BRINCADEIRA DE FAZ-DE-CONTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES A PARTIR DA AÇÃO PEDAGÓGICA



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Transcrição:

Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências da Educação Núcleo de Desenvolvimento Infantil Curso de Especialização em Educação Infantil Campus Universitário Trindade Caixa Postal 476 e-mail : especializacao.ufsc.ndi@gmail.com - Fone 3721-8921 Márcia Warken Cremonini BRINCADEIRA DE FAZ-DE-CONTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES A PARTIR DA AÇÃO PEDAGÓGICA Chapecó - 2012 Márcia Warken Cremonini Professora (ACT) (marciacremonini@yahoo.com.br) Solange Alves Doutora USP Professora UFFS (solangesol13@gmail.com) 1

Márcia Warken Cremonini BRINCADEIRA DE FAZ-DE-CONTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES A PARTIR DA AÇÃO PEDAGÓGICA Artigo submetido ao Curso de Especialização em Educação Infantil para a obtenção do Grau de Especialista em Educação Infantil Orientador: Professora Solange Maria Alves Chapecó 2012 2

Márcia Warken Cremonini BRINCADEIRA DE FAZ-DE-CONTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES A PARTIR DA AÇÃO PEDAGÓGICA Este artigo foi julgado aprovado para a obtenção do Título de Especialista em Educação Infantil e aprovado em sua forma final pelo Curso de Especialização em Educação Infantil. Chapecó, 14 de abril de 2012. Prof. Dra. Marilene Dandolini Raupp Coordenadora Geral do CEEI Banca Examinadora: Prof. Solange Maria Alves Orientador Prof. Giseli Day Primeiro membro Prof. Andrea Rivero Segundo membro 3

RESUMO Durante muitos anos ou séculos, a brincadeira de faz-de-conta foi vista como algo natural e corriqueiro, assim, não sendo analisada da forma como merecia. Novos contornos são assumidos nesse campo, a partir da inserção de visões e teorias críticas, entre elas a que orienta as reflexões neste artigo: a teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano. Para essa concepção, a brincadeira constitui o evento através do qual a criança se apropria do mundo e faz com que participe do gênero humano. Com base nos pressupostos de Vigotsky, este artigo persegue uma reflexão sobre a importância da brincadeira de papéis sociais ou a de faz-de-conta na Educação Infantil. Tema central da prática educativa com crianças, a brincadeira vem se difundindo não apenas como algo importante para a criança, mas igualmente para os professores da Educação Infantil, sendo concebida, no mais das vezes, como estratégia básica de aprendizagem e desenvolvimento. O que ainda está sendo indagado e tem necessidade de ser observado é o modo como a brincadeira intervém nessa aprendizagem, como a intervenção pedagógica deve ser planejada e quais as mediações possíveis e necessárias para qualificar o desenvolvimento da aprendizagem da criança com a brincadeira de faz-de-conta. Palavras-chave: brincadeira de faz-de-conta; desenvolvimento infantil; intervenção pedagógica. 4

1. INTRODUÇÃO O tema da brincadeira faz-de-conta, como fator importante no desenvolvimento e aprendizagem infantil, tem fomentado reflexões teóricas por um lado e, por outro, têm sido levado a termo em ações pedagógicas comprometidas com uma séria articulação entre teoria e prática na educação infantil. Estudiosos e profissionais envolvidos com a temática do desenvolvimento infantil difundem a importância da brincadeira de faz-de-conta na aprendizagem e desenvolvimento da criança. A efetividade da aprendizagem através de processos criativos e imaginários inerentes ao jogo do faz-de-conta constitui a centralidade do debate que articula à brincadeira seu papel na aprendizagem e no desenvolvimento humano e o papel da ação pedagógica na Educação Infantil. Essas questões estão na origem da presente reflexão, nascida em estudos realizados durante processo de formação, no diálogo desses estudos com a prática de educadora infantil e, com maior intensidade, durante a realização de projeto de intervenção pedagógica pautado pela temática da brincadeira de faz-de-conta. O presente artigo faz uma reflexão e destaca a brincadeira de faz-de-conta como forma concreta de aprendizagem e desenvolvimento infantil. Isso foi fruto da intervenção pedagógica realizada no mês de setembro de 2011. O trabalho de intervenção foi desenvolvido através de procedimentos metodológicos de acompanhamento, observação, mediação e registro das brincadeiras de faz-deconta, na turma da pré-escola vespertino, em um dos Centros de Educação Infantil Municipal (CEIMs) da rede municipal de ensino do Município de Chapecó (SC), o qual possuía 411 crianças com idade entre 04 meses a 6 anos de idade que o frequentavam. Dessas, 140 em período integral, 133 matutino e 138 vespertinos, organizadas em turmas de berçários (04 meses a 02 anos), maternais (02 anos a 04 anos) e pré-escola (04 anos a 05 anos), A análise da intervenção pedagógica, empreendida nesse texto, observouse basicamente: do que as crianças brincam? Quais os papéis sociais assumidos nas brincadeiras e os objetos utilizados nas brincadeiras? 5

2. Brincadeira de faz-de-conta: desenvolvimento e aprendizagem infantil Na perspectiva histórico-cultural, a criança e o conhecimento devem interagir de forma mútua nos aspectos afetivos e científicos fazendo relação com o cotidiano da criança, acreditando que a diversidade e heterogeneidades devem ser consideradas elementos essenciais no desenvolvimento infantil. Então, para perspectiva histórico-cultural, a aprendizagem, o ensino e o desenvolvimento são processos que não se confundem, mas estão interligados, dependendo um do outro. A brincadeira de faz-de-conta é fundamental para o desenvolvimento infantil, pois por meio dela a criança tem condições de criar, recriar, enfim, descobrir como viver o real e o imaginário de forma lúdica. Em conformidade com os dizeres acima, cita Craidy (2001, p. 103) que A criança expressa-se pelo ato lúdico e é através desse ato que a infância carrega consigo as brincadeiras de faz-de-conta. É pelo brincar e repetir da brincadeira que a criança saboreia a vitória da aquisição de um novo saber incorporado a cada novo brincar. Vale destacar que na brincadeira de faz-de-conta, a criança produz regras, vivencia os princípios que percebe na realidade, recria, na esfera imaginativa, os planos da vida real e das motivações de sua própria vontade. Isso tudo ocorre pela autonomia que a criança adquire nos seus primeiros anos de vida, desenvolvendo habilidades, motoras, cognitivas, sociais e afetivas que a possibilitam apropriar-se do mundo dos adultos, fazendo do momento brincar uma atividade principal para continuação do seu desenvolvimento. Como consequência do desenvolvimento de novas propriedades motoras, cognitivas, afetivas e sociais, a criança torna-se mais autônoma e sua percepção do mundo e de si mesma neste mundo, mais acurada. Sob estas condições, ela passa a dominar um círculo muito amplo de atividades, a ensejar-lhe a construção e manifestação de dois grandes motivos: a tendência para integrar ativamente a vida (e as atividades) dos adultos e a busca da 6

compreensão das relações entre ela e o mundo que se descortina à sua volta. São estes motivos que estarão na gênese da atividade principal representativa desta etapa do desenvolvimento: o jogo de papéis. (MARTINS, 2006, p. 35). A brincadeira de faz-de-conta, além de constituir objeto de estudo de diferentes áreas (psicologia, pedagogia, por exemplo), tem sido considerada como espaço e tempo fundamental de apropriação da cultura e de desenvolvimento humano. Ao brincar, argumentam Alves e Vieira (2009, p. 43), a criança [...] apropria-se de formas complexas de organização e funcionamento psíquico presentes nas relações e forma sua personalidade como sujeito sócio-histórico. Para Vygotsky (1984), o indivíduo não é apenas um produto do seu meio, mas um sujeito ativo que interfere neste meio. Para ele, é muito importante no desenvolvimento da criança, a interação da mesma com o meio social que ela vive. O desenvolvimento depende do entrosamento da criança com a cultura produzida pelos indivíduos ao longo da história. É nesta interação com a cultura, que ela desenvolve funções psicológicas tipicamente humanas. Como afirma Vygotsky, o processo de desenvolvimento humano só ocorre pela mediação de processos de aprendizagem. O que evidencia a interdependência desses dois processos no movimento de transformação da espécie para gênero humano. O autor explica esse fenômeno pelo que chama de zona de desenvolvimento proximal. É na zona de desenvolvimento proximal que atuam as mediações sociais e pedagógicas. Para fazer isso intencionalmente, a ação educativa precisa conhecer o que o sujeito é capaz de realizar sozinho, sem a ajuda de outros sujeitos; ao que Vigotsky chama de zona de desenvolvimento real. Esse campo do fazer sem auxílio indica zonas de desenvolvimento potencial, ou seja, potencialidades que estão fecundas para se transformarem em zonas reais, mas que só acontecerão com o auxílio externo, com mediações e processos interativos de diferentes naturezas. A distância entre zona real e potencial constitui o que Vigotsky conceitua como zona proximal de desenvolvimento, as quais ele chama de: zona de desenvolvimento real, zona de desenvolvimento proximal e zona de desenvolvimento potencial. O conhecimento que a criança adquiriu de forma espontânea e sozinha chama-se de zona de desenvolvimento real. Por sua vez, o que a criança é capaz de 7

realizar sem o auxilio de outra pessoa indica ou oferece sinais de sua potencialidade, ou seja, aquilo que a criança tem capacidade para realizar com a mediação de outra pessoa, inclusive nas brincadeiras de faz-de-conta, caracterizando zona de desenvolvimento potencial. [...] aquilo que é zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento real amanhã, ou seja, aquilo que a criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã (VYGOTSKY, 1984, p. 98). Ao brincar, a criança internaliza a realidade fazendo relação com os adultos e estabelece relações com o mundo. A brincadeira de faz-de-conta é uma das maneiras de a criança se apropriar do mundo. A criança ao brincar de faz-de-conta, começa entender e atribuir significados aos objetos aos signos sociais e aos acontecimentos do mundo. Ao representar o papel do adulto, a criança consegue avaliar situações e diálogos do meio em que vive. Ela usa objetos com várias interpretações de modo simbólico, como cita Oliveira (2002, p. 161), codificam o conjunto de impressões que captam de outro, experimentando diversas possibilidades de ações no meio em que estão inseridas e diferenciando os elementos originais trazidos para a situação presente. Então, a partir do que a criança observa, ela interpreta, representa e assim atribui significado ao mundo, às relações que vivencia etc. No desenvolvimento infantil, a brincadeira de faz-de-conta tem um papel fundamental no aperfeiçoamento e evolução para a preparação da criança para uma nova etapa do desenvolvimento psíquico. Como afirma Elkonin (1998), a brincadeira de faz-de-conta age sobre o desenvolvimento psíquico e na formação da personalidade da criança. Na brincadeira de faz-de-conta, a criança já consegue, através da fala, representar de forma organizada o que aprendeu no convívio com o meio, apoiandose em objetos e ações externas, na qual a mente faz ação intermediária entre os objetos e a expressão do pensamento. O desenvolvimento funcional das ações lúdicas converte-se em desenvolvimento ontogenético, criando uma zona de evolução imediata dos atos mentais (ELKONIN, 1998, p. 415), nos quais se desenvolvem na brincadeira de faz-de-conta as atividades intelectuais. 8

A brincadeira de faz-de-conta é uma atividade essencial para o desenvolvimento psíquico da criança, visto que quando a criança brinca de faz-deconta, organiza internamente a imagem de mundo em sua consciência, reestruturando-a quando necessário. Como aborda Rossler (2006 p. 62), [...] a brincadeira infantil consiste numa atividade de importância fundamental para o desenvolvimento psíquico do indivíduo e, assim, para o desenvolvimento da própria sociedade, uma vez que por essa atividade desenvolvem-se nos indivíduos aquelas capacidades, aptidões e faculdades, físicas e psíquicas, que são pré-requisitos para o desenvolvimento do gênero humano, da humanidade. Quando a criança brinca de faz-de-conta, cria situações imaginárias, tendo capacidade de imitar essa situação com regras vivenciadas na sua cultura. A brincadeira de faz-de-conta é uma atividade além de psicológica, cultural. A criança na brincadeira de faz-de-conta expressa o que aprendeu da sua cultura e do aprendizado referente a outras culturas observadas. Através da brincadeira, a criança relaciona-se com as pessoas, com a cultura e com o mundo. Martins (2006, p. 48) expõe que [...] a brincadeira de papéis sociais não é uma atividade natural e espontânea, mas profundamente marcada pelas condições objetivas de vida da criança. Na qualidade de atividade principal, encerra relações com o mundo, o estabelecimento de relações próprias com a cultura e com as pessoas, contendo em sua essência a unidade dialética indivíduo/sociedade. Toda brincadeira é, ao mesmo tempo, uma atividade da criança, uma expressão de si, e igualmente um aspecto das relações sociais, uma expressão de condições objetivas de ação e desenvolvimento. No que se refere à brincadeira de faz-de-conta, percebe-se que o aprendizado ocorre de forma mais espontânea e prazerosa, pois é no momento das brincadeiras que as crianças refletem e fazem uso das diversas linguagens mediadas pelos professores. Identifica-se, nas observações realizadas na intervenção pedagógica, os papéis sociais assumidos pelas crianças, as quais tomaram para si papéis do seu cotidiano (pai, mãe, motorista, bombeiro, etc.), demonstrando suas percepções de vida e de mundo, comprovando-se que as crianças reproduzem cenas cotidianas de suas vidas. Isso revela a importância da representação da brincadeira realizada 9

pelas crianças. Em uma das brincadeiras de faz-de-conta, as crianças representaram os papéis de pai, mãe e de filhos. Veja o diálogo a seguir: Dandara: Eu vou ser a mãe! Fernanda e Gabi reclamaram um pouco, mas acabaram aceitando o que Dandara ordenava. Dandara: - O Léo vai ser o pai, eu a mãe, a Gabi e o Carlos vão ser os filhos, e a boneca vai ser nosso bebê. Uma breve análise do diálogo destacado permite observar a seriedade com que a criança interpreta os papéis assumidos. A partir do que a criança observa, ela interpreta com seriedade, representando os papéis mais presentes do seu dia-a-dia, como o de mãe, pai, etc. Segundo Oliveira (2002), ao representar o papel do adulto, a criança consegue avaliar situações de diálogos do meio em que vive, entendendo as necessidades e obrigações que os adultos possuem, crescendo com isso. A brincadeira de papéis influencia decisivamente o desenvolvimento global da criança. Ao brincar, ela aprende a ser e agir diante das coisas e das pessoas, pois é a partir das ações práticas realizadas que os processos internos se estruturam, orientando outras ações práticas, mais autônomas e complexas, que enriquecerão os processos internos e assim sucessivamente. Portanto, as brincadeiras infantis destacam-se no vasto campo social que circunscreve a vida da criança e que representa a base do desenvolvimento de todos os atributos e propriedades humanas. (Duarte, 2006, p. 39). Essa situação também foi observada numa brincadeira entre meninos que organizaram as cadeiras em fileiras, brincavam de motoristas e viajavam. Na organização da brincadeira, ocorreu o seguinte diálogo. Eduardo: - Vou sentar na primeira cadeira e ser o motorista. Bruna: - Eu também vou viajar. Eduardo: - Senta no ônibus Mateus: - Eu também quero. Eduardo: - Estamos viajando para são Paulo.. Assim, o papel social do motorista foi representado. Nesse movimento de representar, a criança desenvolve, constrói conhecimento de diferentes situações, 10

inclusive, reproduzindo e agindo conforme as regras sociais que o mesmo já conhece; tudo isso, coerente com a explanação de Duarte (2006, p. 92): A relação entre exterioridade e interioridade da personalidade manifesta-se também no fato que o indivíduo precisa adotar diferentes papéis sociais diante de diferentes situações, e isso são necessários para o seu desenvolvimento. No momento em que dirijo o automóvel, assumo o papel de motorista e devo agir de maneira condizente com os procedimentos, as regras e as normas desse papel. Outro fator essencial na brincadeira de faz-de-conta é a importância que os brinquedos possuem para auxiliar a criança a imaginar e fantasiar situações bem mais complexas que as vividas no meio familiar e escolar. Como exemplo, observase a fala que se iniciou quando uma criança estava brincando sozinha com um caminhão de bombeiro. Artur: - Mateus, vamos brincar de bombeiro? Mateus: - Sim, mas estão vamos pôr roupa de bombeiro. Artur: - É um incêndio, é um incêndio... Mateus: - Vamos entrar no caminhão e sair em disparada. O que se verifica nesse diálogo é que o brinquedo é parte importante e serve, em muitos casos, de apóio para uma maior qualidade da brincadeira de faz de conta, aumentando o potencial imaginativo da criança. A atividade principal é a atividade da qual dependem, de forma íntima, as principais mudanças psicológicas na personalidade infantil, observadas em certo período de desenvolvimento. É precisamente no brinquedo que a criança, no período pré-escolar, por exemplo, assimila as funções sociais das pessoas e os padrões de comportamento. (LENTIEV, 2001, p. 64 apud ALVES, 2009). Constata-se, dessa forma, que a brincadeira de faz-de-conta, apoia-se também no brinquedo, levando a criança a imaginar e criar uma nova experiência, saindo do seu contexto real para o mundo dos adultos. Assim, a brincadeira de faz-de-conta é um momento de aprendizado em que a criança tem a possibilidade de viver papéis, nos quais crianças e adultos estabelecem interações que possibilitam trocas, mediações, ocorrendo aprendizagem que, em última instância, fomentam processos de desenvolvimento humano. 11

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Através dos estudos realizados e principalmente por meio da intervenção pedagógica, concluí-se que as brincadeiras de faz-de-conta desenvolvem na criança a capacidade de criar um mundo imaginário, e através dele conhecer e interpretar o mundo, seus objetos e sua cultura. A criança tem assim condições de criar, recriar, descobrir, bem como viver o real e o imaginário, mesmo que de forma lúdica. Nas brincadeiras observadas, os papéis sociais assumidos pelas crianças são os mais diversos, demonstrando suas percepções de vida e de mundo, visto que as crianças reproduzem cenas cotidianas da vida das mesmas. Em outro momento, os papéis sociais representados ultrapassaram a família, e a representação ocorreu em papeis externos, vivenciados já no mundo social da criança. Também observa-se a seriedade com que a criança interpreta os papéis assumidos, isso permite uma internalização dos conhecimentos e informações existentes nas brincadeiras de fazde-conta. Assim a brincadeira de faz-de-conta é um momento de aprendizado, em que a criança tem a possibilidade de viver papéis. Crianças e professores estabelecem interações que possibilitam trocas, mediações, ocorrendo, desse modo, às interações de aprendizagem. Na brincadeira de faz-de-conta, a criança produz regras, vivências e os princípios que está percebendo na realidade. Portanto, é na esfera imaginativa, numa situação de faz-de-conta que a criança faz a criação dos planos da vida real e das motivações de sua própria vontade. Para que isso se concretize, entendem-se que as ações educativas devem estar voltadas para os interesses e as necessidades das crianças, as brincadeiras de faz-de-conta devem ser planejadas coerentes com cada fase de aprendizado das crianças. Em relação ao papel do professor frente às brincadeiras de faz-de-conta das crianças, destaca-se a importância do trabalho de mediação da brincadeira de fazde-conta enquanto situação de aprendizagem, pois é por meio de ações prazerosas 12

que a criança melhor se desenvolve e aprende, constituindo-se, dessa forma, o brincar como a sua principal atividade de aquisição do conhecimento. 13

4. REFERÊNCIAS ALVES, Solange Maria; VIEIRA3 Marilandi Maria Mascarello: Linguagem, Desenvolvimento Humano e Educação: o foco na educação da Infância. ;. Vamos brincar de quê? Reflexões sobre a brincadeira de papéis sociais como conteúdo da mediação pedagógica com a infância. ARCE, Alessandra ; DUARTE, Newton (org). Brincadeira de papéis sociais na educação infantil. Contribuições de Vygostsky, Leontiev e Elkonin. São Paulo, 2006. Craidy, Carmen; KAERCHER, Gládis E. Educação infantil pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001 ELKONIN, Daniel B. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fontes,1998. MARTINS, Ligia Márcia. A brincadeira de papéis sociais e a formação da personalidade. In.: ARCE, Alexandra. DUARTE, Newton (orgs) Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e e Elkonin. São Paulo:Xamã, 2006 (págs 27 a 50). OLIVEIRA, Zilma de Morais Ramos. Educação infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO (PPP): Centro de Educação Infantil Municipal (CEIM) do município de Chapecó, 2011. ROSSLER, João Henrique. A brincadeira de papéis sociais e a formação da personalidade. In.: ARCE, Alexandra. DUARTE, Newton (orgs) Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e e Elkonin. São Paulo:Xamã, 2006 (págs 51 a 62). VIGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. 14