber que as pessoas ajudam os necessitados pelo rádio. Elas mesmas afirmaram ter ligado para fazer doações ou tentar ajudar de alguma forma. Outras três ouvintes já haviam telefonado para emissoras para fazer pedidos ou participar de promoções e concorrer a prêmios. Especialmente as ouvintes de idade mais avançada adquiriram o hábito de ouvir rádio com os pais, ainda na infância. Também são maioria as que vieram do interior, ou mesmo tem lembranças nostálgicas do tempo em que os vizinhos tinham amizade em Curitiba. Para essas 4 A pesquisa foi iniciada em junho de 2006, com visitas periódicas pela pesquisadora e realização de entrevistas semi-narrativas com os ouvintes. As famílias observadas são de estudantes de Comunicação Social,que participam da pesquisa como observadores-participantes. São eles: Anna Carolina Amaral, Thalita Uhlik Vieira, Ricardo Augusto Franco de Almeida, Luiz Carlos Oldenburg, Gisleine Moreira, Leandra Regina Farias, Tânia de Souza Mildenberg, July Ana Borneman e Darci Claudino.

8 ouvintes, a mudança do suporte do rádio para a internet dificilmente será incorporada ao cotidiano da escuta. E essa liberação dos suportes tradicionais é exatamente o que caracteriza as webmídias: A primeira característica das webmídias é que estão liberadas, pelo menos no plano técnico, das limitações associadas a qualquer suporte particular existente, como por exemplo a imprensa, o rádio ou a televisão clássica. Um website pode evidentemente propor ao mesmo tempo e de maneira complementar textos, imagens fixas ou animadas- e som. Em princípio, no ciberespaço, não existe mais distinção entre as mídias. (LÉVY in MORAES, 2003, p. 369) Se a adaptação das máquinas evolui rapidamente, o ser humano há de ter mais tempo para adaptar seus sentidos. Como já havia esboçado Del Bianco ao tratar a implantação do sistema de rádio digital no Brasil,...os radiodiusores terão que considerar a necessidade de formar consumidores para os novos aparelhos digitais a serem desenvolvidos, mostrando sua utilidade e vinculação com o cotidiano (2001, p. 41). Com os testes que vem sendo realizados pode-se dizer que a implantação do rádio digital no Brasil já começou e o processo, de acordo com estimativas do setor, pode levar de cinco a dez anos para se concretizar, contando com a substituição dos aparelhos receptores. A significação dessas mudanças na vida dos ouvintes só o tempo dirá. A velocidade nas transformações tecnológicas tem se acelerado a cada momento, porém, é necessário lembrar o que diz Ortiz: Apesar do desenvolvimento espetacular das tecnologias, não devemos imaginar que vivemos em um mundo sem fronteiras, como se o espaço estivesse definitivamente superado pela velocidade do tempo. Seria mais correto dizer que a modernidade, ao romper com a geografia tradicional, cria novos limites. Se a diferença entre o Primeiro e o Terceiro mundo é diluída, outras surgem no seu interior, agrupando ou excluindo as pessoas. (2006, p. 220) É por isso que Ortiz prefere utilizar o termo globalização somente para questões mercadológicas e tecnológicas, adotando o conceito de mundialização para a cultura. Assim, é possível compreender a diversidade e as várias temporalidades que vivemos na contemporaneidade. Considerações finais Pode-se dizer que o rádio digital já chegou ao Brasil, visto que algumas emissoras estão testando as transmissões e também já podem ser encontrados aparelhos receptores à venda. O novo sistema de transmissão transformará profundamente os hábitos de recepção radiofônica e também as perspectivas das emissoras de rádio, especialmente as AM, por sua baixa qualidade

9 de som e pela atual crise generalizada do setor devido às baixas verbas publicitárias. No entanto, o caso dos ouvintes da Banda B mostra que o rádio AM é um meio que evoca uma memória comum e pelo qual se experimenta a produção de solidariedade. Nas palavras de Barbero, o rádio local convoca e ativa dimensões da vida cultural do país muitas vezes desconhecidas ou negadas em outros meios. Para toda uma geração de ouvintes, talvez as transformações que o rádio digital possibilita jamais se realizem. Não porque essas pessoas não tenham acesso às novas tecnologias, mas porque este avanço não corresponde às suas necessidades sensoriais e de sociabilidade. Lembrando o que diz Haye, não são as tecnologias que modificam os hábitos e costumes das pessoas, pois a comunicação não é uma atividade baseada somente na tecnologia. É a própria sociedade que dá forma a seus elementos. (2003, p. 223) Portanto, o futuro do rádio com o advento da convergência das mídias será ditado pelas necessidades do homem. Se a necessidade de ouvir continuar sobrevivendo em formas combinadas com a tecnologia digital, é provável que o rádio preserve certa identidade, mesmo tendo a possibilidade de ser qualquer outra coisa em seu lugar Referências Bibliográficas BARBERO, J. M. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003 FILHO, A B; PIOVESAN, A; BENETON, R.. Rádio- sintonia do futuro. São Paulo:Paulinas, 2004 HAYE, R.M. Outro siglo de radio: noticias de um medio cambiante. Buenos Aires: La Crujía, 2003. MEDITSCH, E. O rádio na era da informação: teoria e técnica do novo radiojornalismo. Florianópolis: Insular, 2001. MELO, J.M.; ADAMI,A São Paulo na Idade Mídia. São Paulo: Arte & Ciência, 2004. MATTA, M.C..Memórias da recepção: aproximação à identidade dos setores populares.(in) MEDITSCH, E. Teorias do Rádio. Florianópolis: Insular, 2005. ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. (in) VELHO, O G.. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar,1978. SOUZA, L. T. O rádio paulistano na era da Internet. (in) MELO, J.M.; ADAMI,A São Paulo na Idade Mídia. São Paulo: Arte & Ciência, 2004.

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