O IDESP E A MULTISSERIAÇÃO NA ESCOLA SERIADA E A CONDIÇÃO DO TRABALHO EDUCATIVO.
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- Maria dos Santos Campelo Covalski
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1 O IDESP E A MULTISSERIAÇÃO NA ESCOLA SERIADA E A CONDIÇÃO DO TRABALHO EDUCATIVO. SALA, Mauro. Programa de Pós-Graduação em Educação FFC-UNESP-Marília (Doutorado)/ professor de Sociologia da rede estadual paulista. PALUDETO, Melina Casari. Programa de Pós-Graduação em Educação FFC-UNESP-Marília (Mestrado). Bolsista CAPES. Resumo: Este artigo pretende discutir as condições de trabalho dos professores da rede estadual paulista como condição para o trabalho educativo, ou seja, buscamos compreender como a atual configuração das relações de trabalho interferem diretamente nas práticas didáticas e de ensino, sendo fundamental também para discussão do currículo escolar. Assim partiremos da análise dos resultados gerais do IDESP-2010 afim de caracterizarmos o que chamamos de multisseriação na escola seriada. Nossa análise não se focará na questão da evolução quantitativa ou das metas estabelecidas pelo governo, e sim sobre o agrupamento segundo os níveis de desempenho estabelecidos. A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo agrupa os alunos em quatro níveis de desempenho: abaixo do básico, básico, adequado e avançado, definidos a partir das expectativas de aprendizagem da Proposta Pedagógica do Estado de São Paulo. Evidencia-se que a maior parte dos estudantes das escolas estaduais tem níveis inadequados de desempenho, concentrando-se nos níveis abaixo do básico e no básico tanto em língua portuguesa quanto em matemática. No caso da escola analisada, mais de 35% dos alunos que cursaram o 9 ano do ensino fundamental em 2010 estavam abaixo do básico em língua portuguesa, e mais de 40% deles em matemática, sendo que para o 3 ano do Ensino Médio esses valores subiam para 42,2% e 57,7% respectivamente. Argumentaremos que essa multisseriação, nas condições atuais de trabalho nas escolas públicas paulista, torna-se um fator de intensificação do trabalho dos professores, incindindo diretamente sobre o próprio sentido do trabalho, já que muitas vezes eles se vêm na impossibilidade de ensinar. Assim, defendemos que a multisseriação deve ser explicitamente reconhecida e se tornar ponto de partida para as necessárias mudanças nas condições de trabalho nas escolas afim de possibilitar o efetivo exercício do trabalho educativo. Palavras-chave: Educação escolar; Didática; Currículo; Condição do trabalho educativo. O problema: a recriação da multisseriação no interior da escola seriada (uma breve análise dos resultados do IDESP-2010) Este trabalho nasceu da nossa vivência prática como professor da rede estadual pública de São Paulo. Ele partiu de uma percepção compartilhada por muitos colegas de que aquilo que buscamos ensinar aos alunos, muitos deles não entendem. Sempre discutíamos sobre a inadequação de tal ou qual conteúdo, tal ou qual abordagem para certo número de alunos, embora frequentassem a mesma sala e estivessem na mesma Livro 2 - p
2 2 série escolar. Intuíamos que havia um enorme descompasso nos níveis de aprendizado e de conhecimento em uma mesma sala de aula, o que tornava a aula proveitosa para alguns, mas raramente para todos. Em uma reunião pedagógica em que tomamos conhecimento dos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica de São Paulo (IDESP) de 2010 [1] da nossa escola, aquela percepção dotou-se de um pouco mais de concreticidade. O IDESP, grosso modo, compõe-se de duas variáveis: o desempenho em uma avaliação padronizada (o SARESP [2] ) e o fluxo escolar, onde o ideal seria sintetizado pela fórmula de um bom nível de aprendizado em um tempo considerado adequado. O IDESP avalia o 5 e o 9 ano do Ensino Fundamental e o 3 ano do Ensino Médio. Além do mau resultado geral [3] e do resultado preocupante de nossa escola (que estava abaixo da média estadual), um outro dado nos chamou a atenção: a distribuição dos alunos por nível de desempenho. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP) agrupa os alunos em quatro níveis de desempenho: abaixo do básico, básico, adequado e avançado, [...] definidos a partir das expectativas de aprendizagem da Proposta Pedagógica do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2011, p.2). O abaixo do básico é considerado insuficiente pela SSE/SP, o básico e o adequado são considerados suficientes. No caso da nossa escola mais de 35% dos alunos que cursaram o 9 ano do ensino fundamental em 2010 estavam abaixo do básico em língua portuguesa, e mais de 40% deles estavam abaixo do básico em matemática, sendo que para o 3 ano do Ensino Médio esses valores subiam para 42,2% e 57,7% respectivamente. É interessante notar que para a SEE/SP o básico ainda não é adequado embora ela considere suficiente. Para a SEE/SP o básico não representa mais que um [...] desenvolvimento parcial dos conteúdos, competências e habilidades requeridos para a série escolar em que se encontram (SÃO PAULO, 2011, p. 2). Ou seja, os alunos que se encontram no nível básico apresentam defasagens em relação ao que é esperado. Assim, quando somamos o percentual de alunos nos níveis abaixo do básico e básico, atingimos a proporção de mais de 90% dos alunos nessa condição em língua portuguesa e matemática no 9 ano do Ensino Fundamental e percentuais de 76% e 97% para o 3 ano do Ensino Médio respectivamente para as duas disciplinas. Livro 2 - p
3 3 Assim, a grande maioria dos alunos avaliados se concentra nos níveis abaixo do básico e básico, ou seja, mantêm níveis inadequados de aprendizado. Além do mau resultado, os dados disponíveis evidenciam pelo menos mais dois problemas: 1) que grande parte dos alunos não tem o nível de proficiência adequado para as séries que estão cursando, em que pese o ainda alto número de reprovações e evasão; e 2) que com o passar da escolarização os alunos tem resultados cada vez piores, aumentando a distância do que se consideraria ideal. Pensamos que esses dois problemas, quando adequadamente relacionados, vêm a nos colocar uma questão que precisa ser foco de investigação, a saber: qual a relação entre a inadequação dos níveis de proficiência nas séries avaliadas com a diminuição, no passar da escolarização, dos níveis de aprendizagem, forjando no final do processo os resultados insatisfatórios apresentados? Nossa hipótese é que há uma recriação, no interior da escola seriada, do fenômeno da multisseriação, evidentemente com todos os inconvenientes dessa inadequação. Entendemos como escola multisseriada a situação em que se reúne estudantes de várias séries na mesma sala de aula com apenas uma professora que os acompanham em todas as disciplinas. Sabemos os problemas dessa situação, que normalmente se define pela falta: falta de professores, falta de alunos, falta de escolas. Embora a escola multisseriada seja uma realidade muitas vezes em si problemática, o foco de nossa preocupação não se dirige diretamente a ela. Aqui estamos preocupados com os problemas causados pela recriação da multisseriação no interior de uma escola que em sua estrutura e funcionamento é seriada. Uma reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 21/05/2011 pode nos dar uma dimensão dos desafios que se nos impõem. Segundo ela, a rede estadual paulista patina em matemática, pois o [...] saresp mostra que alunos do 3 ano do ensino médio têm conhecimento na disciplina adequado a uma criança de 10 anos (FOLHA DE SÃO PAULO, 2011). Segundo a reportagem, em 8 de cada 10 escolas estaduais da capital paulista os alunos do 3 ano do ensino médio [...] não sabem o conteúdo de matemática esperado para a série, e que o desempenho obtido por eles equivale ao que é adequado para estudantes do 5 ano do fundamental ou seja, alunos com 10 anos (FOLHA DE SÃO PAULO, 2011). Livro 2 - p
4 4 Assim, em uma sala do 3 ano do Ensino Médio temos alunos com ao menos 7 níveis diferentes de conhecimento em matemática. Dessa forma, nem todos os alunos têm o mesmo pressuposto para conhecer e acompanhar a matéria que o professor busca ensinar, tanto em matemática quanto nas demais disciplinas para as quais a matemática é também um pressuposto básico e fundamental. Soma-se às dificuldades inerentes à multisseriação as dificuldades desta ocorrer em uma escola cuja a estrutura e a dinâmica é seriada. Se na escola multisseriada típica trata-se de uma professora que acompanha uma sala com alunos de diversas séries diferentes durante todo um período, reconhecendo de ante-mão essa realidade, aqui dois outros problemas se impõem: primeiro, o não reconhecimento explícito dessa realidade; segundo, o fato de um professor ter diversas turmas e de uma turma ter diversos professores [4]. Necessidades, interesses e indisciplina: uma variável perversa da velha fábula A raposa e as uvas. Neste cenário, em que grande parte dos alunos não tem os requisitos para acompanhar a matéria, surgem problemas de indisciplina e desinteresse. Pois como um aluno pode se interessar por algo que ele não tem condição iminente de entender? que está além da sua zona de desenvolvimento próximo? La Fontaine, em uma famosa fábula conhecida por A raposa e as uvas, nos ajuda a entender algumas dimensões do nosso problema. Nela, La Fontaine nos conta a história de uma raposa faminta que entrou num terreno com belas parreiras, carregadas de uvas maduras e suculentas. Ela tentou abocanhá-las, mas os cachos estavam mais altos do que seu pulo podia alcançar. Depois de muito tentar, a raposa simplesmente se virou e disse: Estão verdes!. Assim, o tão propalado discurso dos interesses e necessidades dos alunos assume uma outra dimensão: o desinteresse surge também como consequência da nãoaprendizagem, e não apenas como sua causa, tendo consequências também para a questão da tão falada indisciplina escolar: Essa não aprendizagem potencializa o aumento da indisciplina na escola o aluno que não aprendeu a ler, por exemplo, não consegue entender o que está sendo ensinado e perde, depois de um tempo, a esperança de aprender. Não lhe restam muitas opções que o dito mau comportamento em sala de aula Livro 2 - p
5 5 (PAPARELLI, 2010, p. 336). É claro que não estamos negando a possibilidade de se ensinar conjuntamente alunos de diferentes séries e idades, ou a possibilidade de, junto com alunos mais avançados, inserir e garantir o aprendizado de um aluno que apresentou dificuldades com esse ou aquele conteúdo. A questão é novamente da inadequação entre a estrutura, o funcionamento, as condições de trabalho docente e os desafios que se nos impõem. Nas escolas estaduais paulista, um professor de Ensino Médio pode ter de 6 à 32 turmas diferentes para uma jornada de 40 horas semanais (dependendo da disciplina que ministra), tendo em média 39 alunos matriculados por turma, segundo o censo escolar. E um aluno pode ter 15 professores e disciplinas diferentes - descontada a rotatividade das contratações temporárias. Assim, o grande número de turmas, séries e alunos, do ponto de vista do professor, e o grande número de disciplinas e professores, do ponto de vista dos alunos, dificulta o reconhecimento, a explicitação e o tratamento adequado das necessidades específicas apresentadas por esse ou aquele aluno ou grupo de alunos. Tendo, dependendo da disciplina, apenas uma ou duas aulas na semana por turma e diante de salas com 40 ou mais alunos, como reconhecer e lidar adequadamente com necessidades e interesses tão heterogêneos e desiguais? Como trabalhar esse processo diante de um universo de 12, 15 ou 20 salas diferentes como ocorre com professores de várias matérias, com 300, 500 e as vezes mais de 1000 alunos por semana? Frequentemente percebemos que muitos alunos não sabem, mas raramente podemos dizer com clareza o que esses alunos não sabem e o porquê. Além dessas dificuldades pedagógicas objetivas, essa inadequação se expressa também na organização curricular da escola, de modo que se torna forçosa a cristalização desse processo. O aluno que vai sendo aprovado sem saber perderá a chance de aprender mais adiante, já que o sistema continua seriado, ou seja, continua norteado pela presença de amarras entre conteúdos escolares e séries, de modo que a promoção implica que o conteúdo da série anterior não será mais ensinado (PAPARELLI, 2010, pp. 335/6). Desde 2008, a SEE/SP vem colocando em prática a sua Proposta Curricular. Na apresentação dessa proposta, embora a SEE/SP diga considerar a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) um passo importante, há Livro 2 - p
6 uma clara e direta crítica à proposição legal de que as escolas definissem seus próprios projetos pedagógicos. Segundo a SEE/SP: Ao longo do tempo [ ] essa descentralização mostrou-se ineficiente (SÃO PAULO, 2009). Com o objetivo de organizar melhor o sistema educacional de São Paulo, o governo paulista apresenta sua Proposta Curricular : Mais do simples orientação, o que propomos - diz a então Secretária da Educação do Estado de São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro com a elaboração da Proposta Curricular e de todo material que a integra, é que nossa ação tenha um foco definido e que se constitua num processo permanente de construção coletiva (SÃO PAULO, 2009). 6 Os limites do neo-tecnicismo Todos os anos são entregues para os alunos e para os professores da rede estadual o material curricular proposto e elaborado pela SEE/SP [5]. Assim, por exemplo, são distribuídos para os alunos do primeiro ano do Ensino Médio os materiais didáticos do primeiro ano do Ensino Médio, assim como para os professores são entregues os respectivos materiais do professor para os respectivos anos em que lecionam; o que parece óbvio e razoável. Isso ocorre, ou ao menos espera-se que ocorra, para cada uma das disciplinas constantes na grade curricular. Mas fica uma pergunta: se mais de 90% dos alunos que ingressam no Ensino Médio tem níveis inadequados de conhecimento esperado para a série (sendo que de 35% a 40% deles não têm nem o básico em português e matemática esperados para a série anterior) como trabalhar esse material? É aí que o neo-tecnicismo tão presente nas políticas educacionais esbarra na realidade concreta da escola pública. Não se trata apenas da centralização ou descentralização da gestão da educação, trata-se também das condições práticomateriais para o exercício efetivo do trabalho educativo e das dimensões que as envolvem. LDBEN/1996, progressão continuada e intensificação do trabalho do professor Sabemos que, tanto praticamente quanto nos termos legais, a atividade do professor não se resume às atividades em sala de aula, ou em contato direto com os educandos. O artigo 13 da LDBEN/1996 assim define as incumbência dos professores Livro 2 - p
7 7 da Educação Básica: I Participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III zelar pela aprendizagem dos alunos; IV estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; e VI colaborar com atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade. (BRASIL, 1996). Assim, vemos que o trabalho docente passa a contemplar diversas outras funções além da relação direta com os educandos, tal como as relações com a comunidade, a gestão da escola, o planejamento, a elaboração do projeto pedagógico, a participação em conselhos. Dessa forma, podemos considerar que com a LDBEN/1996 há uma [...] dilatação, no plano legal, da compreensão do que seja o pleno exercício das atividades docentes (ASSUNÇÃO & OLIVEIRA, 2009, p. 352), afetando dimensões quantitativas e qualitativas de nossa atividade. Também com a LDBEN/1996 houve um aumento na quantidade mínima e obrigatória de dias letivos, de 180 para 200 (com aumento da carga horária), além da afirmação da obrigatoriedade do Ensino Fundamental. A despeito dessas mudanças também representarem conquistas dos movimentos sociais, elas [...] têm implicado maiores exigências para os docentes (ASSUNÇÃO & OLIVEIRA, 2009, p. 352), tendo impactos significativos sobre as exigências do trabalho educativo. A LDBEN/1996, nos parágrafos 1 e 2 do artigo 32, coloca a possibilidade dos sistemas de ensino desdobrar o ensino fundamental em ciclos, possibilitando-os também a [...] adotar o regime de progressão continuada, sem prejuízos da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino (BRASIL, 1996). No estado de São Paulo, a adoção dos ciclos, bem como do regime de progressão continuada, se deu já em 1997 com a publicação da deliberação Conselho Estadual de Educação (DELIBERAÇÃO CEE Nº 9/1997). A adoção do sistema de ciclos com o regime de progressão continuada visava superar a pedagogia da repetência, pois essa não seria compatível com a [...] almejada democratização e universalização do ensino fundamental (INDICAÇÃO CEE Nº 8/1997, p. 499). Para a CEE/SP era preciso [...] substituir uma concepção de avaliação escolar punitiva e excludente por uma concepção de avaliação de progresso e Livro 2 - p
8 de desenvolvimento da aprendizagem (INDICAÇÃO CEE Nº 8/1997, p. 499). Altos índices de reprovação e de evasão andavam sempre juntos nas análises sobre as dificuldades de democratização e universalização da educação escolar. Assim, embora o CEE/SP defendesse o benefício do ponto de vista pedagógico, a questão econômica tomou destaque na própria indicação do Conselho, afinando-se com a lógica produtivista e com os discursos da otimização dos recursos : A repetência constitui um pernicioso 'ralo' por onde são desperdiçados preciosos recursos financeiros da educação. O custo correspondente a um ano de escolaridade de um aluno reprovado é simplesmente um dinheiro perdido (INDICAÇÃO CEE Nº 8/1997, p. 499). 8 Tanto a [...] dilatação, no plano legal, da compreensão do que seja o pleno exercício das atividades docentes (ASSUNÇÃO & OLIVEIRA, 2009, p. 352), quanto as exigências postas pela obrigatoriedade do Ensino Fundamental, com a adoção do sistema de ciclos com regime de progressão continuada, nos mostram que as transformações no trabalho do professor se dão tanto no âmbito quantitativo quanto no qualitativo. Os professores sofrem tanto com a dilatação de suas atribuições quanto com as transformações e mudanças no seu fazer, decorrentes das políticas educacionais presididas a partir da lógica produtivista típica do neoliberalismo, sofrendo impactos significativos sobre as exigências do trabalho educativo no sentido de sua intensificação, sendo motor de processos de adoecimento. Um dos fatores de intensificação é a recriação da multisseriação. Entretanto, essas medidas não foram acompanhadas de uma mudança significativa nas condições de trabalho do professor de modo a garantir o efetivo exercício de seu trabalho educativo. Hoje, para um conjunto de vinte aulas semanais, um professor da rede pública paulista recebe três horas para preparo, reflexão, correção de suas aulas e das atividades dos alunos (Hora de Trabalho Pedagógico Livre - HTPL), e tem que participar de duas horas de reunião pedagógica na escola em que tem sede (Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo HTPC), independentemente do número de salas e de séries distintas para as quais ensina. Para uma jornada de 40 horas, têm que dar 32 aulas semanais (RESOLUÇÃO SEE/SP nº 08/2012). Se do ponto de vista do aluno esse processo pode redundar em uma perda da esperança de aprender, do ponto de vista do professor, as dificuldades do ensino se concretizar, pode significar que o seu trabalho vai perdendo o sentido, implicando em Livro 2 - p
9 aumentos no desânimo e na exaustão (PAPARELLI, 2010, p. 337/8). Assim, um dos determinantes do desgaste mental vivenciado pelos professores é o sofrimento de conviver, ano após ano, com o estudante que não está aprendendo. Isso porque, se nos anos 1980, esse aluno que não aprendia tendia a evadir da escola, [ ] atualmente, ele permanece, deixando evidente para os docentes a incapacidade da escola, nas condições atuais, de educar a maior parte dos alunos. Essa incapacidade é sentida pelos professores como incapacidade pessoal, individual (PAPARELLI, 2010, p. 338 nota). 9 Se no plano do sentido do trabalho, do desgaste e do sofrimento mental do professores, o sistema de ciclos com progressão continuada desempenha papel fundamental, devemos ressaltar que a dilatação das atividades e a extensão da jornada de trabalho faz o professor sofrer também desgaste e sofrimento físico, sendo acometido tanto por adoecimentos relacionados com a perda de sentido subjetivo do seu trabalho (depressão, burnout, estresse), quanto com adoecimentos típicos do esforço físico (adoecimento vocal, doenças do aparelho respiratório, lesões osteo-musculares, doenças no tecido conjuntivo), sendo uma das categorias do funcionalismo público que mais se abstêm do trabalho por motivo de doença. Assim, a multisseriação, junto a outros fatores, deve ser vista tanto como consequência das mudanças nas condições de trabalho do professor quanto como seu ponto de partida. Pois não se trata de retomar a velha pedagogia da repetência, com suas consequências para a questão da democratização e universalização da educação escolar. Trata de se criar condições objetivas para o tratamento adequado dessa situação, para que a exclusão da escola não se cristalize simplesmente como exclusão na escola, e para que, assim, o trabalho educativo possa retomar sua efetividade e o seu sentido. Mas para isso é necessário que se rompa com a lógica produtivista típica das reformas empresariais e neoliberais da educação. Nem o neo-tecnicismo nem as políticas de responsabilização e penalização do professor estão à altura dos desafios que se nos impõem. Para que o trabalho educativo possa realizar-se é necessário um conjunto de condições objetivas que passa pela composição e extensão da jornada de trabalho, pelo número de alunos por turma, pelas condições materiais de infraestrutura da escola, pelas condições materiais pedagógicas da escola (laboratórios, biblioteca, sala para trabalho coletivo, espaço de estudo etc.), o corpo de funcionários para fazer as coisas funcionarem, seu funcionamento Livro 2 - p
10 10 democrático, etc. Para essas questões é necessário uma ação política que ao mesmo tempo que transcenda os muros da escola, parta das experiências escolares e se vincule sempre com a necessária construção de uma escola pública, gratuita, e de qualidade socialmente referendada para todos. Mas para isso, precisamos partir daquilo que é essencial e específico da educação escolar: o ensino. Ou seja, temos que lutar para garantir aos professores e a todos os profissionais envolvidos com a educação escolar as condições de trabalho necessárias para o desempenho do seu trabalho educativo, bem como garantir aos estudantes as condições materiais e objetivas para sua aprendizagem, partindo da realidade multisseriada da nossas escolas seriadas. Notas [1]-Índice de Desenvolvimento da Educação Básica de São Paulo. Os resultados, bem como a nota técnica sobre o IDESP, podem ser consultados em idesp.edunet.sp.gov.br. [2]- Sistema de Avaliação de Rendimento do Estado de São Paulo. [3]- O IDESP da rede estadual do 5 ano do Ensino Fundamental obteve 3,96; do 9 ano do ensino Fundamental, 2,52; e do 3 ano do Ensino Médio, 1,81. [4]- Embora os significados e as consequências da recriação da multisseriação no interior da escola seriada variem com a especificidade deste ou daquele componente curricular, certamente se fazem sentir por todos que estão diretamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Um estudo de como os professores das diversas áreas, bem como os coordenadores pedagógicos e os supervisores de ensino apreendem e lidam com essa realidade deverá ser foco de um estudo empírico rigoroso, que busque, a partir das visões dos sujeitos envolvidos, compreender dimensões práticas tanto da didática quanto do currículo escolar, bem como dimensões políticas da organização do trabalho capazes de garantir o efetivo exercício do trabalho educativo (SAVIANI, 2008). [5]- Referências ASSUNÇÃO, A. A. & OLIVEIRA, D. A. Intensificação do trabalho e saúde dos professores. In. Educação e Sociedade. Vol. 30, n Campinas, SP, BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de DELIBERAÇÃO CEE Nº 9/1997. Institui, no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo, o regime de progressão continuada no ensino fundamental. FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo patina em Matemática. Cotidiano 2. p.c6, Livro 2 - p
11 11 21/05/2001. INDICAÇÃO CEE Nº 8/1997 CP - Aprovada em Trata do regime de Progressão Continuada. PAPPARELI, R. Saúde mental relacionada ao trabalho. In. LOURENÇO, E. e outros (Org) O avesso do Trabalho II: trabalho, precarização e saúde do trabalhador. São Paulo: Expressão Popular, RESOLUÇÃO SEE/SP nº 08/2012, de Dispõe sobre a carga horária dos docentes da rede estadual de ensino. SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Carta da Secretária (Maria Helena Guimarães de Castro). In. SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Sociologia/ Secretaria de Educação. São Paulo: SEE, Programa de Qualidade da escola: nota técnica. São Paulo: SEE, Disponível em SAVIANI, D. Sobre a natureza e especificidade da educação. In. SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 9ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2009 Livro 2 - p
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