Incômodos para consumidores, impactos para a economia Ainda que o setor elétrico não estivesse passando por um preocupante e oneroso momento de stress, ainda que quase todos os agentes e consumidores do setor não estivessem sendo penalizados pela necessidade de se aprimorar o modelo e por uma das piores conjunturas hidrológicas dos últimos oitenta anos, precisaríamos atentar para temas que, embora não diretamente relacionados à situação atual, têm afetado de maneira significativa a competitividade da indústria para a qual a energia responde por importante parcela do custo de produção e precisam de solução. Assim, concordando e complementando a (não usual) convergência dos agentes em torno da necessidade de se aprimorar o modelo atual, chamamos a atenção neste artigo para três questões que interferem nos planos de investimentos das grandes indústrias no Brasil: i) a incerteza acerca do encargo da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um problema que está afetando as decisões de produção da indústria a partir da capacidade hoje ociosa, mas que também compromete a previsibilidade do custo futuro, e, portanto as decisões de investimento na produção; ii) a qualidade do fornecimento de energia, que tem impactos indiretos, porém muito significativos, sobre o custo de produção, e iii) a participação voluntária de grandes consumidores livres nos leilões de expansão, viabilizando a contratação de longo prazo a preço competitivo, fundamental para as decisões de investimentos da indústria. Estes temas, de tão relevantes e incômodos, foram estabelecidos como prioritários no Projeto Energia Competitiva (PEC), que congrega associações das indústrias química (Abiquim), vidreira (Abividro), alumínio (Abal), cloro e soda (Abiclor) e ferro ligas (Abrafe) para discutir, sob a coordenação dos grandes consumidores (Abrace), alternativas viáveis e sustentáveis para devolver competitividade à energia brasileira. A importância do desafio aumenta pelo fato de que essas associações representam empresas do primeiro elo de diversas cadeias produtivas. Ou seja, embora esses temas possam estar hoje em menor evidência no setor, afetam de maneira muito significativa as bases da economia. CDE, uma guilhotina no pescoço da indústria? Se por um lado a Medida Provisória nº 579 (MP) reduziu os encargos para todos os consumidores brasileiros através da suposta isenção de pagamento da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) e da extinção da Reserva Global de Reversão (RGR), por outro criou a Super CDE. Esse novo encargo agrega receitas e despesas de natureza diversas e pode - ou
não, contar com o aporte de recursos do Tesouro Nacional para garantir que seja cumprida nos próximos anos a promessa, feita quando do lançamento da MP, de que os custos de políticas públicas até então desenvolvidas com recursos da conta de luz dos consumidores passariam a ser custeados pelo governo e que as despesas com encargos seriam minoradas. Explicamos. A partir da MP, todos os anos a Aneel faz uma previsão de despesas que envolvem o pagamento de recursos para a CCC (que deveria ter sido extinta), para os subsídios ao carvão, para o Programa Luz para Todos, para políticas públicas de subsídios à população de baixa renda, incentivos a fontes alternativas e outras despesas (felizmente) menores. E avalia, também, quais são os recursos disponíveis, provenientes de pagamentos de multas no setor e do Uso do Bem Público (UBP). Da diferença entre essas duas contas decorre a parcela a ser rateada entre todos os consumidores e que pode contar com recursos do Tesouro. Para se ter uma ideia, das despesas previstas para 2014 (R$ 18 bilhões), apenas R$ 800 milhões não foram rateados entre consumidores e União. Ocorre também, e aqui reside o maior problema, que a União não tem qualquer obrigação legal de aportar recursos na CDE. Ou seja, caso não tenha disponibilidade de recursos nos próximos anos, toda essa conta recairá sobre os consumidores. Se as despesas da CDE em 2015 se mantiverem no mesmo patamar deste ano, o que pode até ser considerada uma estimativa otimista, e se o Tesouro optar por não aportar recursos 1, a conta para os consumidores pode passar dos R$ 14 bilhões, o que representaria um encargo de cerca de R$ 40/MWh pra os consumidores da região Sudeste, Sul e Centro-Oeste 2. Esse valor equivale a 10 vezes o valor da quota paga em 2014. Neste caso, o custo da CDE representaria 26% do custo da energia consumida quando considerado o atual mix médio de contratação das distribuidoras, da ordem de R$ 170/MWh, ou ainda, quase quatro vezes o valor da transmissão, cerca de R$11/MWh. Para a grande indústria, já combalida com tantas dificuldades, isso pode ser tão fatal quanto uma guilhotina. Para ela, o problema tem um perverso agravante: custos antes rateados com base no custo marginal de cada nível de tensão e cobrados na forma de demanda,ao migrarem para a CDE, passaram a ser rateados igualmente entre todos os níveis de tensão (na forma de selo) e cobrados pela energia consumida. Com isso, caso o Tesouro não honre o compromisso assumido, mas não formalizado, estes custos serão redistribuídos de forma extremamente prejudicial aos grandes 1 Outro cenário possível seria considerar que o Tesouro aportará, no mínimo, o equivalente aos créditos da União provenientes de Itaipu, estimados em R$ 4 bilhões, porém, não há clareza sobre o futuro desses aportes. 2 Consumidores das regiões Norte e Nordeste pagam cerca de 25% do valor da CDE pago pelos demais consumidores.
consumidores, criando mais um subsídio cruzado em favor dos pequenos consumidores e contra a competitividade da produção nacional. Há, porém, alternativas que se complementam para lidar com esse problema. A primeira delas refere-se à previsibilidade. O Tesouro poderia publicar um plano plurianual de aporte de recursos à conta. Em conjunto com projeções da Aneel para as despesas no mesmo horizonte de tempo, haveria alguma informação sobre qual seria o valor pago pelos consumidores nos próximos anos. Hoje, como demonstrado, o valor pode ser algo entre R$ 4 e R$ 40/MWh. A segunda refere-se ao aumento da eficiência das despesas pagas pela CDE. É preciso que se avalie onde há espaço para economia nas principais despesas, como a CCC, a Tarifa Social e as despesas com a conta subvenção descontos tarifários 3, que representam 26%, 23% e 11%, respectivamente, das despesas previstas para este ano. A terceira passa por um programa de política industrial, a exemplo do que ocorre em grandes economias concorrentes 4, em que a indústria fica isenta do pagamento do encargo como forma de desoneração de seus custos de produção. Esta solução virá inclusive favorecendo os pequenos consumidores, que acabam pagando pela CDE embutida nos preços dos produtos consumidos e ainda aumentada pelo peso de impostos adicionais ao longo das cadeias produtivas. Energia descontínua para a indústria A indústria tem observado - e sido penalizada - com a deterioração da qualidade do fornecimento de energia tanto no nível da distribuição, como no da transmissão. No caso dos consumidores conectados aos sistemas de distribuição, além da percepção dos associados da Abrace de que interrupções têm aumentado e que a qualidade tem caído nos últimos anos, indicador da Aneel aponta para a necessidade de se aprimorar os incentivos à melhoria da qualidade. O indicador de Desempenho Global de Continuidade da agência apontou que em 2013 5, dentre as 34 maiores distribuidoras analisadas, cerca de metade piorou seu desempenho em relação a 2012. Vale ressaltar que o indicador considera como interrupção apenas aquelas superiores a três minutos, mas, para a indústria, interrupções de alguns segundos podem ter impactos similares a interrupções de minutos: o prejuízo é o mesmo. Há casos registrados em que o tempo de 3 Inclui despesas como subsídios para produtores rurais, irrigação, aquicultura e fontes incentivadas. 4 Para maiores informações sobre essas políticas, referir-se a Energia, diferencial de competitividade nacional, disponível no acervo do Visões do Setor Elétrico. 5 Indicador e ranking com base no Desempenho Global de Continuidade: http://www.aneel.gov.br/visualizar_texto.cfm?idtxt=1971
retomada de produção para o patamar anterior a uma interrupção com duração de uma hora e meia foi o mesmo daquele de duas interrupções de 30 segundos: de quatro horas e meia. No que diz respeito à transmissão, a percepção de piora na qualidade do fornecimento para as indústrias é corroborada pelo indicador de severidade 6 do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que acompanha a evolução da razão entre a energia total interrompida devido a blecautes ao longo de cada ano e a demanda máxima anual. O indicador tem piorado desde 2010 e encontra-se acima dos níveis considerados aceitáveis pelo próprio ONS 7. Algumas medidas podem contribuir com a melhora desse problema. São elas: i) a criação de indicadores de interrupção de curta duração (inferiores a 3 minutos) para as distribuidoras, o que permitiria ao regulador ter um diagnóstico mais adequado sobre a qualidade do fornecimento para a indústria; ii) a criação de indicador similar para os sistemas de transmissão, com a divulgação, inclusive, de ranking de qualidade das transmissoras e iii) aprimoramento dos incentivos regulatórios baseados nos indicadores propostos, por meio de penalidades ou bônus para que concessionárias invistam na melhoria da qualidade do fornecimento. A transparência certamente permitirá aos consumidores apoiar a Aneel no processo de fiscalização e exigir, de seus concessionários, serviços coerentes com o nível tarifário vigente. Assegurar hoje a energia do futuro A indústria grande consumidora do mercado livre acaba de sofrer um grave golpe quando não teve acesso à energia das concessões renovadas. Mas se o acesso à energia competitiva do passado é importante, igualmente necessário é o acesso à nova energia. E tão importante quanto assegurar a atratividade dos investimentos no setor elétrico, a rentabilidade de seus acionistas e o estímulo à eficiência e ganhos de produtividade, é oferecer condições adequadas para que a indústria possa olhar para o futuro e ter a segurança de que o preço de energia não será um entrave ao retorno de seus investimentos. É nesse contexto que se faz necessária uma discussão sobre a participação da grande indústria livre consumidora de energia nos leilões de expansão. Os grandes leilões estruturantes, que oferecem energia a preços mais competitivos, alocam para o mercado regulado (e sob a premissa de preço-teto) a maior parcela da energia proveniente das novas usinas. Nesse modelo, há um incentivo para que o investidor ofereça a energia para o mercado regulado ao menor preço possível e, para compensar, majore o preço para o mercado livre, de forma a ter um preço médio que lhe dê o retorno necessário. Com 6 Índice de severidade do serviço conforme submódulo 23.3 dos procedimentos de rede do ONS. 7 Energy Report Setembro de 2013 Edição 81.
isso, a grande indústria não só não tem acesso à energia competitiva desses empreendimentos, como acaba pagando mais pela energia no mercado livre. Além de afetar a competitividade da indústria, o mecanismo provoca desequilíbrio entre os dois mercados e não aproveita o potencial de consumo do mercado livre para apoiar na expansão da oferta. É importante, assim, que se desenvolvam mecanismos que permitam aos grandes consumidores participarem voluntariamente e em condições coerentes com a natureza de seus negócios no pool de compradores da energia (hoje apenas as distribuidoras) proveniente dos projetos licitados. Soluções para entraves estão sendo estudadas pelos consumidores, mas o problema também precisa ser enfrentado pelos formuladores de políticas públicas e agentes do mercado livre.