Artigo de Revisão / Review Article. Microlitíase Renal: Correlação entre Ecografia e TC
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- Henrique Aveiro Delgado
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1 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXIII, nº 92, pág , Out.-Dez., 2011 Artigo de Revisão / Review Article Microlitíase Renal: Correlação entre Ecografia e TC Kidney Stones: Correlation between Ultrasound and CT Pedro Filipe Sousa 1, Alexandre Carneiro 1, Luís Alves 2, José Reis-Carneiro 3, Isabel Ramos 4 1 Interno Complementar do Serviço de Radiologia do Hospital de São João EPE, Porto, Portugal 2 Aluno de Doutoramento do Serviço de Higiene e Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, Portugal 3 Assistente hospitalar do Serviço de de Radiologia do Hospital de São João EPE, Porto, Portugal 4 Directora do Serviço de Radiologia do Hospital de São João EPE, Porto, Portugal Resumo Na ausência de sinais ecográficos inequívocos de litíase renal, alguns médicos radiologistas descrevem microlitíase renal quando observam focos hiperecogénicos milimétricos nos seios renais. Neste estudo avaliámos retrospectivamente o Valor Preditivo Positivo (VPP) da microlitíase renal em ecografia utilizando como referência a TC. Foram seleccionados 49 doentes, um dos quais com rim único, totalizando 97 rins. Em 82 rins foi relatado microlitíase em ecografia. A TC demonstrou litíase renal em 19 rins (VPP 23,17%). O VPP calculado para os rins associados a informação clínica positiva, a estudo ecográfico positivo, a informação clínica ou estudo ecográfico positivos e a informação clínica e estudo ecográfico positivos foi de 30,43%, 33,33%, 31,25% e 32%, respectivamente. Os valores de VPP para os indivíduos com informação clínica positiva ou estudo ecográfico positivo foram ligeiramente superiores mas mesmo naqueles com informação clínica e estudo ecográfico positivos não ultrapassa os 32%, valor manifestamente reduzido para um exame auxilidar de diagnóstico. Assim, na ausência de sinais ecográficos inequívocos de litíase renal, o médico radiologista não deverá concluir pela presença de microlitíase. Palavras-chave Litíase Renal; Microlitíase Renal; Ecografia; TC. Abstract In the absence of clear ultrasound signs of kidney stones, some Radiologists describe kidney microlithiasis when they observe milimetric hyperecogenic foci in the renal pelvis. In this study we retrospectively evaluated the positive predictive value (PPV) of kidney microlithiasis in ultrasound using as reference TC. 49 sick people had been selected, one of which with single kidney, totalizing 97 kidneys. Microlithiasis was reported in 82 kidneys in ultrasound. CT revealed kidney stones in 19 kidneys (PPV 23.17%). The VPP calculated for the kidneys associated with positive clinical information, positive ultrasound study, positive clinical information or ultrasound study and positive clinical information and was study was of 30,43%, 33.33%, 31.25% and 32%, respectively. The values of PPV for individuals with positive clinical information or positive ultrasouns study was slightly superior but even in those with positive clinical information and ultrasound study it does not exceed 32%, value manifestly low for an imaging study. Thus, in the absence of clear ultrasound signs of kidney stones, the Radiologist shall not conclude for the presence of microlithiasis. Key-words Kidney Stones; Kidney Microlithiasis; Ultrasound; CT. Introdução A nefrolitíase é uma doença comum com uma prevalência estimada em aproximadamente 10% nos Estados Unidos, mais frequente em indivíduos do sexo masculino (12%) do que do sexo feminino (6%) [1, 2]. Recebido a 27/07/2010 Aceite a 11/11/2010 Os doentes sintomáticos apresentam geralmente dor lombar, infecção e/ou hematúria. Os cálculos renais milimétricos não obstrutivos raramente produzem sintomas. A radiografia abdominal simples, a urografia intravenosa, a ecografia e a tomografia computorizada (TC) são alguns dos métodos imagiológicos utilizados no estudo desta patologia. A tomografia computorizada é o método de imagem mais sensível e específico[3,4]. A ecografia, embora seja um dos métodos mais frequentemente ARP 31
2 utilizados na avaliação inicial, apresenta valor limitado neste contexto[5]. Na ausência de sinais ecográficos inequívocos de litíase renal, nomeadamente cone de sombra posterior, alguns médicos radiologistas descrevem microlitíase renal quando observam focos hiperecogénicos milimétricos nos seios renais, geralmente com dimensões inferiores a 5mm. Neste estudo avaliámos retrospectivamente o Valor Preditivo Positivo (VPP) da microlitíase renal em ecografia utilizando como referência a TC. Material e Métodos Neste estudo foram incluídos os doentes que realizaram ecografia no Serviço de Radiologia do Hospital de São João, EPE, entre Janeiro de 2007 e Dezembro de 2008, com descrição de microlitíase renal no respectivo relatório. Foram excluídos os doentes com estudo TC abdominal prévio, cuja reavaliação poderia originar vieses na realização da ecografia, e seleccionados os doentes com TC realizado posteriormente, para comparação com os achados ecográficos. Em cada doente foi registada a informação clínica referida na requisição do estudo ecográfico. Os dados recolhidos relativamente ao estudo ecográfico renal, para cada rim, foram litíase renal (classificada em ausente, microlitíase ou litíase) e hidronefrose (presente ou ausente). Neste estudo considerámos microlitíase sempre que este termo foi relatado pelo médico radiologista e litíase sempre que foram referidos cálculos, as suas dimensões e/ou localização. Foi calculado o tempo decorrido entre a realização da ecografia e da TC. Os estudos TC foram revistos por dois dos autores, que avaliaram a presença de litíase renal e o número e dimensão (maior diâmetro) dos cálculos renais. Tendo em conta que os cálculos com maior diâmetro superior a 5 mm apresentam geralmente cone de sombra acústico e deverão, por isso, ser descritos como litíase e não como microlitíase, foi analisado um subgrupo de rins (subgrupo TC<5mm). Neste subgrupo foram excluídos os rins cuja TC evidenciou cálculos com dimensão superior a 5 mm. O VPP foi calculado para a totalidade dos rins e para os rins associados a informação clínica positiva, a estudo ecográfico positivo, a informação clínica ou estudo ecográfico positivos e a informação clínica e estudo ecográfico positivos, utilizando como referência a TC. Esta análise foi repetida para o subgrupo TC<5mm. No presente trabalho considerámos informação clínica positiva a cólica renal, a hematúria e antecedentes de litíase renal ou de dilatação do sistema excretor, e estudo ecográfico positivo a litíase renal contralateral e a hidronefrose. A microlitíase renal contralateral não foi considerada achado ecográfico positivo, atendendo à ausência de evidência de litíase renal nestes casos. As variáveis categóricas apresentam-se como contagem (%) e as variáveis contínuas são descritas pela média e respectivo desvio-padrão (DP). O VPP foi calculado como a proporção de indivíduos que apresentam microlitíase descrita no relatório ecográfico com diagnóstico confirmado por TC. Resultados A amostra era composta por 49 doentes (28 do sexo masculino e 21 do sexo feminino), um dos quais com rim único. A média de idade à data da realização da ecografia era 59.4 anos (idade mínima 33 anos, idade máxima 89 anos e desvio padrão 14,9 anos). Dos 97 rins em análise, foi descrita microlitíase no relatório das ecografias em 82. Não tivemos acesso à informação clínica em 11 doentes, correspondendo a 19 rins com microlitíase renal (Quadro I). A informação clínica que motivou a realização do estudo ecográfico foi principalmente a sintomatologia relacionada com a litíase renal, nomeadamente cólica renal (46,9%) e hematúria (6,1%) e antecedentes de litíase renal (4,1%) e suas complicações (hidronefrose 2%). Um número significativo de doentes realizou ecografia por motivos não relacionados com litíase renal, designadamente insuficiência renal aguda não obstrutiva (1), neoplasia não urológica (2), neoplasia urológica (1), avaliação prétransplante renal (1), doença de Addison (1), diabetes mellitus (1), epilepsia (1), incontinência urinária (1). Em 11 doentes não foi possível aceder à informação clínica (requisições não electrónicas). Nos 82 rins com microlitíase renal identificou-se ecograficamente hidronefrose homolateral em 14. A avaliação ecográfica do rim contralateral evidenciou litíase em 5 casos, microlitíase em 66 casos, ausência de litíase em 10 casos e hidronefrose em 14 casos (Quadro II). Quadro I - Características de base dos doentes (n=49 doentes) Sexo masculino 28 (57,1) Informação clínica n (%) Cólica renal 23 (46,9%) Hematúria 3 (6,1%) História de hidronefrose 1(2%) História de litíase renal 2 (4,1%) Outros 9 (18,4%) Não disponível (ND) 11 (22,5%) Quadro II - Ecografia renal (n=82 rins) Litíase renal contralateral (e 5mm) Microlitíase renal contralateral Sem litíase renal contralateral t aspectos não aplicáveis em doente com rim único 5/81 t 66/81 t 10/81 t Hidronefrose homolateral 14/82 Hidronefrose contralateral 14/81 t 32 ARP
3 Quando combinámos a informação clínica com os achados do estudo ecográfico, e excluindo os doentes a cuja informação clínica não tivemos acesso, verificámos que 76,2% (48/63) dos rins com descrição de microlitíase estavam associados a informação clínica positiva e/ou estudo ecográfico positivo. Decorreram em média 5,8 meses entre o estudo ecográfico e a TC helicoidal (0 a 30 meses). A avaliação dos estudos TC demonstrou litíase renal em 19 rins (VPP 23,17%) (Quadro III). No subgrupo TC<5mm apenas 12 rins apresentaram litíase em TC (VPP 16%). Os rins com litíase confirmada em TC possuíam entre 1 e 5 focos litiásicos (média 1,9), cujas dimensões (maior diâmetro) variavam entre 1 e 12mm (média 4,7mm). O VPP calculado para os rins associados a informação clínica positiva, a estudo ecográfico positivo, a informação clínica ou estudo ecográfico positivos e a informação clínica e estudo ecográfico positivos foi de 30,43%, 33,33%, 31,25% e 32%, respectivamente. A mesma análise aplicada ao subgrupo TC<5mm resultou nos seguintes valores: 21,95%, 21,74%, 21,43% e 22,73%. Em três casos os focos hiperecogénicos incialmente interpretados como microlitíase correspondiam a calcificações vasculares (Figura 1) e a calcificação parietal em cisto renal (Figura 2). Discussão As publicações iniciais descreviam uma elevada sensibilidade e especificidade da ecografia no estudo da Fig. 1 - Calcificações vasculares em artéria renais segmentares ao nível do hilo renal Quadro III - Valor Preditivo Positivo (VPP) TC+ TC- VPP (%) Total ,17 Informação clínica positiva ,43 Estudo ecográfico positivo ,33 Informação clínica positiva ou estudo ecográfico positivo ,25 Informação clínica positiva e estudo ecográfico positivo ,0 Subgrupo TC<5mm ,0 Informação clínica positiva ,95 Estudo ecográfico positivo ,74 Informação clínica positiva ou estudo ecográfico positivo ,43 Informação clínica positiva e estudo ecográfico positivo ,73 ARP 33
4 Fig. 2 - Calcificação parietal milimétrica em cisto renal (Bosniak II) litíase renal, cujo valor podia ir até até 96% [6]. No entanto esses estudos comparavam a ecografia à radiografia abdominal simples e à tomografia convencional, exames imagiológicos que após o aparecimento da TC se revelaram menos sensíveis do que se acreditava até então[7]. Em 2002, Fowler concluiu que a ecografia apresenta uma valor limitado na avaliação de litíase renal [5]. No seu trabalho observou uma sensibilidade e especificidade de 24% e 90%, respectivamente. Os cálculos detectados apresentavam uma dimensão média de 7.1 mm +/- 1.2mm. A sensibilidade para cálculos de pequenas dimensões ( mm) e de médias dimensões ( mm) foi de 13% e 26%, respectivamente. No nosso trabalho observamos que 76% dos rins com microlitíase renal em ecografia (excluindo os 19 doentes sem informação clínica disponível) estavam associados a informação clínica e/ou achados ecográficos relacionados com litíase renal, nomadamente dor tipo cólica, hematúria, dilatação do sistema excretor ou litíase renal inequívoca no rim contralateral, sugerindo que estes aspectos poderão ter induzido o médico radiologista a descrever microlitíase, na ausência de sinais inequívocos de litíase renal. Este facto seria irrelevante em si mesmo se não estivesse associado a potenciais complicações graves, nomeadamente interrupção precoce da avaliação do doente, realização de estudos imagiológicos adicionais sem indicação, criação de ansiedade e desconfiança no doente e promoção de conflitos entre médicos radiologistas e os médicos prescritores dos exames auxiliares de diagnóstico. No plano teórico é possível, por exemplo, um doente com dor lombar intensa secundária a patologia herniária discal lombar e um doente com hematúria secundária a processo neoformativo do urotélio verem os seus diagnósticos finais e respectivas terapêuticas adiados apenas porque o médico radiologista entendeu ser relevante descrever microlitíase renal e o médico assistente, consequentemente, atribuíu a clínica à microlitíase descrita. Por outro lado, em doentes assintomáticos, a descrição de microlitíase renal poderá levar o médico assistente a solicitar a realização de estudo TC para melhor caracterização da suposta litíase renal, expondo o doente a radiação desnecessária. A credibilidade dos médicos radiologistas é posta em causa quando os resultados são inconsistentes e incoerentes, quer quando um médico radiologista descreve microlitíase e outro não, quer quando o médico radiologista vai alternando entre presença e ausência de litíase em exames seriados. Ainda que de facto exista litíase renal milimétrica, neste estudo em 23,17% dos casos, ela não terá qualquer abordagem terapêutica específica nem alterará de forma relevante o prognóstico do doente. O VPP que observámos foi de 23,17% para a totalidade dos doentes. No entanto no subgrupo TC<5mm o VPP é ainda inferior, com um valor calcudo em 16%. A título comparativo podemos referir o papel da ecografia no diagnóstico da carcinoma da próstata: apesar de um VPP de 44% [8], aproximadamente o dobro do VPP observado no nosso estudo, é um exame imagiológico cujas limitações são inequivocamente reconhecidas pela comunidade médica. Os valores de VPP para os indivíduos com informação clínica positiva ou estudo ecográfico positivo foram ligeiramente superiores, o que pode ser explicado pelo aumento na prevalência real de litíase nestes doentes. Contudo, mesmo naqueles com informação clínica e estudo ecográfico positivos, a presença de litíase renal só é confirmada em aproximadamente 1/3 dos doentes com microlitíase descrita no relatório ecográfico. Como qualquer exame auxiliar de diagnóstico, também na ecografia renal existem falsos positivos, nomeadamente calcificações vasculares, calcificações parietais de cistos e interfaces gordura seio renal com as artérias renais, entre outros, aspectos que o médico radiologista deve ter sempre presente durante a sua realização. A primeira limitação deste estudo relaciona-se com o facto de ser retrospectivo, com as limitações já conhecidas em estudos desta natureza. O tempo decorrido entre a ecografia e a TC (média 5,8 meses) limita igualmente a presente 34 ARP
5 avaliação, sendo teoricamente aceitável a hipótese de resolução de focos litiásicos milimétricos durante esse período, reduzindo artificialmente o VPP calculado. Neste intervalo de tempo é igualmente possível ocorrer aumento dimensional dos cálculos, reduzindo o VPP calculado para o subgrupo TC<5mm. A ecografia apresenta um papel limitado na avaliação da litíase renal milimétrica. Assim, na ausência de sinais ecográficos inequívocos de litíase renal, o médico radiologista não deverá concluir pela presença de microlitíase. Após discussão com o médico assistente deverá optar-se entre terminar o estudo imagiológico a este nível ou realizar avaliação complementar por TC renal. Bibliografia 1. Johnson, C. M.; Wilson, D. M.; O Fallon, W. M.; Malek, R. S.; Kurland, L. T. - Renal stone epidemiology: a 25-year study in Rochester, Minnesota. Kidney Int., 1979, 16(5): Stamatelou, K. K.; Francis, M. E.; Jones, C. A.; Nyberg, L. M.; Curhan, G. C. - Time trends in reported prevalence of kidney stones in the United States: Kidney Int., 2003, 63(5): Smith, R. C.; Rosenfield, A. T.; Choe, K. A. et al - Acute flank pain: comparison of non-contrast-enhanced CT and intravenous urography. Radiology, 1995, 194: Yilmaz, S.; Sindel, T.; Arslan, G. et al - Renal colic: comparison of spiral CT, US and IVU in the detection of ureteral calculi. Eur Radiol, 1998, 8: Fowler, K. A. B.; Locken, J. A.; Duchesne, J. H.; Williamson, M. R. - US for Detecting Renal Calculi with Nonenhanced CT as a Reference Standard. Radiology, 2002, 222: Middleton, W. D.; Wylie, J. D.; Lawson, T. L.; Foley, W. D. - Renal calculi: sensitivity for detection with US. Radiology, 1988, 167: Levine, J. A.; Neitlich, J.; Verga, M.; Dalrymple, N.; Smith, R. C. - Ureteral calculi in patients with flank pain: correlation of plain radiography with unenhanced helical CT. Radiology, 1997, 204: Kuligowska, E.; Barish, M. A.; Fenlon, H. M.; Blake, M. - Predictors of Prostate Carcinoma: Accuracy of Gray-Scale and Color Doppler US and Serum Markers. Radiology, 2001, 220: Correspondência Pedro Filipe Sousa Serviço de Radiologia do Hospital de São João EPE Alameda Prof Hernani Monteiro Porto pedro_sousa22@yahoo.com ARP 35
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