CLASSIFICADOS DE JORNAIS: DIVERSIDADE DE VOZES E CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE
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- Giovana Melgaço da Silva
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1 CLASSIFICADOS DE JORNAIS: DIVERSIDADE DE VOZES E CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE Introdução Kelli da Rosa Ribeiro 1 O presente trabalho apresenta reflexões iniciais referentes a um projeto de pesquisa em elaboração que pretende investigar o discurso em anúncios de classificados de jornais impressos de diferentes regiões do Brasil. Tal investigação resultará na elaboração de uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Letras da. Levando em consideração que as palavras mobilizadas no discurso não são neutras, uma vez que são fruto da interação entre indivíduos e, por consequência, trazem em sua constituição apreciações valorativas de um locutor em relação ao objeto do discurso e em relação ao outro sobre o objeto (Bakhtin, 1998, 2003), chamou nossa atenção estudar o funcionamento do discurso em classificados, nos quais serviços sexuais de homens e mulheres são oferecidos. Assim, partimos do pressuposto teórico de que o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas (Bakhtin/Volochinov, 2006, p.95). No caso dos anúncios de classificados, podemos entender que os locutores têm a necessidade sócio-econômica de anunciar um produto ou serviço e, utilizando as formas da língua configuradas num gênero específico, concretizam a interação social de compra e venda. O discurso, dessa maneira, engendra vozes de outros discursos, sendo um fenômeno social em todas as esferas da atividade humana e, portanto, inseparável da ideologia. Neste trabalho apresentamos as primeiras reflexões sobre os procedimentos teórico-metodológicos do projeto de pesquisa que pretendem possibilitar a análise dos anúncios de classificados, a fim de mostrar como é construída discursivamente a imagem do sujeito locutor que anuncia seus serviços sexuais, bem como a imagem discursiva do sujeito interlocutor, a quem é destinado o anúncio. Pretendemos verificar, no desenvolvimento da investigação, as marcas linguísticas articuladas à situação discursiva, observando a relação de alteridade entre locutor e interlocutor. Também analisaremos as relações dialógicas instauradas pela escolha do signo ideológico na auto-nomeação do sujeito discursivo no anúncio. E, por fim, examinaremos como as diversas vozes (pontos de vista) sociais interagem nos anúncios, por meio da análise das palavras empregadas. Como embasamento teórico, pautamo-nos na teoria dialógica do discurso, discutida e proposta pelo Círculo de Bakhtin, que fornece subsídios teórico-analíticos para a pesquisa, em especial os conceitos de relação dialógica, signo ideológico, palavra, enunciado, alteridade, vozes e gênero discursivo. 1 Mestranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS; bolsista CAPES. ribeirokelli@yahoo.com.br 283
2 Pressupostos teóricos O Círculo de Bakhtin 2 apresenta uma reflexão a respeito da correlação entre signo e ideologia. Para Bakhtin/Volochinov (2006), todo signo é ideológico e está, indissoluvelmente, ligado à situação social. A palavra, nesse contexto, é considerada como signo ideológico por excelência, uma vez que funciona como elemento que acompanha toda a criação ideológica. É necessário abordar pelo menos duas características do signo estudadas pelo Círculo de Bakhtin. Segundo a concepção dialógica da linguagem, de um lado, um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele reflete e refrata uma outra realidade. Isto é, numa operação simultânea, o signo descreve o mundo e constrói interpretações desse mundo (Bakhtin/Volochinov, 2006, p.32). Por outro lado, o signo só aparece num terreno interindividual, ou seja, somente num processo de interação entre duas consciências é que se torna possível o signo ideológico. Dessa maneira, é necessário que os dois indivíduos estejam socialmente organizados, formando assim uma comunidade linguística, um grupo social. Essas noções são pertinentes para a pesquisa, pois é, fundamentalmente, o signo ideológico e sua relação com o leitor/destinatário, numa dada situação discursiva, que constituem o(s) sentido(s) no anúncio de classificados. Faraco (2009, p.46) mostra que a palavra ideologia na obra de Bakhtin é utilizada para designar o universo dos produtos do espírito humano, ou seja, universo que engloba, não só a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, mas também as criações discursivas do cotidiano, por exemplo, as conversas do dia-a-dia. Vale destacar que são as relações de ideologia do cotidiano que condicionam e criam as relações discursivas maiores (superestruturas) (Bakhtin/Volochinov, 2006). Assim, pelo fato de todo o signo ser ideológico e participar do universo da produção humana, naturalmente está sujeito a critérios de avaliação do leitor/destinatário, já que toda a compreensão do enunciado vivo é de natureza responsiva. Bakhtin (2003, p.271) diz que toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão e a avaliação do enunciado ocorrem, tão somente, nas diversas interações sociais vivenciadas pelos falantes. Nessa perspectiva, a palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não [...] (Bakhtin/Volochinov, 2006, p.116). Evidenciamos, então, a relação ativa entre o locutor e o interlocutor na enunciação, sendo que o locutor faz projeções ao seu interlocutor, o que resulta nas respostas antecipadas. O sujeito, para o Círculo de Bakhtin, se constitui na e pela linguagem, por meio de relações históricas, sociais e ideológicas. Além disso, percebemos sua constituição, através da interação e relação com o outro e sua palavra. Conforme Bakhtin (2003, p.374), o sujeito, na relação com o objeto e com os outros sujeitos, é dotado de 2 O Círculo de Bakhtin, postumamente chamado dessa forma, era composto por estudiosos de diversos campos do conhecimento que tinham ideias em comum. Havia entre o grupo biólogo, pianista, filósofo, professor, entre outros. As ideias essenciais que perpassavam as obras dos estudiosos eram a preocupação com a filosofia e a reflexão sobre a linguagem. É importante destacar que os principais nomes representantes das ideias linguísticas do Círculo eram Mikhail Bakhtin, o líder, Valentin Voloshinov e Pavel Medvedev (Faraco, 2009). 284
3 concretude, integridade, responsividade (orientação ativa para a resposta), inesgotabilidade e abertura. O autor chama a atenção para a alteridade constitutiva do discurso e do sujeito: eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro [...]. A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la [...] o imenso e infinito mundo das palavras do outro são o fato primário da consciência humana e da vida humana [...] (Bakhtin, 2003, p.379) Por isso, podemos considerar que a fronteira entre a minha palavra e a palavra do outro é demasiadamente tênue. Isso permite-nos dizer que as palavras do eu e do outro estão em constante interação e tensa luta dialógica, podendo, muitas vezes, se confundir. A relação com o outro, a alteridade, é tema de base da teoria bakhtiniana, sendo condição da existência do sentido e do sujeito. Conforme Bakhtin (2003, p.33), o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que [...] é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se outro não a cria. As relações de alteridade podem ser percebidas em enunciados que constituem diferentes gêneros do discurso. O enunciado, pelo viés da teoria dialógica, representa a unidade mínima e real da comunicação discursiva e não tem existência fora de enunciações concretas realizadas por falantes. Por ocorrerem numa cadeia complexa e organizada de outros discursos, os enunciados funcionam como uma espécie de elo na corrente dessa organização (Bakhtin, 2003, p.270). Para o pensador russo, a comunicação discursiva seria quase que impossível se não houvesse os gêneros do discurso, ou se os falantes não os dominassem, uma vez que é por meio dos gêneros que se expressam na sociedade as relações existentes entre os indivíduos. Nesse sentido, a direção da palavra ao interlocutor está ligada ao gênero no qual o enunciado se materializa. Dessa forma, como explica Bakhtin (2003, p.262), cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados 3. Esses tipos são denominados gêneros do discurso, e sua diversidade está relacionada à situação de interação, às relações entre os participantes e à esfera de comunicação discursiva. São relativamente estáveis, pois apresentam alguns elementos reiteráveis (tema, estilo verbal e forma composicional) que garantem a estabilidade do gênero para que os locutores possam se entender e assim se organizar socialmente. No entanto, prevendo a dinamicidade e criatividade das atividades humanas, Bakhtin ressalta, sobretudo, o caráter flexível dos gêneros, que admite o estilo de criação verbal individual de cada usuário da língua na relação com o outro. Por isso, podemos considerar, conforme o filósofo da linguagem, que os gêneros se apresentam numa inesgotável diversidade, porque as possibilidades de atividade humana nas relações sociais são igualmente inesgotáveis. Tal observação deve-se ao fato de o gênero e a atividade humana (verbal ou não-verbal) serem indissociáveis das esferas sociais nas quais os indivíduos interagem. 3 Grifo utilizado pelo autor. 285
4 Dessa forma, os gêneros discursivos são dinâmicos e, em sua concretude, trazem diversas vozes e posicionamentos. Essa dinamicidade e pluralidade de vozes, que emergem a partir de uma combinação de linguagens e estilos que formam uma unidade superior, são resultantes de relações interpessoais que se estabelecem entre os falantes historicamente situados (Bakhtin, 1998, p.75). Tais características permitem considerar a atividade linguística essencialmente heterogênea e dialógica, uma vez que todo enunciado fará ressoar outros discursos. A seguir, apresentamos reflexões sobre os procedimentos metodológicos a serem desenvolvidos na pesquisa. Procedimentos metodológicos Como a teoria dialógica do discurso proposta pelo Círculo de Bakhtin não fornece um método de análise pré-estabelecido, mas sim sugestões metodológicas, é tarefa do pesquisador criar uma metodologia que oriente sua pesquisa. Assim, com vistas a atingir os objetivos estabelecidos para a investigação, desenvolvemos alguns procedimentos metodológicos que orientarão as análises pretendidas. Primeiramente, será feito um levantamento de jornais brasileiros que possuem anúncios de classificados em que homens e mulheres oferecem seus serviços sexuais. Logo após, faremos uma seleção dos jornais publicados entre 2009 e 2010 de diferentes regiões do país, visando contemplar a produção, circulação e recepção do discurso em diferentes materializações. Até o momento, já coletamos anúncios, publicados entre 2009 e 2010, nos jornais Zero Hora e Diário Gaúcho, de Porto Alegre, Jornal Agora, de Rio Grande, da Região Sul; Folha de São Paulo, de São Paulo, e O globo, do Rio de Janeiro, ambos da Região Sudeste; e o Jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza, da Região Nordeste. Entendemos que os anúncios coletados podem constituir o material de análise, uma vez que apresentam uma importante heterogeneidade de características discursivas e são publicados em jornais dirigidos a diferentes públicos. Para o desenvolvimento da análise, pretendemos selecionar anúncios, levando em consideração aspectos relativos a expressões discursivas sobre características comportamentais e corporais, signos ideológicos escolhidos para auto-nomeação e elementos discursivos que permitam verificar o endereçamento do anúncio. Considerando que os discursos se entrecruzam com outros discursos e vozes sociais, faremos a análise das palavras que compõem cada anúncio, verificando a presença do outro na constituição da imagem do locutor e do interlocutor. Após essa etapa, analisaremos a auto-nomeação do sujeito anunciante. Por fim, observaremos as variadas vozes, que se combinam e tornam o discurso dos anúncios lugar de subjetividade. Considerações finais Neste trabalho, de maneira breve, procuramos apresentar as ideias iniciais sobre pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos de um projeto ainda em elaboração. Acreditamos que a pesquisa a ser desenvolvida possibilitará a reflexão sobre o gênero classificados como um exemplo de gênero que emerge do interior do jornal, veículo de publicidade, e se transforma num espaço sucinto de anúncio de interesses humanos que revelam as relações sociais e históricas de uma dada comunidade discursiva. 286
5 Dessa maneira, a abordagem do signo como elemento de realização material da ideologia mostra que não existe neutralidade na linguagem e na palavra. Assim, a análise do signo ideológico pelo viés da teoria dialógica do discurso possibilita compreender a construção da imagem do sujeito anunciante através de expressões que indicam características psicológicas e comportamentais e possibilita ainda que a imagem do interlocutor construída no discurso do anúncio seja igualmente recuperada. Vale destacar também, que só compreendemos os sentidos de um determinado discurso porque ele está configurado num gênero discursivo que por sua vez só tem sentido na relação com outros gêneros. Sobre isso, Bakhtin salienta que: O sentido é potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em contato com outro sentido [...] Ele deve sempre contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (como a palavra revela os seus significados somente no contexto). (Bakhtin, 2003, p.382) Portanto não há palavra, enunciado ou até mesmo discurso, que tenha sentido isoladamente, já que nenhum enunciado poder ser o primeiro e o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado (Bakhtin, 2003, p.371). Assim, fica evidenciado que as relações dialógicas, na amplitude postulada pelo Círculo de Bakhtin, são constitutivas da linguagem e dos discursos. Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance [1975]. Trad. Bernadine et al. 4.ed. São Paulo: Editora da UNESP, Hucitec, BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal [1979]. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem [1929]. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12.ed. São Paulo: Hucitec, FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, Corpus AGORA. Jornal. Caderno classificados, seção serviços liberais. Rio Grande, 29 de junho de DIÁRIO DO NORDESTE. Jornal. Caderno Social e Serviços, seção encontros, subseção relax e acompanhantes. Fortaleza, 30 de maio de DIARIO GAÚCHO. Jornal. Caderno classidiário, seção serviços, subseção relax/acompanhantes/massagem erótica. Porto Alegre, 22 de abril de FOLHA DE SÃO PAULO. Jornal. Caderno Classificados, seção negócios, subseção acompanhantes. São Paulo, 23 de maio de O GLOBO. Jornal. Caderno Classificados, seção empregos e negócios, subseção encontros pessoais. Rio de Janeiro, 17 de setembro de ZERO HORA. Jornal. Caderno ZH Classificados Produtos e Serviços, seção serviços, subseção relax/ acompanhantes/massagem erótica. Porto Alegre, 02 de maio de
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