REVISTA VERBA VOLANT RESENHA LITERÁRIA
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- Luzia Belém Dinis
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1 55 REVISTA VERBA VOLANT RESENHA LITERÁRIA OBRA RESENHADA: ASSIS, Joaquim Maria Machado de. DOM CASMURRO. AUTOR DA RESENHA: MARINHO, José Álvaro Gomes URCA Universidade Regional do Cariri 1. INTRODUÇÃO Em 218 capítulos, geralmente bastante curtos, Dom Casmurro é a narração, feita em primeira pessoa pelo próprio protagonista, da vida de Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho. A trajetória existencial recomposta vai do ano de 1857 até meados da década de 1890, quando o narrador, já quinquagenário, se debruça sobre o passado, apresentando-o e, ao mesmo tempo, analisando-o à distância, do que resulta uma estrutura narrativa em que se alternam a narração da ação e a reflexão sobre a mesma, ambas tendo por palco o RJ da segunda de do séc. XIX. Dom Casmurro, de Machado de Assis, é o romance mais famoso da literatura brasileira. Neste livro está o talento de seu autor ao analisar psicologicamente seus personagens bem como a criação do clima de dúvida e ambiguidade quanto ao adultério de Capitu - uma das personagens da obra. Publicado em 1899 em 148 capítulos, o romance é narrado em primeira pessoa. O Dr. Bento Santiago, familiarmente chamado Bentinho, relata a sua própria história a partir de um "flashback" da velhice para a infância, com o objetivo de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência". Marcado para ser padre, pois sua mãe - Dona Glória tinha feito uma promessa: o filho seguiria a vida sacerdotal, Bentinho - órfão de pai - cresceu num ambiente típico de uma família burguesa, ao lado do tio Cosme, da prima Justina e do agregado José Dias. Entretanto o garoto não deseja ser padre e já aos quinze anos começa um relacionamento com uma vizinha - Capitu - garota de 14 anos, de origem pobre, que vivia com os pais: Pádua e Fortunata.
2 56 A convivência e as brincadeiras vão aproximando Bentinho e Capitu que de amigos passam a namorados. Os pais de Capitu posicionam-se favoravelmente ao namoro uma vez que veem neste relacionamento uma forma de ascensão social; já dona Glória, alertada por José Dias, sente a promessa ameaçada; por isso coloca Bentinho no seminário. Lá, Bentinho conhece Escobar, ficam amigos íntimos (os dois descobrem afinidades - ambos estão no seminário sem vocação sacerdotal). Anos depois, Escobar abandona o seminário e dedica-se ao comércio. Posteriormente Bentinho toma a mesma atitude e forma-se em Direito. Escobar casa-se com Sancha, amiga de Capitu, e Bentinho contrai matrimônio com Capitu, ratificando o namoro da adolescência. Assim a amizade dos dois pares se solidifica: moram perto e tornam-se muito unidos. O casamento entre Bentinho e Capitu começa a entrar em crise a partir do nascimento do filho Ezequiel que apresenta uma semelhança física com Escobar o que induz Bentinho a imaginar que Capitu o traiu com o seu melhor amigo. Da constatação, Dr. Bento consome-se em ciúme. O tempo vai passando e Ezequiel fica cada vez mais parecido com Escobar o que dá a certeza de que o garoto não é seu filho. Passado algum tempo, Escobar morre afogado no mar. Ao observar no velório a reação de Capitu -"ela olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas". Bentinho, por suas deduções, chega a uma comprovação: houve o adultério. Ele não consegue suportar a" presença da mulher e do filho chegando até a pensar em matá-io. Passa o casal a ter uma vida conjugal de aparência: estão, de fato separados, porém convivem (observe a sutil crítica machadiana à classe burguesa - relação hipócrita). É tentada uma reconciliação através de uma viagem do casal à Europa, não dá certo, Bentinho volta; Capitu e Ezequiel permanecem na Suíça. Mais tarde Capitu morre sem ter revisto o marido. Já adulto, Ezequiel retoma ao Brasil para visitar o pai que mais uma vez constata a semelhança física entre o filho e Escobar. Pouco depois Ezequiel morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais Casmurro, fecha-se em sua dúvida. 2. ENREDO
3 57 Em rigor o tema abordado por Machado de Assis não é o adultério e sim o ciúme, tão doentio que atinge uma deformação patológica. Capitu é considerada adúltera na ótica de Bentinho que se apresenta como vítima, por isso o romance é uma verdadeira acusação. O ciúme do Dr. Bento Santiago é tão forte que ele não consegue o controle emocional (na morte de Escobar, Bentinho não consegue ler as palavras de despedidas por causa do ódio ao morto e a Capitu). A polêmica do romance: Capitu é ou não é adúltera está concentrada no foco narrativo de primeira pessoa, pois Bentinho é o personagem que narra sua própria história. Dúvidas existirão sobre a culpabilidade de Capitolina uma vez que o narrador não é confiável. A criação mimada que teve, transformou-o num homem inseguro, de personalidade fraca, por isso Bento pode estar distorcendo os fatos. Entretanto, revelando exata maestria, Machado deixa tudo de forma muito aberta e nenhuma conclusão pode, realmente, ser tomada com segurança. Eis porque, em Dom Casmurro, a questão do adultério pertence a cada leitor, individualmente. Em sua narrativa, Bento afirma o adultério, mas é uma acusação inconsistente. A principal prova de que dispõe é a semelhança física entre Escobar, amigo do casal, e Ezequiel, contestada, pois há uma também identidade física entre Capitu e a mãe de Sancha, que nem parentes são. Outro exemplo que põe em dúvida o posicionamento de Bentinho é que ele também é um adúltero. Na véspera da morte de Escobar, Betinho troca inesperados e intensos olhares com Sancha e, na hora da despedida, suas mãos se apertam demoradamente mais do que o normal, levando o narrador a ter um instante de descontrole emocional: é o sentimento de culpa que aflora. E assim o romance segue, cada registro de traição vem à tona o contrário. Num determinado momento, Bentinho condena a esposa, noutro - mais introspectivo - ele se mostra ciumento atingindo uma paranoia. Espaço ocupado pelo enredo corresponde à cidade do Rio de Janeiro ao tempo do segundo império. Bentinho é o típico representante das elites patriarcais: morava em bairro elegante; a família vivia de rendas, era uma pessoa culta e de hábitos sofisticados; quando adulto, era prepotente, brutal e incapaz de estabelecer diálogo com a mulher amada. A presença do agregado José Dias - personagem plana, caricatural, simbolizada pelo seu parasitismo, é uma prova da condição socioeconômica da família Santiago, pois só as famílias abastadas do Brasil imperial possuíam agregados que, de acordo com o grau de instrução,
4 58 desempenhavam funções diversas inclusive de conselheiro. Dias cuidava de Bentinho com "extremos de mãe e atenções de servo". Capitu é o avesso social e econômico de Bentinho. Oriunda de família pobre, ela busca a ascensão à custa do casamento, por isto não mede esforços para vencer os empecilhos. O casamento com Bentinho era o seu grande projeto de vida. Para alcançá-lo enfrenta preconceitos, desigualdades financeiras. Ela adorava sair às ruas de braço dado com Bentinho a fim de que a sociedade visse que aquela menina pobre estava casada com um homem rico. É importante ressaltar o comportamento interesseiro de Pádua - pai de Capitu - o qual sabia que a filha de quatorze anos andava de namoro com Bentinho, mas era conivente, pois este relacionamento lhe traria benefícios: ele um simples funcionário de uma repartição poderia ter como genro o filho de uma viúva rica. Outro exemplo que comprova o caráter materialista do romance é José Dias - personagem mesclado de uma dignidade pedante (gostava de usar superlativos) com uma dedicação fiel de criado. Cumpre esclarecer que a dedicação de José Dias - o agregado - garante sua sobrevivência junto à elite, por isso ele enxerga de que lado deve ficar, tomando partido do jovem Bentinho, menos por simpatia à paixão e mais por se preocupar com o seu futuro (o agregado sugere a Bentinho uma viagem à Europa para que ele pudesse ir junto). De acordo com os fatos narrados, o romance apresenta duas fases distintas que correspondem aos momentos básicos na vida dos personagens. Fase I: período da adolescência (1857) - Capitu - 14 anos e Bentinho - 15 anos representa a fase mais poética, aqui Capitu se mostra uma pessoa dominadora, tomando toda iniciativa do jogo amoroso ("Como se vê, Capitu, aos catorze anos, tinha já ideias atrevidas"). Fase II: corresponde ao período que começa com o casamento entre Bentinho e Capitu (1865). É uma fase mais realista e amargurada, cheia de conflitos, gerados pela incompatibilidade de gêneros. Bento desempenha o papel de homem patriarcal, assume o comando do relacionamento afetivo, levandoo à destruição. 3. ESTILO MACHADIANO
5 59 Ironia e ceticismo - Machado de Assis revela uma visão cética e desencantada da realidade. Os indivíduos agem impulsionados apenas por seus interesses pessoais: vaidade, ambição, sede de poder. Diante destes valores, prefere o autor o sorriso crítico, o humor, não aquele humor engraçado, de provocar gargalhadas, e sim, a ironia sutil que conduz o leitor a uma reflexão crítica. São exemplos de ironia e humor a erudição de José Dias, a gula do Padre Cabral, o biotipo de tio Cosme, o comportamento de Bentinho em relação ao poeta do trem. Em "Dom Casmurro," Machado utiliza todas as possibilidades de expressão que a linguagem possibilita. Ora o texto é recheado de termos atualíssimos para a época, ora utiliza-se de uma linguagem mais antiga e conservadora. Há repúdio à retórica, à metáfora vazia, ao adjetivo banal e aos pormenores descritivos. Usando a técnica dos capítulos curtos e titulados, o narrador-personagem dialoga frequentemente com o leitor, dando-lhe um cunho de cumplicidade dos fatos, ("Não consultas dicionário. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhes dão" - cap. 1, "O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais do que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta". 4. PERSONAGENS PRINCIPAIS 4.1 Bentinho/Dom Casmurro Dividido entre a saudade da juventude irrecuperável e a meditação sobre seu caminho existencial, Bento Santiago ora manifesta certa condescendência diante do espetáculo do mundo, apreciando certos prazeres da vida, ora demonstra seu desencanto em reflexões melancólicas sobre a realidade. Este último sentimento, que domina a fase de maturidade do protagonista/narrador, acaba dando o tom a todo o romance. Consciente de sua ingenuidade no passado, não exacerba seu pessimismo e se mantém num equilíbrio filosófico que lhe permite assimilar as lições da vida e viver com certa paz interior. Em termos estritamente pessoais, Bento Santiago é um homem que pagou o preço de sua existência e aparou o suficiente os golpes do destino para poder ordenar a realidade e manter sua identidade. Em termos sociais, é o membro de uma classe superior para quem
6 60 tudo se resume, na vida, em saber salvar as posses e as aparências, o que, em última instância, é a mesma coisa. 4.2 Capitu Mudando de classe social através das armas da inteligência e da sensualidade, Capitu, com seus 'olhos de cigana oblíqua e dissimulada', se perde - para o protagonista/narrador - em virtude de um autocontrole pouco desenvolvido, isto é, em virtude de não submeter-se aos limites impostos pela condição social a que ascendera. Mostra-se capaz de envolver Bentinho mas incapaz de dominar o mundo em que passa a integrar-se após seu casamento. Seu destino é ser 'expurgada' do grupo. 4.3 Escobar Com um perfil pouco desenvolvido no romance, Escobar é, em síntese, um homem de ação, pouco dado a especulações sobre o mundo. Sua carreira de comerciante e seu gosto pelo esporte - que o leva à morte - o contrapõem a Bento Santiago. É um personagem simples e linear, o que o configura como um perfeito parceiro de traição. 4.4 Sancha Mais limitada e menos vital que Capitu, Sancha é seu oposto, como fica claro no fugaz incidente com Bento Santiago, quando ela recusa a dar o passo que levaria além dos limites impostos à sua condição de mulher casada. 4.5 D.Glória Uma boa criatura, descendente de famílias tradicionais da aristocracia mineira e paulista, D. Glória se atém rigidamente às normas do grupo social e, apesar de ser ainda bela e jovem ao tornar-se viúva, recusa qualquer outro tipo de ligação com homens, dedicando-se às tarefas de administrar os bens, cuidar do lar e educar o
7 61 filho. Como diz o protagonista/narrador, 'teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo'. É a figura clássica da matrona ilibada e inatacável. 4.6 José Dias Amante dos superlativos e da bajulação, as convicções de José Dias oscilam de acordo com os interesses dos membros da família a que se agregara. Neste personagem, Machado de Assis traça um perfil magistral de um grupo típico da sociedade escravocrata brasileira do séc. XIX: o homem livre, mas sem posses, que, tanto por seu próprio interesse quanto por interesse da classe proprietária, integra-se em um clã e perde a própria identidade em troca dos favores que o mantêm vivo, livre e desfrutando de certo status social. 4.7 Padre Cabral Apesar de ocupar um lugar discreto na obra, o padre Cabral encarna, claramente, a Igreja como instituição, como um núcleo de poder que, em plano secundário, mas com certa importância, caracterizava a sociedade brasileira do séc. XIX, particularmente antes da República, a partir da qual se separaram Igreja e Estado.
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