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Transcrição:

Revista Symposium Revista Symposium Os processos da argumentação: uma abordagem pragmático-discursiva 1 Maria de Fátima Vilar de Melo 2 Entre as Escuras duas Margens da palavra Asa da palavra Asa parada agora Casa da palavra Onde o silêncio mora Brasa da palavra A hora clara, nosso pai Hora da palavra Quando não se diz nada Fora da palavra [ ] Milton Nascimento - Caetano Veloso ( A terceira margem do rio ) O que eu vi na minha vida, é que cada ação se inicia por uma palavra bem refletida. Uma palavra convincente, dada ou mantida que vai traçando seu caminho. (Guimarães Rosa, Diadorim) 1 Este artigo é um fragmento da fundamentação teórica da tese de doutorado: Le développement de la conceptualisation de connaissances et de l argumentation chez des syndicalistes de faible formation de base, orientada por Gérard Vergnaud. Université René Descartes Paris V Sorbonne. 2 Professora do Departamento de Psicologia da UNICAP Resumo: Este artigo apresenta algumas perspectivas sobre o estudo da argumentação, discutindo as suas diferenças em relação as suas posições sobre a ligação dos processos argumentativos com a retórica, a demonstração, a comunicação e o discurso. Defendendo a abordagem pragmáticodiscursiva, proposta por Jean-Blaise Grize e outros autores. Palavras-chave: argumentação, raciocínio informal ou cotidiano, demonstração, raciocínio formal, abordagem pragmático-discursiva. Abstract: This paper presents some perspectives about the study of argumentation. It discusses its differences in relation to its positions about connecting the argumentative processes to rhetoric, demonstration, communication, and discourse. The paper also defends the discursive-pragmatic approach proposed by Jean-Blaise and other authors. Key Words: Argumentation informal or daily thinking demonstration formal thinking discursive-pragmatic approach. CRISIS Como assinalam Grize (1982, 1996) e Vignaux (1988), estudar a argumentação não é uma tarefa fácil nem cômoda. Essa afirmação é compartilhada por numerosos autores, uma vez que argumentação vem sendo estudada desde a Grécia Antiga e, até hoje, continua como uma área de estudo sem coerência e unificação. Os estudos divergem quanto a sua definição, aos processos que a compõem, à forma de abordar esses processos, às disciplinas às quais esse fenômeno está ligado etc. 1.1 A QUE SE ENCONTRAM LIGADOS OS PROCESSOS ARGUMENTATIVOS? O estudo sobre argumentação iniciou com os trabalhos de Aristóteles, dedicados à distinção dos diversos tipos de raciocínio: retórico, demonstração científica, demonstração formal etc. Entre esses raciocínios, a lógica formal sempre ocupou um lugar privilegiado, sendo considerada como o modelo de raciocínio. Numerosos estudos foram feitos para verificar a possibilidade de aplicação dessa lógica a outros temas e a outros domínios. NOVA FASE Ano 3 Número Especial julho-99-55

Ciências, Humanidades e Letras Alguns desses estudos tinham como objetivo explicar os fenômenos à luz dos aspectos constitutivos da lógica formal. No que concerne à argumentação, essa perspectiva engendrou dois tipos de estudos: a) o primeiro conjunto de estudos tenta explicar ou mesmo formalizar os processos da argumentação a partir do modelo da demonstração. Vignaux (1988, op. cit.) considera que essa posição faz o amálgama entre a lógica e a lingüística. Dentro dessa concepção, as operações da argumentação são limitadas pelas características que compõem a lógica formal; b) o segundo conjunto de estudos trata a argumentação como uma demonstração de segunda categoria ou mesmo uma demonstração que fracassou. É o estudo de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) que mostrou explicitamente a impossibilidade de reduzir o raciocínio argumentativo aos limites de um raciocínio formal, definindo a argumentação como O estudo das técnicas discursivas visando à ganhar ou à reforçar a adesão às teses que se apresentam. (p. 18). Acentuando o lado persuasivo da argumentação, esses autores propõem uma abordagem retórica que se diferencia de maneira radical da demonstração, vendo o estudo desse fenômeno como um ramo da Psicologia. Para eles, a demonstração visa ao verdadeiro e ao falso enquanto que a argumentação objetiva influenciar uma opinião. Vignaux (1976, op. cit., p. 26) assinala que estes autores tem o mérito de ter restaurado uma sorte de lógica prática. Dentro dessa ótica, Grize (1986) assinala que, no discurso argumentativo, os valores de verdade só constituem uma parte desse tipo de discurso; e quem argumenta se preocupa, sobretudo, com os valores originados pelas crenças. Isso o leva a fazer a distinção entre convencer e persuadir. Convencer é mostrar os valores de verdade das proposições, enquanto que persuadir está mais ligado aos valores das crenças. É necessário levar o destinatário a crer em alguma coisa, exercer uma influência, e isso é um fenômeno psicológico, mostra que a argumentação está muito mais próxima da retórica que da lógica formal. Isso não quer dizer que ela não utiliza operações de pensamento formalizáveis, mas tais operações têm uma natureza diferente das operações da demonstração. Vignaux (1976, p. 25, op. cit.) afirma ainda que o que distingue a argumentação da demonstração é que a primeira está inscrita numa situação e refere-se a uma situação. A demonstração explicita um raciocínio, enquanto que a argumentação constrói, (des)constrói, (re)constrói; em outros termos, ela transforma. A argumentação implica o uso de um raciocínio cotidiano que se diferencia dos raciocínios formais por sua natureza e pelos objetos sobre os quais ele opera. Isso significa que todos os raciocínios não são reduzíveis ao cálculo de signos e que levam em conta o conteúdo e a situação na qual eles intervêm, empregando regras de passagem múltiplas, que são diferentes das regras de inferência formal. Esse raciocínio cotidiano não ignora as regras formais, mas ele emprega outras regras estreitamente ligadas às propriedades do discurso e das línguas naturais (Apostheloz, Borel e Péquenat, 1984). Apotheloz, Borel e Péquegnat (op. cit.) continuam expondo sobre as diferenças entre argumentação e demonstração ou raciocínio formal e raciocínio informal, ao afirmarem que: [...] será declarado informal todo raciocínio que integra os conhecimentos implícitos, ou ainda todo raciocínio cuja conclusão não é verdadeira apenas pelo fato de ter sido aplicado uma regra. Isto supõe entre outras coisas que uma conclusão informal comporta elementos de significação novos em relação às premissas. A posição desses teóricos evidencia que os processos argumentativos não coincidem com os processos da lógica formal. Eles são engendrados por um Universidade Católica de Pernambuco - 56

tipo de raciocínio que depende dos aspectos discursivos e dos aspectos retóricos. Dentro da mesma ótica, Grize et al. (1987) acrescentam que a argumentação implica operações específicas (por exemplo, a manipulação e o emprego do instrumento lingüístico); e que essas operações engendram a produção de raciocínios e de argumentações contextualizadas: todo discurso é destinado a um interlocutor, numa determinada situação, e se inscreve no tempo. Essa posição de Grize se assemelha à de Pêcheux, cujos estudos sobre análise automática do discurso mostram que um discurso é sempre relativo à ocupação de lugares (ou posições) num determinado aparelho. O discurso argumentativo existe num determinado momento e para uma determinada sociedade. (Pêcheux, 1969; Pêcheux e Fuchs, 1975). Assim, a perspectiva defendida por Grize e colaboradores constitui uma posição alternativa em relação às posições descritas anteriomente. Essa posição se baseia na exploração de alguns processos de natureza lógica ou sobre o estudo de certos tipos de encadeamento de idéias. Ela impõe a independência da argumentação em relação à lógica, procurando estudar as particularidades da primeira, diferenciando os processos de raciocínio requisitados pela argumentação dos processos envolvidos na demonstração. Ela ressalta a natureza retórica e discursiva dos processos argumentativos. Nessa perspectiva, a argumentação é uma atividade que se inscreve no processo comunicativo. Grize adota os seguintes postulados para caracterizar a comunicação: 1) postulado do dialogismo: esse postulado deve na origem aos trabalhos de Bakhtine, que afirmam a natureza dialógica da linguagem; 2) postulado da situação de interlocução: toda comunicação se desenvolve no seio de uma situação que apresenta duas dimensões; a) ela é concreta e corresponde a uma atividade discursiva que se situa num certo momento, num determinado lugar e que visa a um determinado fim; b) ela é teórica, qualificada de tenor por Halliday (1978, citado por Grize 1996), e dá conta do conjunto das relações que existem hic e nunc entre locutor e interlocutor, assim que da dimensão social de troca; 3) postulado das representações: esse termo é compreendido por Grize como o que está na cabeça (dans la tête) daqueles que comunicam (o locutor e o interlocutor): 1) a princípio, seus conhecimentos; 2) em seguida, a representação do nível de língua da pessoa à qual nos dirigimos; 3) e, finalmente, os valores da pessoa para quem o locutor se dirige e sua ideologia; 4) postulado do pré-construído cultural (PCC): é o conjunto de conhecimentos que o locutor utiliza para a produção de seu discurso. Os PCC fornecem o quadro obrigatório no qual o discurso deve se inserir, e aí pelo duplo mecanismo piagetiano de assimilação e acomodação. O orador deve assimilar os conteúdos e os acommodar ao que ele tem intenção de dizer (p. 66). Isso não é limitado ao sentido das palavras. Os PCC são, a princípio, de natureza cognitiva, intelectual, mas podem corresponder também a valores. E, finalmente, para que a comunicação seja possível, é necessário que os parceiros compartilhem um mínimo de PCC. 5) postulado da construção dos objetos: o discurso é criação de sentido e produz objetos de pensamento a partir da significação dos termos dos quais ele se serve. Esses objetos constituem os objetos do discurso. Os objetos uma argumentação e em menor medida de todo outro discurso, são sempre objetos ad hoc, isto é, produzidos para satisfazer. No entanto, essa posição se distingue claramente das posições de alguns estudos contemporâneos sobre os fenômenos argumentativos que fazem uma oposição ingênua entre lógica e retórica e se limitam a pesquisar somente as estratégias de persuasão. NOVA FASE Ano 3 Número Especial julho-99-57

Ciências, Humanidades e Letras A proposição de Grize e colaboradores se distingue ainda da que é defendida por Ducrot (ver Ducrot, 1980a; Anscombre e Ducrot, 1988), que objetiva evidenciar a orientação argumentativa da própria língua. Para ele a escolha de um enunciado tem como fim orientar os destinatários na direção de uma conclusão. A argumentação é concebida como um processo interno da língua, que é visto como capaz de revelar o funcionamento argumentativo específico a essa língua. Essa posição de Ducrot decorre de seus trabalhos (1972, 1980b, 1984, dentre outros) ligados à concepção pragmática sobre as noções de implícito e de pressuposição, nas quais a pressuposição é considerada como um tipo específico de implícito. Esses trabalhos sobre a pressuposição se estenderam na direção do estudo dos encadeamentos discursivos, ou seja, a idéia de cadeia discursiva, que orienta o enunciado. Grize (1996), que também partilha a concepção pragmática, reconhece a pertinência dessa perspectiva baseada sobre a semântica das palavras; porém, considera-a insuficiente para explicar todos os fatores implicados no raciocínio argumentativo. Para ele, essa concepção não dá conta nem da fonte do raciocínio, nem dos valores oriundos das crenças dos protagonistas dos discursos, uma vez que a linguagem veicula representações sociopsicológicas desses protagonistas. Considerar a argumentação como um tipo de discurso implica que, para compreendê-la, é necessário entender o que é discurso e quais são os processos discursivos. 1.2 DISCURSO E ARGUMENTAÇÃO A definição de discurso muda segundo a perspectiva em que nos fundamentamos. Encontramos em Benveniste (1966, p. 241) uma definição bastante ampla: o discurso é toda enunciação que supõe um locutor e um auditor, e no primeiro a intenção de influenciar o outro de alguma maneira. Bronckart (1985, op. cit.) considera que o conceito de discurso remete a uma entidade mais ampla, a da formação discursiva empregada no texto, entidade só compreensível levando em conta um conjunto de parâmetros de natureza social. Nessa definição, vemos claramente a presença de teses pragmáticas. Dentro dessa mesma linha, Caron (1983, op cit.) define o discurso como uma seqüência coerente de enunciados e, a partir disso, faz três observações: 1) a princípio, o discurso implica relacionar vários enunciados através da atividade enunciativa. Esses enunciados não são construídos antecipadamente, já que um enunciado depende sempre dos outros; 2) ademais, o discurso é um processo: ele se desenvolve no tempo, de forma dirigida. Este caráter dirigido se reflete no núcleo do próprio enunciado. [...] O discurso aparece então como uma sucessão de transformações, permitindo passar de um estado a outro, depois a outro, e assim por diante ; 3) essa sucessão constitui uma progressão em direção de um certo fim e, por conseguinte, a coerência do discurso não é a de um sistema fechado e acabado. Ele se constrói por aproximações e está mais relacionado a regulações do que a estruturas. Essas observações concernem ao caráter pragmático e instável do discurso, que conduz Caron a utilizar a noção de regulação discursiva. Essa noção é oriunda da Cibernética, tendo sido Piaget (1967, p. 239, citado por Caron, op. cit. e Chabrol, 1994) o primeiro a utilizá-la a fim de explicar certos mecanismos cognitivos, compreendendo-a como um controle retroativo que mantêm o equilíbrio relativo de uma estrutura organizada ou de uma organização em via de construção. Essa regulação tem duas funções: a) compensar as perturbações sofridas pelo sistema, introduzidas pelo parceiro ou pelo próprio locutor; b) guiar para manter as boas direções e corrigir as direções erradas. De acordo com Caron (ibid), essa noção aplicada ao discurso evidencia: Universidade Católica de Pernambuco - 58

- o funcionamento por aproximação das atividades discursivas; - o caráter intradiscursivo (psicolingüístico) dessas atividades, porque se trata de operações referentes às situações discursivas; - e, finalmente, o caráter funcional dessas atividades, subordinadas aos objetivos e às condições das trocas discursivas. É necessário sublinhar que essas regulações são consideradas como operações discursivas. Chabrol (1994) distingue gênero de regulações: a) a regulação egocentrada antecipada que implica a presença de um mecanismo regulador sociocognitivo-linguageiro, que controla a construção discursiva em função de finalidades identitárias. Trata-se da capacidade de antecipação do locutor sobre o que pensa o seu interlocutor. Ele deve para isso se colocar no lugar de seu interlocutor e fazer as inferências psicológicas e sociais necessárias; b) a regulação egocentrada retroativa, que é realizada a partir das interlocuções anteriores: cada parceiro pode apoiar-se sobre as respostas e reações de seus interlocutores, para avaliar diretamente e, sobretudo, para reconstituir indiretamente as inferências psicológicas e sociais feitas a seu respeito. Os indícios são as ironias, as questões inesperadas etc. O locutor julga esses indícios e pode regular retroativamente sua produção discursiva. Na sua análise, Chabrol cerne igualmente um outro tipo de operação discursiva: as interrupções ou as rupturas de construção: a) as interrupções simples - elas aparecem sob a forma de hesitações, de erros e, finalmente, de repetições laboriosas ou ainda de silêncios não habituais que interrompem, de maneira provisória, a troca comunicativa; b) as hesitações com adição - o discurso é temporariamente interrompido para que uma idéia nova seja acrescentada; c) as rupturas de construção e as autocorreções - a interrupção é definitiva e o sintagma que se tinha começado é abandonado. A concepção descrita acima nos conduz a colocar a seguinte questão: qual é a diferença entre discurso e argumentação? Ou seja: pode-se falar de discurso argumentativo, diferenciando-o de outros gêneros de discurso? Toda argumentação pode ser considerada como um discurso finalizado. Entretanto, todo discurso finalizado não é uma argumentação. Para Vignaux (1976, op. cit., p. 58), discurso argumentativo comporta as seguintes características: a) ele é estruturado em proposições ou teses que constituem um raciocínio e traduzem, direta ou indiretamente, uma posição de orador (asserções, julgamentos, críticas); b) ele remete sempre a um outro, seja este outro individualizado ou não (um homem, um grupo, um estado determinado da sociedade) e que seja explicitamente marcado ou não no discurso (citações, alusões a pessoas, proposições gerais sobre uma situação). Assim, Vignaux (1976, op. cit., p.32) define o discurso argumentativo como: Aquele, a partir de um determinado lugar de orador no seio de uma formação social, marca a posição deste orador sobre um sujeito ou um conjunto de sujeitos, esta posição traduz diretamente, ou indiretamente, e até mesmo de forma mascarada, o lugar do orador numa formação social considerada. Esta posição é sempre determinada pelo outro, que o orador pode ou não lembrar. Segundo Grize (1996), toda argumentação visa a intervir sobre a pessoa à qual ela é dirigida. Isso supõe que o locutor dispõe de um certo número de competências: 1) competências lingüísticas - competência lexical e competência sintáxica; NOVA FASE Ano 3 Número Especial julho-99-59

Ciências, Humanidades e Letras 2) competências culturais - o conhecimento dos aspectos culturais e históricos que estão em questão; 3) competências retóricas - correspondem, em grande parte, ao emprego de metáforas; 4) competências lógicas - dependem das três outras, porque se trata da possibilidade de fazer inferências. Acreditamos que se pode acrescentar a essas competências as competências psicológicas, que podem ser restritas às competências ligadas ao desenvolvimento cognitivo, como, por exemplo, o nível de conceptualização do conhecimento em questão. No entanto, essas competências não são comuns a todos os discursos e elas são susceptíveis de serem desenvolvidas. O nível da argumentação depende dessas competências. 1.3 À GUISA DE CONCLUSÃO A distinção entre o discurso argumentativo e os demais discursos não se esgota nas características acima colocadas. Para uma melhor compreensão das particularidades do discurso argumentativo, ainda será necessária a realização de numerosos estudos e, por conseguinte, este debate ainda movimentará, durante um bom tempo, a cena da produção científica. 1.4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APOTHELOZ, D. et al. Discours et Raisonnement. In: GRIZE, J. B. (Ed.) Sémiologie du raisonnement. s. l. : Berna, Peter Larg, 1984, p. 1-54. ASCOMBRE, J-C. & DUCROT, O. L argumentation dans la langue. Bruxela, Mardaga, 1988. BRONCKART, J. P. Le fonctionnement des discours: un modèle psychologique et une méthode d analyse. Paris : Delachaux & Niestlé, 1985. CARON, J. Les régulations du discours: Psycholinguistique et pragmatique du langage. Paris, PUF, 1983. CARON, J. Précis de psycholinguistique. Paris: PUF, 1989. CHABROL, C. Discours du travail social. Paris, PUF, 1994. DUCROT, O. Dire et ne pas dire: Principes de sémantique linguistique. Paris: Hermann, 1972. DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris: Éditions de Minuit, 1984. DUCROT, O. Les échelles argumentatives. Paris, Éditions de Minuit, 1980a. DUCROT, O. Les mots du discours. Paris: Éditions de Minuit, 1980b. GRIZE, J. B.(org) De la logique à l argumentation. Genève: Droz, 1982. GRIZE, J. B. Epilogue In: GRIZE, J. B. (org.). Sémiologie du raisonnement. s. l. : Berna, Peter Lang, 1984. p. 243-248. GRIZE, J. B. Logique et langage. Paris: Orphys, 1990. GRIZE, J. B. Logique naturelle et communications. Paris: PUF, 1996. GRIZE, J. B. Logique naturelle et représentations sociales In: D. JODELET (Ed.) Les représentations sociales. Paris: PUF, 1989. p. 152-168. GRIZE, J. B. Pour aborder l étude des structures du discours quotidien. Langue Française, n. 50, p. 7-19, 1981. GRIZE, J. B. et al. Salariés face aux nouvelles technologies: vers une approche socio-logique des représentations sociales. Paris: Editions du C.N.R.S, 1987. Universidade Católica de Pernambuco - 60

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