OS COSTUMES E A LEI: NORMAS DE USO E CONSERVAÇÃO DA ÁGUA NAS COMUNIDADES RURAIS DO SEMI-ÁRIDO DE MINAS GERAIS, BRASIL



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Transcrição:

OS COSTUMES E A LEI: NORMAS DE USO E CONSERVAÇÃO DA ÁGUA NAS COMUNIDADES RURAIS DO SEMI-ÁRIDO DE MINAS GERAIS, BRASIL Abstract Eduardo Magalhães Ribeiro [1] Flávia Maria Galizoni [2] The customs and the law: norms of water utilization and conservation in rural communities of the Minas Gerais' semi -arid, Brazil The perception that natural resources were finite started in Brazil under the form ol localized crises which reached mainly agricultural activities: shortness of rain, loss of harvest and productivity, rural/urban migrations, and declive of productive areas. This was particularly evident as regards the water. The objetive of this article is to analyze the relationship between usual pratices of consumption and regulation of hydric resources, and the existing legislation. Firstly, it seeks to analyze the recent and increasing water shortage, showing the diversity of faces of the problem. As scarcity can result in conflict, and this in norm, the article discuss, then, as scarcity regulation appears in the Brazilian water legislation. After that, it analyzes the usual water perception found in rural communities of the semi-arid region of Northeast Minas Gerais, in the Brazilian Southeast. Finally, it compares usual norm and the law, in order to show that the law can exclude small consumers in a fundamental thing: the culture. As a result of bibliographic and field research, the article systematizes observations collected basically from the Jequitinhonha river valley. 1. População e recursos Durante muito tempo os recursos naturais no Brasil - entre eles a água - foram considerados ilimitados. Fazia parte da concepção do colono acreditar que os recursos dos trópicos eram inesgotáveis; podiam explora-los sem limites. Esta concepção marcou o consumo do ambiente; extensas áreas de fronteiras agrícolas - formadas por florestas, campos e bosques - foram usadas durante 500 anos combinando extrativismo e mobilidade espacial (Buarque de Holanda, 1957; Cândido, 1975; Martins, 1981; Freyre, 1985). No entanto, o uso dos recursos naturais nem sempre era destituído de critérios e normas. Populações indígenas e neobrasileiras regulavam o consumo dos recursos da natureza; indígenas ou não, ao fixarem-se numa região construíam normas costumeiras de uso dos bosques coletivos, águas, áreas de caça, extração e plantio. À medida que as populações ambientalizavam-se, consolidavam também conhecimento do meio, seus limites e potencialidades - que implicava na produção de técnicas adaptadas, mudanças em dietas e sistemas produtivos -, buscando ao mesmo tempo explorar e poupar o ambiente. Este tem sido, na atualidade, um tema caro às pesquisas em ciências agrárias e sociais brasileiras

(Soares, 1981; Almeida, 1988; Ribeiro, 1997; Hogan, 1998; Paula, 1997; Diegues, 2000; Galizoni, 2000; Freire, 2001). Porém, os limites da oferta de recursos eram frágeis: para manter parte da população numa localidade, quase sempre era necessária a migração constante de "excedentes" populacionais jovens, que iam reproduzir-se na - acreditava-se - ilimitada fronteira agrícola. A partir de meados do século XX as normas locais de consumo de recursos e crescimento extensivo de atividades agrícolas, pastoris e extrativas sobre o espaço territorial brasileiro encontraram limites. Crescimento populacional rural, esgotamento de fronteiras agrícolas e expansão urbana começaram a apresentar sinais críticos desde os anos 1950. Foi então que operou-se uma intensificação no uso dos recursos naturais, graças à combinação da técnica agrícola com a urbanização, que amplificou as demandas por matérias-primas, alimentos, água e energia (Hogan, 1978; Hébete e Moreira, 1997; Ribeiro e Galizoni, 2000). Estas transformações produtivas, técnicas e demográficas não implicaram em mudanças na atitude em relação ao consumo dos recursos; houve, até, a disseminação de um sentimento privatista em relação à natureza, que confrontou-se com as normas costumeiras de uso dos recursos naturais. Em relação à água a atitude não foi muito diferente da tradição do colonizador dos sertões brasileiros: aplicou-se o mesmo trato - comentado por Gilberto Freyre - dado às feras do mato e aos bichos da noite (Freyre, 1985; Martins, 1981, 1986; Sigaud, 1992; Hogan e Vieira, 1995). O objetivo deste artigo é analisar a relação entre estas práticas costumeiras de consumo e regulação de recursos hídricos e a legislação. Procura, inicialmente, analisar a recente e crescente escassez de água, mostrando a diversidade de faces deste problema. Como escassez pode resultar em conflito e conflito em norma, comenta-se a seguir a normatização da escassez, consolidada na legislação brasileira de águas. Em sequência analisa a percepção costumeira de água que vigora nas comunidades rurais da região semiárida do nordeste de Minas Gerais, no sudeste brasileiro; por fim confronta a norma costumeira e a lei, para mostrar que a lei pode excluir os pequenos consumidores de algo fundamental: sua cultura. Resultado de pesquisas bibliográfica e de campo, este artigo organiza informações coletadas principalmente no vale do rio Jequitinhonha. [3] 2. Escassez e norma legal A percepção que os recursos naturais eram finitos começou a manifestar-se no Brasil sob a forma de crises localizadas que atingiram principalmente as atividades agrícolas: falta de chuvas, perdas de safras e produtividade, fortes migrações do rural para o urbano, rápida decadência de áreas produtivas. Estas circunstâncias mostrando os limites produtivos das técnicas agrícolas intensivas em relação ao ambiente, estimularam reflexões no correr dos anos 1980/90 (Shiki, Ortega e Graziano da Silva, 1997). A água, mais que outros recursos, foi objeto de preocupações. Fica no Brasil em torno 8% de toda a água doce disponível no mundo, e esta água é utilizada para consumo humano e animal, geração de energia e irrigação. Acontece, porém, que grande parte dos mananciais brasileiros - aproximadamente 80% - encontram-se na região amazônica, onde vive apenas 5% da população (Freire, 2001).

Quando, em começos dos anos 1980, problemas localizados de escassez de água começaram a se manifestar, foram percebidos inicialmente pelas populações rurais. Sendo consumidoras que vivem próximo da água que usam, notavam que o recurso escasseava pela redução em número e volume de nascentes e das águas dos rios. Logo surgiram desentendimentos sobre uso de águas para consumo, irrigação e geração de energia. Em algumas cidades ocorreram desabastecimentos temporários de água, resultado da redução de mananciais e, então, nos fins dos anos 1990, água tornou-se, gradativamente, um problema (Agroanalysis, 1998; Ortega e Trombim, 2000; Ribeiro e outros, 2000). Nesta altura, é necessária uma reflexão sobre as características do "problema água". Ela não é, de fato, um problema para todos; sequer um problema da mesma dimensão para todos. Primeiro, é preciso diferenciar situações espaciais: água é um problema percebido e manifesto já por populações rurais. Na medida que, em maioria, são consumidores diretos - a população urbana a consome mediada por empresas - os habitantes do campo têm, também, uma percepção objetiva do que está ocorrendo com nascentes, rios e recursos naturais; partem de agricultores claras e exaltadas verbalizações sobre a catástrofe que, acreditam, avizinha-se. Segundo: problemas de água são percebidos e manifestos diferentemente de acordo com a renda. Pessoas mais ricas tem condições de diversificar seu acesso à água, deslocando-se para áreas não críticas. Em geral produzem soluções privadas: no campo, adquirindo e privatizando áreas de nascentes; nas cidades, expandindo reservatórios pessoais. Aos pobres resta, na maior parte das vezes, a escassez e a política pública, esta muitas vezes mediada pelo favor pessoal do governante, que transforma o acesso ao recurso num favor a ser retribuído com votos e obediência. Terceiro: a escassez de água é percebida diferenciadamente de acordo com a escala do consumo. Grandes consumidores - hidrelétricas, irrigantes, companhias de abastecimento urbano - a compreendem como negócio, enquanto os pequenos consumidores tendem a percebe-la com dádiva da natureza, bem comum e direito natural. Por isto as negociações entre consumidores de escalas diferentes são complexas e, geralmente, tortuosas, pois tratam-se de distintas lógicas e percepções. Quarto: problemas de água manifestam-se de maneiras diferentes numa mesma região ou localidade, do ponto de vista de qualitativo e quantitativo. Em alguns locais jamais existiram problemas, noutros eles são agudos, em outros, ainda, há abundância do recurso, mas a qualidade deixa muito a desejar. Em vista do exposto, uma conclusão desde já se impõe: são muitas as perspectivas, interesses, percepções e alternativas associadas aos recursos hídricos, dada a diversidade dos agentes, posições, rendas, interesses e localização. Por isto manifestações e mobilizações ocorrem em campos diversificados e, às vezes, desconectados; quase em campos de alteridades. Por isto, também, os diálogos entre concepções, necessidades, ações, políticas e normas podem perder-se nos labirintos das imprecisões. Neste cenário de demandas e imprecisões o Congresso brasileiro, em 1997, normatizou o consumo e conservação de recursos hídricos com uma lei que considera água um recurso vulnerável, finito, escasso em qualidade e quantidade. A escassez - propõe a lei das águas - transforma-a em bem econômico. Os instrumentos da lei procuram preservar a água para torná-la recurso disponível mas pago, gerido por comitês participativos locais e regionais. A perspectiva da lei brasileira associa-se a uma tendência mundial de regulação

dos recursos hídricos marcada pelo viés mercantil (Agroanalysis, 1998; Freire, 2001; Petrella, 2001; Gesualdi, 2001). Embora tenha, até o presente, pouca influenciado o consumo, práticas e cotidiano dos consumidores e empresas, a redefinição das normas brasileiras sobre recursos hídricos estimulou o surgimento de debates e organizações - mais debates - que envolvem organizações locais, empresas e Estado. Acesso à água tem sido considerado pelas empresas como oportunidade de investimentos e, tendencialmente, esta regulamentação pública abriu um novo campo para pensar negócios associados à água (energia, turismo, pesca...) que até então, dada a suposta oferta ilimitada e livre, eram entendidos apenas como empreendimentos relacionados a um ramo produtivo ou de serviços (eletricidade, abastecimento humano, hotelaria, lazer) e não à disponibilidade de um recurso natural. No entanto, esta concepção - "águabusiness", como tem sido denominada - não é única e, talvez, sequer hegemônica. Para populações rurais, lavradores, cidadãos e pequenos consumidores rurais de Minas Gerais, água é compreendida numa perspectiva diferente, como se verá a seguir. 3. Percepções de água O vale do Jequitinhonha, principalmente o alto rio, é marcado pelos sítios familiares e comunidades rurais; neles, nascentes e pequenos cursos d'água são balizas importantes para a organização social e de sistemas de produção. Nascentes servem como referência na sociabilidade, identidade, delimitação do território e localização da população. Camponeses se orientam e, às vezes, nomeiam-se, por viverem em localidades que retiram sua denominação de cursos d'água - Joaquim (da vereda) do Sítio Novo; Zé Mateus (do córrego) do Degredo; Jesus do (ribeirão) do Capivari. Lavradores assentam as moradas em torno dos cursos d'água, buscando neles referência para a locação da construção. A distância da água pode ser fator de exclusão de herdeiros indesejáveis e os sítios são delimitados no espaço levando em consideração "as águas vertentes", isto é, a posição em relação ao rumo e destino da água. Nascentes são importantes referências para o sistema de produção: garantem a existência ou não de regadio para a horta doméstica e bebida para animais. Água é básica para a renda da família, pois os produtos dos animais, da horta e do regadio são bens de comércio: levados às feiras, representam oportunidade para a família adquirir bens e garantir parte do dinheiro que auxilia a sobrevivência numa economia geralmente pouca líquida. Nascentes são, também, referências para organização do trabalho, pois perto delas ou do curso d'água, quando é possível, são colocados sistemas de captação que permitem economizar trabalho no abastecimento doméstico e produtivo. Assim, as famílias sempre procuram dedicar o mínimo tempo possível à captação do recurso, pois mais trabalho compromete a organização interna das tarefas. O que se nota em pesquisas e reuniões nesta região é que a população rural tem crescente sensibilidade para o que pode ser denominado a "questão da água", que manifesta-se de várias maneiras. A primeira manifestação é pelo esgotamento, pois, em alguns lugares, nascentes, córregos e ribeirões secos obrigaram a população a usar a água dos caminhões-pipas das prefeituras (alto e médio Jequitinhonha). Noutros casos é pelo escasseamento, quando as nascentes perderam muito em volume, a ponto das pessoas serem

obrigadas a fazer rodízio de coletar nos minadouros; em algumas situações só coletam de 3 em 3 dias e apenas para parte do consumo doméstico. Nesta situação em algumas comunidades, várias das práticas e sistemas produtivos foram abandonados, o consumo humano passou a ser controlado, em muitos lugares reduziram o número de animais de cria, e famílias foram obrigadas a abandonar o plantio de hortaliças. Neste ponto, porém, é preciso fazer duas ressalvas: a escassez nem sempre é regionalizada e, tampouco, individualizada. Dadas as diferenças de uso da terra e conservação de recursos, dadas coberturas vegetais e disponibilidade de nascentes, algumas comunidades rurais dum município são privilegiadas em relação a recursos hídricos e, embora seus moradores manifestem preocupação com a crescente redução dos níveis de água, ficam praticamente à margem de uma crise que percebem crescer. Mas, estando garantidos no curto prazo, nem por isto se percebem distantes do assunto: isto os leva a desenvolver uma consciência aguda da finitude dos recursos hídricos, da necessidade da sua conservação e especular sobre as origens do problema. De outro lado, boa parte dos recursos naturais de muitas comunidades - terra, plantas, madeira, lenha, minérios e água - são domínios coletivos (Graziano, 1986; Ribeiro, 1997; Galizoni, 2000), e esta condição costuma resultar numa abundância ou escassez quase sempre partilhada, comunitarizada. Esta população rural vive de acordo com princípios costumeiros aplicados à água. Segundo lavradores, "água é comum, ninguém pode tirar o direito dela; água não tem dono, é do povo, é dos bichos, água é para todo mundo." A terra, de acordo com eles, até pode ser privatizada; mas água é um recurso "público", não privativo, e o destino dela é "circular igual". Água não é percebida como um bem mercantilizável, ao contrário dos animais e produtos do trabalho; água é dom da natureza, e embora pessoas possam ter mais direitos a ela - aqueles em cujo terreno brota -, são apenas direitos relativos à dosagem, aos pontos de captação, à prioridade de abastecimento; não são direitos de negação desmotivada de água para eventual consumidor. Dessa maneira, uma improvável acumulação de estoque de águas pode reverter em dano para quem a privatiza: dano moral em termos de avaliação subjetiva da comunidade; dano qualitativo, pois, entancada a serventia da água decresce, uma vez que água presa, impedida de circular torna-se suja, imprópria, inservível, ficando prejudicada sua qualidade e prejudicado quem a prendeu, que estocou dom de escassa serventia. Vem dessa necessidade de circulação do recurso uma percepção cara à população rural: a noção de escassez não é apenas quantitativa, mas, sobretudo, qualitativa, pois depende fundamentalmente do tipo de água - boa ou má água - disponível e da possibilidade ou não de circulação. Ocorre que, nessa concepção, água perde qualidade à medida que circula, pois vai reunindo sujeiras, de tal forma que quanto maior o corpo d'água, mais sujo, e vice-versa. Na medida que crescem em volume as águas perdem em qualidade: da nascente ao córrego, do córrego ao ribeirão, do ribeirão ao rio, do rio ao rio grande, acumula-se crescente sujeira e impropriedade ao consumo; conclui-se, por fim, que a água dos rios maiores -água grande- é a mais suja. A água grande reúne a sujeira de muitos consumidores e a transporta; circula transportando sujeira e, quanto mais circula, mais sujeira transporta; é uma água que já nenhum consumidor quer ter primazia e ninguém consegue consumi-la impoluta; lavradores só vão consumi-la em último caso, na restrição de todas as nascentes, brotos e minadouros. Por isto, às vezes, são frequentes as

reclamações por água exatamente às margens dos grandes rios, e mediadores custam a entender que é uma reclamação por qualidade da água e por água de qualidade. [4] Segundo estes lavradores são muitos os usos, e sobretudo os humanos, que sujam a água. Ela é poluída pelo gado, que pisa, urina e defeca dentro dela; criações morrem perto ou dentro d'água e as pessoas as empurram águas adentro; água acima tem chiqueiro de porcos, bebedouros e currais. Tem, também, pessoas tomando banho e - principalmente - lavando roupa: a lavagem de roupa, muitas vezes, é citada como principal fator de poluição da água, pois reúne à sujeira da roupa a do próprio corpo que a vestiu; usar água que teve esta serventia é considerado mais abjeto que usar aquela servida por animais. Por isto as mulheres lavam roupas nas águas maiores ou, quando em águas pequenas, nas horas determinadas pelos costumes. Se as famílias ou a comunidade prenderem água do ribeirão para uso doméstico, então, estarão cometendo duplo equívoco: além de reter a sujeira produzida águas acima, retém a própria sujeira que seus detentores produzem. Isto não quer dizer que famílias e comunidades recusam-se sempre a usar águas barradas ou grandes. Significa apenas que elas o farão somente sob condições de severas restrições hídricas, considerando a precariedade do "prender água" como solução para consegui-la, porque assim somente disponibilizam um recurso poluído, que é, sempre, um quase último recurso. Às vezes, bebem e cozinham com águas do rio grande porque não tem alternativa. Não gostam: não a consideram boa, é a única disponível. Entra em cena, então, a hierarquia dos consumos, pois a utilização do recurso vai depender, invariavelmente, da sua ordem de captação. Água que serviria apenas para consumo animal ou regadio é a única que existe para o consumo doméstico; usos que seriam sequenciais ou complementares - doméstico / regadio / consumo animal - tornam-se competitivas. Assim, o sentimento da escassez é relativo à gama das necessidades de consumo, e a redução da oferta força família e comunidade a redefinir hierarquias de consumos, eleger prioridades e rever, muito a contragosto, as categorias culturais existentes em torno e a partir da água; incluem-se aí as noções de limpeza, sanidade, escassez, conforto e abundância. O escasseamento da água, portanto, atinge essas comunidades e famílias em pontos vitais e diferentes. Dado que escassez é, inclusive, uma noção qualitativa, o que seria uma boa água? O critério de qualidade resulta de uma associação de regionalizasse, sensibilidade e condição de captação. As apreciações sobre boa ou má água variam pouco no Jequitinhonha: com topografia irregular, a nascente que brota da serra, pequena, privativa e familiar é reconhecida como a melhor água. Quanto à sensibilidade, a água boa é a água fina, água que se coloca na boca e tem o sentido leve. E então qualidade e percepção são associadas à captação, pois água fina é conseguida em cacimbas bem localizadas, em nascentes preservadas, com bastante mato em volta, ou surge de debaixo de pedras, sempre com o sentido daquilo que é puro. Às vezes, lavradores que dispõem de boas nascentes, consumem água limpa colocando canos diretamente nas nascentes, e adquirem caixas com pequena capacidade - suficiente apenas para breve rodeiro da água, não para prende-la - que recebem reúnem e libertam pelo ladrão a água que vai às hortas, aos animais da casa, ao córrego e, finalmente, ao mundo. Nas áreas com abundância de nascentes raramente são

feitas caixas para estocar água suficiente para o consumo na moradia, pois as famílias não querem água presa, acumulada, capitalizada: água é dom; como dom, deve circular. Assim, existe água para beber, consumo animal, lavar roupa e regar. Nem todas as águas servem para beber e usar em casa; mesmo se for muito difícil conseguir uma água fina para beber, vão procura-la; outras águas podem não ser próprias para beber, mas servem para tomar banho. Por isso, pode até existir um rio grande perto da comunidade e pessoas reclamando falta d'água, porque o rio não tem as qualidades que apreciam; querem uma água que considerem limpa. Nem sempre é possível, então, fazer referência a um genérico problema de água, mas a problemas das águas, porque elas são muitas, para muitos usos, culturas e situações. 4. Escassez, conflito, costume e lei Comunidades rurais tendem, então, a perceber e formular problemas de água de maneira diferente daquela usada por agências públicas e de regulação. Agências, que refletem em termos de consumo massivo, concebem um problema a partir de grandes águas e necessidades - energia, abastecimento urbano, irrigação - e da água como negócio. Já as comunidades de lavradores estruturam um conceito de qualidade e, a partir dele, o sentimento -relativo- de escassez, que é, ao mesmo tempo, qualitativo e quantitativo, porém nunca mercantil. Qualidade tem a ver, exatamente, com as condições culturais, subjetivas e de captação e, por isso, a prioridade de tutela e zelo são as pequenas, não as grandes águas. Água grande está, pela escala e imundície, fora das dimensões que costumam conceber a possibilidade de ação humana. Mas escassez ou falta de água afeta lavradores em muitos aspectos. Geralmente as primeiras atividades prejudicadas são regadio e horta, sacrificados em favor do consumo humano. Em consequência a dieta alimentar fica empobrecida, e às vezes também a renda familiar é afetada, porque não são produzidos excedentes de alimentos para comércio; no limite, os efeitos de redução de área de hortas podem comprometer até o abastecimento do centro urbano com produtos de origem local. Assim, desaparece uma fonte de renda, pois estas atividades os ocupam na estação sem chuvas. São modificadas também rotinas, objetos e formas de trabalho da família, uma vez que a mulher dedicará maior parte do seu tempo para buscar água em nascentes mais distantes. Isto influencia a distribuição do tempo e da massa de trabalho total, que é planejado a partir de rotinas estáveis e distribuições economicamente equilibradas. [5] Às vezes surgem conflitos por conta da escassez, mas este boa parte das vezes é amortecido pelas relações de parentesco internas à comunidade: ocorre redução de oferta de água para todos. Mesmo nessas situações raramente cogitam armazenar água para consumo humano; enquanto existe água corrente não armazenam, pois não a apreciam entancada. O uso da água, assim, está associado à ideia de um direito natural e generalizado para todos os seres vivos. Mas, é bom ressalvar, que uns podem ter mais direito que outros - por antiguidade de morada, por localização de captação, por afinidade na captação. Curiosamente, os casos de conflitos tendem a envolver mais aos parentes que aos estranhos,

talvez por ser a regulação comunitária também uma regulação parental e a partilha associada a uma parentela. Também ocorre a situação de, às vezes, a família ter a terra da nascente e regular o uso da água para si e para todos; nessa situação não se costuma prender a água, e por isso quem tem a nascente fica mais prejudicado na definição da quantidade que pode consumir e pela área de vegetação em terra fresca que necessita obrigatoriamente preservar, para garantir o abastecimento da comunidade. Sendo pouca, então, a água da nascente é dividida para todos os moradores da comunidade que tem direito. Consumo e distribuição de água, portanto, são normatizados, havendo critério para usar que resulta de demoradas e espinhosas combinações que as famílias acordam até configurar costume e norma. No limite, os acordos comunitários são insuficientes para enfrentar a escassez, e se a família mora perto da nascente e ela seca, as pessoas vão carregar água de distâncias cada vez maiores, ou mudar o lugar das casas para mais perto dos córregos. Por fim, se o córrego seca, tendem a migrar para vilas, e pequenos arruados rurais surgem em função deste deslocamento. Esta é uma solução dúbia. É uma má solução, pois lavradores ficam longe das lavouras, o trabalho cresce, penaliza-se a família pelo aumento de tarefas para alcançar um mesmo resultado. Mas pode ser uma boa solução: migrando para a vila a água deixa de ser problema de uma família e torna-se uma questão pública, da prefeitura e do governo, que passam a enfrentar agora reivindicações organizadas, escoradas por representantes, mediadas pela política. Este é um movimento lento de centralização de população e organização política de demandas, que não é movido apenas e nem sempre pela falta de água; associa-se também a uma gama de serviços, pois a vila vai buscar soluções para problemas de educação, saúde e, sobretudo, água. Esta reespacialização da população constrói uma nova sociabilidade, mediada mais estreitamente pelo poder público, com novas cadeias de relações pessoais, formais, de produção; com outras atitudes em relação ao que seria problema hídrico. No limite, ao entregar parte do seu destino aos poderes públicos que gerenciam a água na vila ou o carropipa, os lavradores redefinem ou abandonam alguns costumes de gestão solidária. Buscam soluções individuais, mediadas pelo poder público; certamente soluções mais custosas, mais morosas e menos perfeitas que outras surgidas de consensos. Água deixa de ser problema familiar e torna-se problema público, mas a conservação da água e das nascentes pode ficar completamente abandonada. Neste ponto, então, é importante retornar à apreciação da relação entre lei e costumes. A escassez de água no Brasil começa a torna-la um problema, que desemboca em conflitos. Pelo que é possível perceber, os conflitos vem das diferenças de uso: grandes consumidores para geração e irrigação revelam-se mais agressivos no debate e na gestão da água. Assim, desenha-se uma situação onde a água-negócio tende a ser hegemônica sobre a água-dom, pois a primeira funda-se na lei enquanto a segunda baseia-se em costumes locais. Mas, se é possível para os grandes consumidores dar o tom das prescrições sobre água - consumo, conservação, norma -, encontrarão imensas dificuldades em vê-las cumpridas, pois os costumes locais atinam-se apenas para os pequenos corpos de água, desprezando completamente os grandes rios. Certamente por isto os comitês de bacias hidrográficas não sensibilizam lavradores, não os mobilizam, não constituíram-se ainda em

espaço de debates e produção de acordos; pode-se, sinceramente, ter dúvidas se virão a constituir-se em foros normatizadores dadas as diferenças de perspectivas. [6] Ausência de Estado e presença de empresas negociando gestão do recurso, torna o acesso e a disponibilidade de água uma questão espacialmente diferenciada, pois a mediação de conflitos, regulamentação de consumos e práticas conservacionistas tendem a acontecer com profundas diferenças territoriais, dependentes do empenho de empresas, da concordância ou capacidade de mobilização das populações locais, de maior ou menor sensibilidade do poder público local. Assim, delineiam-se situações regional ou localmente diferenciadas, onde garantias mínimas de acesso ao recurso ou sucesso e fracasso de práticas conservacionistas nunca estarão, com antecedência, asseguradas. A estratégia das populações rurais tem sido buscar a preservação das nascentes; não tanto a preservação da mata ciliar. Em geral, do seu ponto de vista, pouco adianta se preocupar com rios e águas grandes; a água é suja e o controle da sujeira e escassez dessas águas escapa ao controle das comunidades. Assim, as propostas de debater e normatizar uso das águas via comitês de bacias encontra pouca ou nenhuma acolhida nestas comunidades. Face à diferença de enfoques e perspectivas, frente ao escasseamento crescente do recurso, a melhor opção é debater um caminho comum, conciliatório, que incorpore as categorias culturais das comunidades às dimensões pública, estatal e mercantil do recurso água. O processo de gestão social das águas centrado em organizações mais aparelhadas para sua condução - empresas de energia, irrigação ou abastecimento hídrico - e normatizado pela legislação formalmente participativa, cria também uma armadilha para as prefeituras. O costume de usar políticas repressivas - legal e culturalmente - para o pequeno consumidor não tem apresentado resultados para fins de conservação dos recursos e, mesmo que apresente em alguns lugares, leva tempo para voltar a existir um abastecimento regular de água. Neste entremeio a escassez de água para o pequeno consumo acaba por tornar-se um problema exclusivo para prefeituras. É a ela que compete abastecer, urbanizar, sanear, transportar, enfim custear a maior demanda e despesa que vem destes lavradores que vão se aglutinando em vilas. E prefeituras devem enfrentar as contas, pois o consumidor-eleitor solicita água para a vila é ao vereador, prefeito e funcionário local. Em municípios do alto Jequitinhonha este problema está, já, inteiramente configurado. Por isto os espaços das ações comunitárias - escolas, sindicatos, comitês de saúde, ongs, grupos de mulheres e associações - poderiam se transformar em vetores de diálogos, onde estas diversas perspectivas poderiam encontrar-se para negociar as facetas do problema da água. Ações desenvolvidas por estas organizações, na medida que privilegiam atuações locais e demandas territorializadas, tem servido para valorizar identidades, fortalecer o sentido de pertencimento a um determinado espaço. Podem, assim, auxiliar na construção de acordos onde diversas perspectivas encontrem-se; as comissões de atingidos por barragens, com forte atuação local, tem sido espaços exemplares para refletir sobre estas possibilidades; nelas, o coitado vira sujeito, e às vezes o sujeito se descobre cidadão. 5. Bibliografia AGROANALYSIS. 18(3), mar. 1998

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[1] Economista, do DAE/Universidade Federal de Lavras, Lavras, Minas Gerais, Brasil; e-mail: aureoemr@ufla.br. [2] Antropóloga, do IFCH/Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil; e-mail: fgalizoni@bol.com.br [3] Estas pesquisas vem sendo realizadas desde 1999 pela equipe do Programa de Educação Ambiental/PPJ/UFLA, coordenadas pelos autores, com participação de pesquisadores e estudantes da U.F. de Lavras, MG. Agradece-se à estes, ao Centro de Agricultura Vicente Nica (Turmalina, MG) e à Cáritas Diocesana de Almenara (Jequitinhonha, MG). Para contatos: ppj@ufla.br. [4] Pesquisa realizada no ano 2000 num assentamento às margens do rio Jequitinhonha - que corre caudaloso e perene - observou que as famílias de lavradores investiram os recursos coletivos para montar um sistema de captação e distribuição de água com 10 quilômetros de extensão, sujeitando-se ao custo elevado, à distância e à intermitência da água de nascente pequena, mas desprezando a água grande do rio. [5] Sobre trabalho feminino em condições de estresse hídrico ver Fischer (2000). [6] Situação semelhante ocorre com parques e reservas naturais no mundo inteiro, que são sistematicamente detestados, incendiados ou boicotados pelas comunidades vizinhas que sofrem sua implantação. Consultar Diegues (2000) sobre este aspecto.