A CRIAÇÃO POÉTICA: UMA REFLEXÃO SEMPRE POSSÍVEL ENTRE OS POETAS MODERNISTAS
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- Alice Regueira da Mota
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1 386 A CRIAÇÃO POÉTICA: UMA REFLEXÃO SEMPRE POSSÍVEL ENTRE OS POETAS MODERNISTAS Ângela Maria Garcia dos Santos Silva 1 Refletir sobre o trabalho artístico constitui uma das principais características dos poetas modernos. Desde que se libertaram dos modelos fixos e das temáticas convencionais desenvolvidas pelas gerações anteriores ao movimento modernista, esse assunto repete-se nos livros dos autores brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, poeta nascido em Itabira do Mato Dentro, em Minas Gerais, não fica alheio à discussão dos escritores contemporâneos sobre o fazer poético. Ao mesmo tempo em que constrói e concretiza o poema, discute questões literárias como a criação e os recursos utilizados para a construção do texto poético. Nesse sentido, o presente trabalho estabelece um diálogo entre alguns textos de Drummond e a teoria hegeliana 2 escolhida por responder aos elementos que se apresentam nos poemas e por possibilitar a demonstração da consciência artística e da técnica que o artífice exibe em seus versos. No poema Procura da poesia, Drummond dirige o seu discurso àqueles que se dedicam ao ofício de ser poeta para fazer-lhes uma advertência sobre o modo como se deve poetar. Observemos, então, o texto. Não faça versos sobre acontecimentos Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Rio Grande do Sul Brasil. 2 HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
2 387 Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Para o poeta, a poesia não se presta a simples descrições de acontecimentos e, por esse motivo, explica que não se pode fazer poesia sobre sentimentos, acontecimentos, datas, cidade, natureza, sociedade. Tampouco pode ser feita com o corpo, conforme assinala no sexto verso da primeira estrofe, já que o corpo é incapaz de alcançar a efusão lírica. Drummond tem consciência de que, além de grande observador do mundo e das coisas, é preciso que o artífice tome para si o objeto de sua observação e o encerre na sua interioridade para que possa senti-lo em toda a sua plenitude de modo a provocar uma osmose entre sujeito e objeto. Somente assim o recriador será capaz de imprimirlhe verdade, a sua verdade, e aí está a essência da poesia garantida pela reunião de todos os elementos no espírito do poeta. De acordo com Hegel, o tema é tudo o que impressiona o indivíduo (sentimentos, sensações, impulsos, impressões e acontecimentos diários, etc). Assim, depois de incorporar um tema no seu interior de modo que a alma tome consciência de si mesma a respeito do que provocou a sua admiração, o poeta irá transformá-lo em intuição poética. A consequência final disso, é a expansão do sujeito que se servirá do elemento verbal para se exprimir. Nas duas últimas estrofes, Drummond refere-se à expressão como o canto. Registra, enfim, que o canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas./ Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma./ O canto não é natureza/ nem os homens em sociedade.. O canto mencionado pelo artífice é ele mesmo na sua mais pura nudez de alma, pois depois de sentir o seu objeto com toda a emoção, de fundir-se com ele, o autor passa para a fase posterior: a representação de si mesmo. E seja lá o que for cantar, cantará a si próprio, dará vida à obra de arte com a própria vida, ou seja, deixará falar o seu espírito. Exatamente por isso a individualidade do poeta se manifesta e é percebida, segundo Hegel, pela particularização que cada escritor dá a tudo o que venha a ser do seu interesse. Quanto mais individual o tema, mais universal será. E é mesmo necessária essa particularização de cada objeto sem o que não haveria como a lua, por exemplo, ser um tema sempre possível a todos os poetas. É, pois, a particularização dos objetos que lhes confere novidade, já que a lua de Drummond não será a mesma lua de
3 388 Mario Quintana, nem a mesma de Manuel Bandeira, nem a mesma de Cecília Meirelles... São esses movimentos íntimos que, conforme Hegel, despertarão no leitor sentimentos e reflexões semelhantes às do poeta, pois, sem isso, o escritor não conseguirá outorgar verossimilhança ao seu texto. Também é significativa a ideia de recriação que aparece neste poema. No segundo verso da primeira estrofe, Drummond afirma que não há criação perante a poesia e que o canto não é natureza, nem os homens em sociedade. Ora, se há homens e natureza, já existe, portanto, um mundo pronto e cabe ao poeta a tarefa de recriá-lo num segundo plano traduzindo, no texto, o seu estado de alma. E se é recriação, não há como haver morte perante a poesia. Também não pode o canto ser algo externo porque é a alma do escritor desnuda e transposta pelo elemento verbal. Todavia, materializar o texto não é uma tarefa fácil para o artífice como podemos observar no poema O lutador. Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça. Insisto, solerte. Busco persuadi-las. Ser-lhes-ei escravo de rara humildade. Guardarei sigilo de nosso comércio. Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto. Sem me ouvir deslizam, perpassam levíssimas
4 389 e viram-me o rosto. Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue... Entretanto, luto. Palavra, palavra (digo exasperado) se me desafias, aceito o combate. Quisera possuir-te Neste descampado, sem roteiro de unha ou marca de dente nessa pele clara. Preferes o amor De uma posse impura E que venha o gozo da maior tortura. Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido o inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja. Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, outra sua glória feita de mistério, outra seu desdém outra seu ciúme, e um sapiente amor me ensina a fruir de cada palavra a essência captada, o sutil queixume. Mas ai! é o instante de entreabrir os olhos: entre beijo e boca, tudo se evapora. O ciclo do dia ora se consuma e o inútil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo, ó palavra, esplende na curva da noite que toda me envolve. Tamanha paixão E nenhum pecúlio.
5 390 Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono. A representação, para Hegel, se constitui pelas palavras, passíveis de eternizar qualquer estado de alma do indivíduo. Mas, para despertar o gosto do leitor, o teórico afirma que é preciso cultivar a busca pela expressão, servir-se dos vocábulos ricos e elevados e explorar a bela forma. Deve o escritor, portanto, preferir sempre a elegância e o efeito da linguagem a palavras e expressões vulgares. Ao tematizar a palavra, Drummond se mostra sabedor de que esta é a sua principal ferramenta de trabalho e argumenta em seus versos o quão difícil é representar-se através delas. É preciso lutar sempre, é fundamental saber escolhê-lhas, para que o poema se transforme num todo coeso. Porém, conforme ele mesmo anuncia, essa é a luta mais vã, no entanto, necessária. No sétimo verso da primeira estrofe, o poeta cria na mente do leitor a imagem do javali, substantivo escolhido cuidadosamente para explicar o poder que têm os vocábulos, já que a figura imponente desse animal é a própria representação da energia, da força. Com isso, reafirma a dificuldade do embate e segue no seu propósito de tentar apanhar algumas palavras. Mas, se de repente, elas lhe fogem, por mais que insista o artífice no seu retorno, não consegue caçá-las e torna-se escravo delas, tamanha a angústia por que passa durante o seu processo de trabalho. A guerra entre ele e suas ferramentas é dolorosa, íntima, solitária, mas esse esforço diário do poeta em sua oficina, só ele o sabe porque Não têm carne e sangue... que possa deixar rastros. Nessa peleja cotidiana, os vocábulos seguem o desafiando e o artífice aceita esse desafio. Ao fazer isso, insinua o trabalho de lima, de substituição e de procura da expressão adequada até que venha o gozo de maior tortura, momento em que possa, enfim, alcançar o resultado almejado que melhor lhe eternize o instante. Quando o combate está difícil, o inimigo, citado na quarta estrofe, se mostra fluido: algumas palavras se apresentam misteriosas; outras, trazem a glória; outras, o calor; e outras, ainda, o desdém e o ciúme. Essa afirmação do poeta é o reconhecimento da deliciosa tortura de encontrar a mais apropriada entre elas. Mas, o dia se encerra, como anuncia na última estrofe, sem que tenha conseguido a unidade que desejava. E sugere, nesta mesma estrofe, que, às vezes, um único vocábulo incomoda e a palavra,
6 391 por mais bela que seja, não se encaixa e o duelo jamais se resolve continuando depois de cerradas as portas/ nas ruas do sono.. Já no poema Oficina irritada, Drummond vence esse duelo e registra a sua vontade de compor um soneto duro ao mesmo tempo em que o concretiza com a seleção dos vocábulos certos, os quais imprimem no leitor o sentimento de desconforto, de irritação, tal qual anuncia no título. Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijado no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender. Neste texto, nota-se a predominância de uma classe gramatical, o adjetivo ( duro, escuro, seco, abafado, difícil, maligno, imaturo, impuro, antipático, mijado ). Este recurso usado pelo poeta, aliado às rimas e ao ritmo bem marcado pela alternância das sílabas fortes e fracas, garantem o efeito de exasperação por ele almejado. Além disso, a cuidadosa seleção dos vocábulos imprime força ao texto através das consoantes explosivas q, p, t, d que percorrem todo o poema e causam um certo ruído, um som martelado como se estivesse Drummond a bater, a provocar, a incomodar o leitor. O interessante neste texto é que, na medida em que o autor expõe o seu desejo de fazer um poema com esse tom de irritação, serve-se de diversos recursos que o ajudam a dar cabo do seu intento e ele o concretiza de maneira que o claro enigma, se deixa surpreender. É a técnica exemplificada na prática. O estudo desses textos revela a consciência do poeta mineiro acerca do fazer poético e da função do poeta enquanto artesão das palavras, além dos vários recursos de
7 392 que se serve para concretizar os seus poemas. Revela, ainda, a sua preocupação com a temática em questão e a aproximação dessa temática com a teoria na qual nos apoiamos. No final deste breve estudo, chegamos a algumas conclusões: Drummond conhece a arte de poetar e a usa com conhecimento bem definido acerca do processo de criação poética. Ao construir seus versos, brinca com as palavras e demonstra suas reflexões tanto no desenvolvimento do poema como na prática, na própria construção do texto. Enquanto artífice, sabe como encaixar os vocábulos de modo que nenhum possa sair do lugar em que está cuidadosamente colocado sob pena de se perder a coesão, a unidade do poema, dividido em versos, mas unidos em seu espírito. Naturalmente não podemos e nem é nosso objetivo nos aventurarmos a afirmar que Drummond tenha lido Hegel, no entanto, existem aproximações entre a teoria hegeliana e as suas reflexões explícitas ou explicitadas na construção de seus versos. Por fim, recuperamos a idéia de que a criação poética é um assunto que povoa a mente dos poetas modernistas, para dizermos que a particularização que o autor conferiu à essa temática, lhe imprimiu novidade e tornou o tema mais uma vez (e sempre!) possível. Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 52. ed. Rio de Janeiro: Record, HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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