A CONSTRUÇÃO DO NÚMERO PELA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
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- Olívia Coradelli Quintão
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1 A CONSTRUÇÃO DO NÚMERO PELA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL Carine Almeida Silva Noleto Universidade de Brasília, Brasil Cristiano Alberto Muniz Universidade de Brasília, Brasil Resumo: Este texto no campo da Educação Matemática inclusiva tem como objetivo compreender aspectos da aprendizagem dos processos mentais na construção do conceito de número pela criança com diagnóstico de Deficiência Intelectual em fase de alfabetização. O sujeito de pesquisa é uma criança de dez anos de idade, com diagnóstico de Deficiência Intelectual, matriculada no terceiro ano do ensino fundamental, em uma escola pública do Distrito Federal. Trata-se sobre a didática da matemática no que tange à Teoria dos Campos Conceituais e suas possibilidades para o ensino e a aprendizagem. As bases teóricas da pesquisa fundamentam-se, nos estudos sobre alfabetização matemática, realizados por Danyluk (1998); no conceito de número e sua construção pela criança, de Piaget (1981) e Kamii (2012). Sobre os processos psicológicos de aprendizagem utiliza-se as contribuições de Vergnaud (1990, 1993, 2009, 2014) com a Teoria dos Campos Conceituais, e Vigotski (1997, 2003, 2004, 2009), tendo como fundamento para a análise a teoria histórico-cultural. A pesquisa trata sobre a aprendizagem matemática e os processos mentais na construção do conceito de número. É um estudo de caso de abordagem qualitativa. Palavras-chave: Construção do conceito de número. Deficiência Intelectual. Educação Matemática. Apresentação Pensar a sobre o ensino e a aprendizagem da matemática na perspectiva da educação inclusiva e especificamente sobre a criança com deficiência intelectual é uma necessidade que se apresenta atual e necessária e se mostra fundamental tanto para professores atuantes nas escolas, quanto para pesquisadores em educação. A questão fundamental, da qual se delineou toda a pesquisa foi: Como compreender processos mentais de aprendizagem do número, já que se tratam de processos internos e subjetivos? Assim, a pesquisa em desenvolvimento pretende explicitar e analisar os processos mentais de aprendizagem acima citados, na
2 construção de significados e sentidos na alfabetização matemática e mais especificamente na construção do conceito de número. Desenvolveu-se, então, o objetivo geral: analisar processos mentais desenvolvidos por uma criança com deficiência intelectual na construção do conceito de número em fase de alfabetização. Para tanto assume-se que os processos mentais essenciais à construção do conceito de número, são, segundo Lorenzato (2011): correspondência, comparação, classificação, sequenciação, seriação, inclusão e conservação. Referencial teórico-conceitual Vergnaud (1990, 1993, 2009, 2014), Vigotski (1997, 2003, 2004, 2009) e Piaget (1981) são os autores que sustentam as ideias apresentadas neste trabalho. A articulação conceitual entre as teorias desses autores é o que permite transitar entre a construção de conceitos, o desenvolvimento psicológico atípico da criança com Deficiência Intelectual e os processos envolvidos na construção do conceito de número. Pode parecer pouco convencional a articulação entre a Teoria dos Campos Conceituais, a teoria piagetiana e a teoria histórico-cultural, como aporte teórico-conceitual da pesquisa, já que são teorias de diferentes perspectivas teóricas. Porém trata-se de um posicionamento epistemológico cuidadoso em que não se sobrepõe uma teoria à outra. É um trabalho que trata a respeito de como a criança constrói o número do ponto de vista da mobilização de esquemas mentais e dos caminhos psicológicos envolvidos. Assim, pensando as bases epistemológicas essenciais a esta pesquisa foi feita a opção pela Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud (1990, 1993, 2009, 2014) com conceitos de esquemas, situação, invariantes operatórios, e a própria concepção de conceito e de conceitualização. A escolha pela utilização da Teoria dos Campos Conceituais ocorre pelo vislumbre de possibilidades de explicitação dos esquemas mentais envolvidos na construção conceitual por uma criança com déficit cognitivo. Crianças com diagnóstico de deficiência, sob a ótica da Teoria dos Campos Conceituais perdem o rótulo de crianças com dificuldades. Isso porque suas produções são analisadas e interpretadas no esforço de compreender o seu processo de conceitualização, as mobilizações de esquemas que são inerentes à cada criança. De acordo com Vergnaud, é possível ao professor e à criança estabelecer essa relação processual da aprendizagem, na qual não há a taxação de certo e errado. Há o trabalho
3 pedagógico que deve oportunizar as situações-problemas significativas para a criança, o esforço interpretativo das produções da criança e há a observação dos gestos, das falas, dos diálogos que fazem parte do processo. Adotou-se, também, a perspectiva histórico-cultural, especialmente com Vigotski (1997, 2003, 2004, 2009) e seus conceitos de zona de desenvolvimento iminente, mediação semiótica e funções psicológicas superiores para, junto com as proposições de Vergnaud, traçar o aporte dos processos mentais de aprendizagem por uma visão que valorize a criança como protagonista de suas produções. No caso desta pesquisa, esse protagonismo ocorre na medida em que ela exerça seu direito de ser um Ser matemático (MUNIZ, 2015), e no esforço de enxergar o potencial da criança, independente do diagnóstico de deficiência. A teoria de Piaget (1981) e os estudos de Kamii (2012) são abordados no que concerne ao conceito de número e sua construção pela criança. De acordo com Piaget, o número é uma síntese da ordem e da inclusão hierárquica, dois tipos de relações elaboradas entre os objetos, por abstração reflexiva. Sobre a ordem, fica claro que não é alinhar objetos em um determinado arranjo espacial e, sim, uma ordem que garanta a correta quantificação dos objetos. Não é necessário que a criança coloque os objetos literalmente numa ordem espacial [...]. O importante é que possa ordená-los mentalmente (KAMII, 2012, p. 22). Estão presentes no estudo o trabalho de Danyluk (1998) tratando sobre a alfabetização matemática e suas manifestações na escrita infantil. Nesta pesquisa, o termo alfabetização é assumido, em sentido lato, referindo-se ao direito à alfabetização como a habilidade de ler o mundo e suas diversas linguagens, habilidade essa que permite ao sujeito transitar entre ambientes diversos e que lhe dá o poder de comunicar-se, de ser compreendido e compreender, de atuar criticamente e ser ator dos contextos em que estiver inserido. A respeito da linguagem que se utiliza para escrever e ler a matemática e, assim, dar ao termo alfabetização matemática um sentido que seja completo, Danyluk expressa que: A matemática tem uma linguagem de abstração completa. Como qualquer sistema linguístico, a ciência matemática utiliza-se de signos para comunicar significados matemáticos. Assim, a leitura da linguagem matemática ocorre a partir da compreensão e da interpretação dos signos e das relações implícitas naquilo que é dito de matemática. (DANYLUK, 1998, p. 19)
4 Diálogo entre as teorias I Simpósio Latino-Americano de Didática da Matemática A Teoria dos Campos Conceituais entende que a conceitualização é elemento central da teoria, e ressalta que é a ação na situação que dá origem à elaboração conceitual, ou seja, a conceitualização não é dada no processo de aprendizagem e, sim, construída. Desse modo, os principais conceitos que constituem a Teoria dos Campos Conceituais são: o conceito de esquema, de situação, de invariante operatório (teorema em ação e conceito em ação), e o conceito de campo conceitual. Campo conceitual é, para Vergnaud (2009), um conjunto informal e heterogêneo de problemas, de situações, de conceitos, relações, conteúdos e operações de pensamento conectados uns aos outros e provavelmente entrelaçados. Ao propor que se explore um campo conceitual, em vez de um conceito, a Teoria dos Campos Conceituais demonstra que um conceito nunca está isolado, está sempre inserido em um contexto, e envolve diversos conceitos na situação, tecendo uma rede conceitual. Assim sendo, de acordo com a teoria, um Conceito é composto de situação, invariantes e a representação simbólica. Conhecida por (C = S, I, R). Vergnaud (2009), em um texto que trata sobre o que é aprender, dá um exemplo sobre bombas de água de caminhões do tipo betoneira. E diz que um dos técnicos de manutenção das bombas fica doente e é hospitalizado. Na oficina, nenhum dos outros técnicos sabe consertar certo tipo de defeito, que era a função deste técnico que está ausente. Seus colegas vão ao hospital, ele explica o melhor que pode, e ainda assim eles não conseguem consertar o referido defeito. Ao se restabelecer e voltar ao trabalho, o técnico volta a consertar, sem problemas, os defeitos. A esse exemplo o autor chama de forma operatória do conhecimento, o que é usualmente conhecido por competência. A competência diz respeito a todos os registros de atividades, gestos, falas, raciocínio. O técnico, ao conseguir realizar um conserto que outros não sabiam, dispôs de conceitos em ação que lhe permitiram buscar a informação pertinente e ignorar outros aspectos do mecanismo e do seu funcionamento (VERGNAUD, 2009, p. 18). Portanto, pode-se dizer que a forma predicativa do conhecimento que o técnico possuía sobre bombas de água não atingiu sua forma operatória. Por esse motivo, ele não conseguiu comunicar seu saber-fazer aos colegas quando estava no hospital. Isso ilustra a diferença entre o saber-fazer e a capacidade de explicitar com clareza esse fazer. Trazendo para o campo pedagógico, Vergnaud esclarece que é função do professor reconhecer em seus
5 alunos quais conhecimentos utilizam corretamente sem conseguir explicar e quais seus alunos já explicitam. Vergnaud chama a atenção para o fato de que na ação está sempre presente a conceitualização, mesmo que não seja explicitada e que o sujeito não tenha consciência, sendo os gestos detentores de diversas operações de pensamento. Sobre como ocorre a aprendizagem, a teoria de Vergnaud (2009) defende que o processo de ensino e aprendizagem passa por três questões essenciais: [...] pelas diversas situações experienciadas pelo sujeito; pela vivência em sala de aula de situações com características semelhantes àquelas que os sujeitos, normalmente, desenvolvem novas formas de atividades, sozinhos ou com ajuda; e pelas análises das atividades em uma situação. (SANTANA, 2010, p. 45) Pode-se pensar, a partir disso, acerca da definição de esquema. Estudiosos da Teoria dos Campos Conceituais, ao falar sobre esquema, relembram que essa é uma grande contribuição de Piaget que foi ressignificada por Vergnaud, ao ampliar a noção de esquema para a relação indivíduo-situação. O esquema pode ser definido a partir de duas dimensões: inicialmente como a organização invariante da atividade do sujeito para uma classe de situações; e a segunda dimensão de esquema formada por quatro componentes: Um objetivo, sub objetivos e antecipações. Regras em ação de tomada de informação e de controle. Invariantes operatórios: conceitos em ação e teoremas em ação. Possibilidades de inferência em situação. (VERGNAUD, 2009, p. 21) Sobre as definições de esquema, é a organização que é invariante, e não os procedimentos. Então, se pode observar os esquemas a partir de uma classe de situações, e não a partir de uma única situação isolada. O que se observa em relação ao esquema, não são os procedimentos, mas as atividades de pensamento, a organização. Acerca da segunda definição, o objetivo é imprescindível na organização da atividade. Desdobram-se em subobjetivos e são eles que permitem saber o que se deve fazer, oportunizando as antecipações. As regras de ação, de controle e de tomada de informação, são as responsáveis pela conduta da atividade. São regras geradoras do esquema. Os invariantes operatórios são essenciais e se constituem por conceitos em ação e teoremas em ação. Os conceitos em ação utilizam as informações pertinentes na ação para a tomada de decisão em relação à utilização do teorema em ação tido como verdadeiro. E o teorema é tido como a proposição verdadeira na ação em situação:
6 [...] os conhecimentos explícitos não formam senão a parte visível do iceberg da conceitualização: sem a parte oculta, formada pelos invariantes operatórios, esta parte visível nada seria. Vice-versa, não se sabe falar dos invariantes operatórios integrados nos esquemas, senão com a ajuda de conhecimentos explícitos: proposições, funções proposicionais, argumentosobjetos. (VERGNAUD, 1990, p. 145) De acordo com a teoria é possível ao professor e à criança estabelecer essa relação processual da aprendizagem, na qual não há a taxação de certo e errado. Há o trabalho pedagógico que deve oportunizar as situações problemas significativas para a criança, o esforço interpretativo das produções da criança e há a observação dos gestos, das falas, dos diálogos que fazem parte do processo. Sobre a atuação do professor, pode-se perceber uma convergência entre as teorias de Vergnaud e Vigotski. Em ambas há o posicionamento de que o professor deve atuar mediando através da confrontação em situações práticas e teóricas, considerando o aspecto essencial sociocultural que faz parte da vida escolar de cada criança. Articula-se, assim, de acordo com Fávero tanto com a noção de esquema e de campo conceitual, proposto por Vergnaud; como com a noção de zona de desenvolvimento proximal, proposta por Vygotsky (FÁVERO, 2005, p. 286). Adotou-se a perspectiva histórico-cultural, especialmente com Vigotski (1997, 2003, 2004, 2009) para, junto com as proposições de Vergnaud, traçar o aporte dos processos mentais de aprendizagem por uma visão que valorize a criança como protagonista de suas produções. No caso desta pesquisa, esse protagonismo ocorre na medida em que ela exerça seu direito de ser um Ser matemático (MUNIZ, 2015), e no esforço de enxergar o potencial da criança, independente de diagnóstico de deficiência. O volume 5 da coletânea Obras Reunidas, de Vigotski, sem tradução em língua portuguesa, é intitulado Fundamentos da Defectologia, no qual o autor defende que os problemas envolvendo pessoas com deficiência são mais de natureza histórico-social que de natureza biológica, e que o estudo do desenvolvimento das crianças ditas anormais demonstra fortes indícios de aprendizagens por caminhos diferentes, e por vezes mais complexos, como forma de compensação ao defeito : Provavelmente, a humanidade vencerá mais cedo ou mais tarde a cegueira, a surdez e o retardo mental, porém, vencerá antes social e pedagogicamente, do que médica e biologicamente. (...) Está errado enxergar na anormalidade somente a doença. Numa criança anormal vemos somente o defeito e por isso o nosso estudo sobre a criança e o enfoque desse estudo limitam-se com a constatação daquele percentual de cegueira, de surdez ou de perversão do gosto. Nós paramos nos zolotnik (ouros) da doença e não percebemos os pud (quilos) de saúde. Percebemos os grãozinhos de defeitos e não
7 percebemos as áreas colossais, ricas de vida que as crianças possuem. (VIGOTSKI, 2006 apud PRESTES, 2010, p. 191) Esse conceito de que a deficiência é um fenômeno tanto social quanto biológico e que, portanto, a pessoa com esse diagnóstico pode transpor barreiras sociais impostas, por meio da educação, é um conceito caro a esta pesquisa. Vigotski apontou, nos primeiros trinta anos do século XX, uma visão sobre a deficiência que ainda hoje é profundamente atual e de difícil aceitação por alguns segmentos da sociedade, pelo mercado de trabalho, e, inclusive, pela educação, visto que a política de educação inclusiva, em nosso país, por exemplo, é recente. Como pode ser visto nas próprias palavras de Vigotski: Possivelmente, não está longe o dia em que a pedagogia se envergonhará do próprio conceito criança com deficiência para designar alguma deficiência de natureza insuperável. O surdo falante, o cego trabalhador participantes da vida comum em toda sua plenitude - não sentirão mais a sua insuficiência e nem darão motivos para isso aos outros. Está em nossas mãos fazer com que as crianças surdas, cegas e com retardo mental não sejam deficientes. Então, desaparecerá o próprio conceito de deficiente, o sinal justo da nossa própria deficiência. ((VIGOTSKI, 2006, p. 40 apud PRESTES, 2010, p. 47) A perspectiva histórico-cultural postula que o ensino ocorra a partir do conceito de mediação semiótica e, aqui neste projeto, se aceita a mediação como a relação desempenhada pelos sistemas de signos entre as pessoas e o meio. Os instrumentos e os sistemas de signos são socialmente construídos. A mediação dos signos constitui, assim, a mediação semiótica. De acordo com Vergnaud (1993), a mediação semiótica é a sustentação da aprendizagem e, para Vigotski (2009), as funções psicológicas superiores desenvolvem-se a partir da mediação semiótica. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos (VIGOTSKI, 2003, p. 75). Assim, a organização do trabalho pedagógico deve acontecer pensando na mediação. Ao tratar sobre desenvolvimento, Vigotski contrapôs os estudos existentes à época. Para o autor, desenvolvimento e aprendizagem não são concomitantes, apesar de coexistirem. O desenvolvimento ocorre a partir da necessidade, sendo o desenvolvimento mais tardio. Aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas. (VIGOTSKI, 2003, p.118) Em decorrência dessa constatação, fala-se das zonas de desenvolvimento. Há a zona de desenvolvimento real, ou atual, e a zona de desenvolvimento conhecida por proximal ou
8 imediata. Neste trabalho, será adotado o termo zona de desenvolvimento iminente, pois concordando com Prestes (2010) acerca do significado mais adequado ao conceito de Vigotski: Portanto, defendemos que a tradução que mais se aproxima do termo zona blijaichego razvitia é zona de desenvolvimento iminente, pois sua característica essencial é a das possibilidades de desenvolvimento, mais do que do imediatismo e da obrigatoriedade de ocorrência, pois se a criança não tiver a possibilidade de contar com a colaboração de outra pessoa em determinados períodos de sua vida, poderá não amadurecer certas funções intelectuais e, mesmo tendo essa pessoa, isso não garante, por si só, o seu amadurecimento. (PRESTES, p. 173) Portanto, o desenvolvimento, para Vigotski, está no campo das possibilidades e, desta forma, cabe à mediação proporcionar que o desenvolvimento iminente se torne o desenvolvimento atual ou real. Prestes (2010) relata que, em relação aos estudos realizados sobre a zona de desenvolvimento iminente, há uma diferença de dois anos entre as duas zonas (real e iminente), e o trabalho pedagógico deve se instituir na zona de desenvolvimento iminente e não na zona de desenvolvimento real. Assim como na Teoria dos Campos Conceituais, em que o trabalho interpretativo do professor tem a função de compreender a mobilização de esquemas e as conceitualizações, na teoria histórico-cultural, cabe ao professor distinguir em qual zona de desenvolvimento a criança se encontra, tanto no aspecto cognitivo, quanto afetivo, pois, assim, se tornam possíveis a identificação e a mediação na zona de desenvolvimento iminente. Desse modo, concorda-se com Vigotski, que inicialmente se deve identificar o desenvolvimento atual da criança, depois a zona de seu desenvolvimento iminente, as funções que já se encontram e o amadurecimento, que possivelmente passarão para a zona de desenvolvimento real: Pesquisas mostram que o nível de desenvolvimento da criança define-se, pelo menos, por essas duas grandezas e que o indicador da zona de desenvolvimento iminente é a diferença entre esta zona e o nível de desenvolvimento atual. Essa diferença revela-se num grau muito significativo em relação ao processo de desenvolvimento de crianças com retardo mental e ao de crianças normais. A zona de desenvolvimento iminente em cada uma delas é diferente. (VIGOTSKI, 2004, p. 485). A aprendizagem é entendida com um caráter subjetivo, um processo único que é construído por cada criança. Para corroborar a citação acima, o autor afirma que a zona de desenvolvimento de cada criança é diferente. Ao considerar os aspectos envolvidos na aprendizagem, uma importante categoria de González Rey (2002), que é o sentido subjetivo
9 no processo de aprendizagem, pode ser articulada ao conceito de mediação semiótica de Vigotski (2009). As dimensões subjetivas, que se revelam no processo de aprendizagem, perpassam pela mediação e são a base para a formação de conceitos. Pois, como explica o autor: O sujeito que aprende define-se não pelas capacidades e processos cognitivos envolvidos no processo de aprender, mas pelas configurações subjetivas que explicam o desenvolvimento dos recursos do aluno nesse processo (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 36). Percurso Metodológico A proposição da pesquisa apresentada é analisar processos mentais desenvolvidos por uma criança com deficiência intelectual na construção do conceito de número em fase de alfabetização. É um estudo que trata de processos de aprendizagem, que por si só são processos complexos e envolvem diversos aspectos, sendo assim foi feita a opção pela abordagem qualitativa, por demonstrar-se adequada às subjetividades envolvidas no processo de aprendizagem. É uma pesquisa que se caracteriza como estudo de caso, por se propor a aprofundar a investigação com apenas uma criança num contexto educacional específico, buscando construir a análise a partir da compreensão da percepção da própria criança acerca de suas experiências de aprendizagem numérica. São utilizados na metodologia da pesquisa, aspectos da Epistemologia Qualitativa, que traz três princípios essenciais para o desenvolvimento do método que tem por base o estabelecimento de relações dialógicas com a criança vista como sujeito que aprende. O primeiro princípio é o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, que entende o conhecimento como sendo um processo de construção que encontra sua legitimidade na capacidade de produzir, permanentemente, novas construções no curso da confrontação do pensamento do pesquisador com a multiplicidade de eventos empíricos coexistentes no processo investigativo. (GONZÁLEZ REY, 2015, p. 7). O segundo princípio da Epistemologia Qualitativa é a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico. Tal princípio implica em considerar a pesquisa como produção teórica, entendendo por teórico a construção permanente de modelos de inteligibilidade que lhe deem consistência a um campo ou um problema na construção do conhecimento (GONZÁLEZ REY, 2015, p. 11). O terceiro princípio está no ato de compreender a pesquisa, nas ciências antropossociais, como um processo de comunicação, um processo dialógico. Desse modo, a
10 comunicação é considerada como um meio privilegiado para conhecer as configurações subjetivas e os processos de construção de sentidos subjetivos. A comunicação influencia a própria definição dos instrumentos de pesquisa e, ao mesmo tempo, se constitui como espaço de produção de informações González-Rey (2015). Sendo assim, o diálogo está presente de forma rica e profunda, exercendo um papel essencial na construção das informações e no cenário de pesquisa. Assim, a pesquisa se pauta na perspectiva de construção de informações, afirmação apoiada em González-Rey (2015), segundo o qual não se conhece uma dada realidade, a realidade se constitui a partir da relação entre os sujeitos. A pesquisa está sendo realizada em uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal, com uma criança com dez anos de idade, que está cursando o terceiro ano do ensino fundamental. A criança tem diagnóstico de Deficiência Intelectual, e está matriculada em turma regular de ensino, na perspectiva da educação inclusiva. As etapas da pesquisa consistem em: imersão no ambiente investigado, para conhecer o ambiente e os participantes envolvidos. Levantamento documental na secretaria da escola, para conhecer os documentos referentes ao estudante. Observação participante tanto na sala de aula regular, quanto na sala de recursos, para perceber aspectos importantes da aprendizagem do estudante, em especial nos contextos de situações de matematização. Entrevistas com os sujeitos envolvidos na pesquisa. E a intervenção pedagógica, que consiste na realização de momentos para atividades matemáticas diretamente entre pesquisadora e criança, dos quais haverá o esforço interpretativo visando a análise dos processos mentais. As informações são sistematicamente registradas em áudio e caderno de campo em todas as etapas. Os registros em vídeo são realizados nos momentos de atividades matemáticas com o estudante sujeito da pesquisa. A última fase da pesquisa é realizada diretamente entre pesquisadora e a criança, em momentos de atividades matemáticas na sala de aula, na sala de recursos, e outros momentos da criança na escola como o recreio, voltados para o recorte de conteúdo matemático que se propõe desenvolver, ou seja, a construção do conceito de número. Em especial, as atividades que requerem quantificação, produção de registros quantitativos (pictóricos ou simbólicos), comparações, sequenciações numéricas, agrupamentos, tomadas de decisões a partir de julgamentos quantitativos, argumentação sobre processos de quantificação. Ressalta-se a importância do espaço dialógico que se estabeleceu entre pesquisadora e a criança, em que estão sendo utilizados sistemas conversacionais em diálogos formais e informais, nos quais pode-se oportunizar à criança, sujeito da pesquisa, espaço para que ela
11 explicite seus processos de aprendizagem e possa se expressar. A análise dos momentos pedagógicos está ocorrendo na interpretação das produções escritas, das respostas e das reações da criança visando a análise dos processos mentais. Especificamente, dos processos de inclusão hierárquica e conservação de quantidades apoiado na Teoria dos Campos Conceituais. Considerações É uma pesquisa que busca compreender processos extremamente subjetivos, delicados e sutis, e a qual demanda um minucioso trabalho de registro e interpretativo da pesquisadora. Os processos de aprendizagem são de autoria da criança e a presença da pesquisadora tem o papel de oportunizar momentos de explicitação de sua aprendizagem e de interpretação do que a criança está comunicando. O diálogo, portanto, tem um papel fundamental nesta pesquisa. Nesse sentido, González Rey coloca: A pesquisa é um processo que deve começar com a incerteza e com o desafio, e não com o objetivo de verificar uma certeza definida a priori. As necessidades de ordem, de precisão e de certeza, que determinam a ideologia dominante da sociedade ocidental, terminaram se impondo também no campo da pesquisa científica. (GONZÁLEZ-REY, 2015, p. 88) A pesquisa conta com um limiar ético que oportuniza o espaço para que se produza conhecimento, dessa forma, o posicionamento teórico, epistemológico e metodológico construtivo-interpretativo, se apresenta como um lugar de possibilidade de descobertas e contribuições. O que se pode colocar, neste momento de pesquisa, como resultados preliminares, são as descobertas de que a criança, sujeito da pesquisa, se percebe e se comporta de maneiras diferentes em cada ambiente. A despeito do diagnóstico de Deficiência Intelectual, a criança entende o que é esperado dela na sala de aula, na sala de recursos e nos outros espaços e ambientes da escola e faz o esforço para corresponder às expectativas de cada professora ou colega. Dessa forma, a comunicação que se está estabelecendo e os espaços de diálogos, abrem o espaço para compreender quais são os caminhos que essa criança está trilhando no processo de construção do conceito do número e o vislumbre das possibilidades pedagógicas que existem para que a criança se sinta autora de sua aprendizagem. Inicialmente foram planejados trinta encontros com a criança, iniciados em abril de 2016, entre sala de aula e sala de recursos, porém, devido à complexidade do objeto de estudo
12 e da quantidade de informações necessárias para se alcançar o objetivo da pesquisa, até o final da pesquisa haverá um número maior de encontros com a criança. Durante os momentos de observação participante e nos momentos de intervenção pedagógica, já foi possível perceber que a criança apresenta inúmeras potencialidades. Interessa-se avidamente por todas as atividades propostas, insiste em concluí-las e solicita participar em todos os momentos. Foi possível identificar que diante dos processos mentais envolvidos na construção do número, a criança, consegue comparar características físicas entre objetos, classificar segundo critérios simples, e recitar a sequência numérica, porém sem atribuir valores aos algarismos recitados. Porém as análises estão levando à compreensão de que o que houve de mais significativo durante a realização da pesquisa, foi perceber como ocorre o engajamento desta criança, considerada em dificuldade de aprendizagem decorrente de uma deficiência, nas situações de quantificação. Independente do conteúdo matemático trabalhado e das respostas que a criança deu, houve engajamento nas situações. Destaca-se que o esforço maior empreendido é o de dar voz a essa criança. Oportunizar a explicitação de sua aprendizagem matemática, permitir que ela comunique seu saber-fazer, podendo, a partir dos esquemas, e dessa forma, mostrar caminhos para uma efetiva educação matemática inclusiva. Diante do exposto, as análises estão ocorrendo com uma triangulação de significados, ou seja, a cada atividade realizada há a descrição do que foi planejado pela pesquisadora, a descrição dos resultados da atividade, sob uma interpretação da pesquisadora, e há a perspectiva do próprio sujeito de pesquisa sobre a atividade realizada, a fala dele. Assim, espera-se que, ao final das análises haja o vislumbre de como essa criança, sujeito desta pesquisa, está construindo o conceito de número. Referências DANYLUK, O. Alfabetização Matemática: as primeiras manifestações da escrita infantil. Porto Alegre: Sulina, Passo Fundo: Ediupf, FÁVERO, M. H. Psicologia e Conhecimento. Subsídios para a análise do ensinar e aprender. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005.
13 GONZÁLEZ REY, F.L. Pesquisa Qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Trad: Marcel Aristides Ferrada Silva. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, KAMII, Constance. A criança e o número: Implicações educacionais da teoria de Piaget para a atuação com escolares de 4 a 6 anos. 39. ed. Campinas, SP: Papirus, LORENZATO, S. Educação infantil e percepção matemática. 3. ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, MUNIZ, C. A. As crianças que calculavam: o ser matemático como sujeito produtor de sentidos subjetivos na aprendizagem f. Relatório de pesquisa de pós-doutoramento. Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, PIAGET, J.; SZEMINSKA, A. A gênese do número na criança. 3. ed. Rio de Janeiro. Zahar, PRESTES, Zoia. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, VERGNAUD, G. La théorie des champs conceptuels. Recherches en didactique des mathématiques, Paris,10, n.23, p , Teoria dos campos conceituais. In Nasser, L. (Ed.) Anais do 1º Seminário Internacional de Educação Matemática do Rio de Janeiro, p.1-26, O que é aprender? In: BITTAR, M.; MUNIZ, C. A. (Orgs.) A aprendizagem matemática na perspectiva da teoria dos campos conceituais. 1. ed. Curitiba: CRV, Capítulo 1, (2014). A criança, a matemática e a realidade. Curitiba: Ed. Da UFPR, VIGOTSKI, L. Obras escogidas. Tomo V: fundamentos de defectología. Madri: Visor Dis A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
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