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3 TEMAS DE PEDIATRIA NÚMERO 86 Nutrição e desenvolvimento cerebral da criança Mário Cícero Falcão Médico, Pediatra e Nutrólogo; Doutor em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Médico Encarregado da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Membro da Diretoria de Publicações da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Membro do Departamento de Suporte Nutricional da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Membro do Departamento de Nutrição da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Membro do Departamento de Suporte Nutricional da Sociedade Brasileira de Pediatria; Diretor Científico da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral; Editor Associado da Revista Brasileira de Nutrição Clínica; Editor Executivo da Revista Pediatria (São Paulo); Tesoureiro da Federação Latino-Americana de Nutrição Parenteral e Enteral. Nestlé Nutrition Institute 1
4 Endereço para correspondência: Dr. Mário Cícero Falcão Rua Vieira de Moraes, 45, apto. 51 CEP São Paulo SP O presente trabalho reflete exclusivamente o ponto de vista do autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo. 2 Nestlé Nutrition Institute
5 RESUMO Para que a criança tenha um ótimo desenvolvimento cerebral, é importante que ela receba uma nutrição adequada no período fetal e nos primeiros anos de vida. Dentre os macronutrientes, em primeiro lugar deve-se salientar o nutriente energético de escolha, ou seja, a lactose, que está presente no leite humano em quantidades adequadas. Entretanto, só o componente energético não é o bastante para o crescimento neurológico, para o qual é necessário que a criança receba proteínas em quantidade e qualidade adequadas, principalmente no que se refere ao seu teor de aminoácidos, tanto os essenciais como os não-essenciais ou condicionalmente essenciais. Outro componente essencial para o crescimento e o desenvolvimento cerebral é o lipídio. Já é bem conhecida a relação entre a ingestão de ácidos graxos essenciais (linoleico e linolênico) e poli-insaturados de cadeia longa (araquidônico e docosaexaenoico) e o desenvolvimento do cérebro e da retina, uma vez que os ácidos poli-insaturados de cadeia longa são transformados em fosfolipídios, que farão parte das membranas celulares. O ferro é outro nutriente importantíssimo para o desenvolvimento cerebral; baixos estoques desse metal já interferem no metabolismo neuronal, mesmo sem causar sintomatologia. Outros micronutrientes envolvidos no metabolismo cerebral que devem fazer parte da dieta do lactente são as vitaminas (A, D e complexo B), o iodo, o zinco e o selênio. Por fim, vale enfatizar que o leite humano contém praticamente todos esses nutrientes em quantidades adequadas para um crescimento e um desenvolvimento cerebral ótimos e que, na falta desse leite, fórmulas infantis de partida e de seguimento devem ser utilizadas. Essas fórmulas são enriquecidas com vários dos nutrientes fundamentais para o desenvolvimento do cérebro. Nestlé Nutrition Institute 3
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7 SUMÁRIO Introdução... 7 Papel dos carboidratos... 9 Papel das proteínas e dos aminoácidos... 9 Importância da taurina Papel dos lipídios Ácidos graxos essenciais Ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa Nutrição e desenvolvimento neurológico Nutrientes e desenvolvimento neurológico Papel das vitaminas Vitamina A Vitamina D Complexo B Importância do ferro Importância do zinco Importância do selênio Nutrição fetal, neonatal e do lactente e déficit neurológico e visual Considerações finais Referências bibliográficas Nestlé Nutrition Institute 5
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9 INTRODUÇÃO A nutrição tem papel fundamental em nosso crescimento e desenvolvimento durante toda a vida, inclusive no período fetal. Além de fornecer elementos para o funcionamento dos diversos órgãos e sistemas, a alimentação balanceada provê o organismo de uma série de nutrientes, com funções específicas em várias reações do corpo humano (1). Esse papel é muito mais relevante nas crianças, que necessitam de maiores quantidades de nutrientes por estarem em crescimento. E tão importante quanto a quantidade da nutrição é a sua qualidade, visto que na infância existe a necessidade de uma distribuição adequada de macro e micronutrientes (2). A deficiência tanto de macro como de micronutrientes está associada a um menor crescimento somático e, consequentemente, a um menor desenvolvimento de todos os órgãos durante a fase em que a velocidade de crescimento é maior. Isso justifica a afirmação de que a alimentação é um dos fatores mais importantes para a saúde da criança (3). O crescimento é parte essencial do desenvolvimento humano. As modificações na forma do corpo, desde o feto até o adulto, mostram que o crescimento inclui alterações na proporção e na composição corpóreas (4). No feto, metade do comprimento do corpo é constituída pela cabeça, enquanto no adulto a cabeça corresponde a apenas um oitavo da altura total. Nestlé Nutrition Institute Semelhantemente, as modificações na composição do corpo devem-se ao crescimento de seus diversos órgãos e partes (5). O crescimento fetal depende basicamente da fisiologia materna e placentária, do potencial genético e do aporte materno de oxigênio e nutrientes, bem como de fatores hormonais (6). E vale lembrar que o meio ambiente fetal também influencia o crescimento. Portanto, situações em que ocorra insuficiência placentária, como hipertensão materna e uso de drogas, interferem no fluxo sanguíneo placentário e consequentemente na nutrição do feto (6). Ademais, situações de privação dietética da mãe, tanto de um como de vários nutrientes, também têm consequências negativas para o crescimento fetal. Pelo exposto, existe uma intrínseca relação entre nutrição fetal e pós-natal, de um lado, e crescimento e desenvolvimento cerebral, de outro. Situações em que ocorrem deficiências de oxigênio e de nutrientes podem colocar em risco a organogênese cerebral e são mais graves no primeiro trimestre de gravidez, período de crescimento celular hiperplásico. Vale ressaltar que deficiências dietéticas maternas de nutrientes essenciais são ainda mais desastrosas para o crescimento e o desenvolvimento fetal (7). Os nutrientes também são necessários para a manutenção e a restauração de tecidos, por exemplo nos processo de cicatrização. Na verdade, a maioria das células do corpo envelhece, morre e 7
10 é substituída por novas células que o organismo construiu a partir dos componentes básicos do alimento. Não é suficiente fornecer ao corpo os meios para o crescimento e para as suas funções. O alimento também fornece substâncias que são necessárias para regulação e controle dos processos metabólicos e para proteger o organismo de doenças infecciosas e crônico-degenerativas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1995/2003), para que as práticas adequadas de alimentação infantil sejam alcançadas é necessário (8, 9) : fornecer uma quantidade de alimentos adequada para suprir os requerimentos nutricionais; proteger as vias aéreas da criança contra a aspiração de substâncias estranhas; não exceder a capacidade funcional e metabólica do trato gastrintestinal e dos rins da criança. O alimento consiste em componentes diferentes que são denominados nutrientes e podem ser classificados de acordo com suas funções básicas, tais como (10) : Nutrientes energéticos são principalmente carboidratos e lipídios; as proteínas também podem ser convertidas em carboidratos e assim usadas para fornecer energia. Nutrientes construtores são principalmente as proteínas que fornecem aminoácidos para crescimento e restauração dos tecidos e os sais minerais que têm função na construção dos ossos e dentes e ajudam a regular os processos orgânicos. Nutrientes protetores são principalmente as vitaminas e minerais, embora alguns tipos de proteínas, aminoácidos e lipídios também possam desempenhar certas funções nesses mecanismos. Por sua vez, a privação proteico-calórica ocorre pela oferta inadequada, associada ao aumento das necessidades e das perdas e à baixa de acréscimo. Geralmente, todos esses fatores estão presentes na criança doente e são exacerbados pelo jejum, que piora sobremaneira o prognóstico desses pacientes (11). A oferta inadequada está relacionada à anorexia própria da doença, a períodos prolongados de jejum para exames diagnósticos ou mesmo a iatrogenia e dietas pouco palatáveis. O aumento das necessidades ocorre pelo estresse metabólico da doença de base, seja ela infecciosa, seja traumática, em conjunção com o estresse psicológico causado pela própria patologia e sua necessidade de hospitalização. Esse aumento está intimamente relacionado, ainda, com um menor acréscimo de nutrientes, principalmente quando o trato gastrintestinal está envolvido primária ou secundariamente pela ocorrência de vômitos, diarréia, fístulas, alterações de motilidade, como gastroparesia e íleo, síndromes disabsortivas e interação droga-nutriente, que na maioria das vezes não é valorizada (12). O estresse e o jejum são dois fatores que determinam o grau e o tipo de desnutrição na criança hospitalizada 8 Nestlé Nutrition Institute
11 e têm uma íntima correlação com a morbimortalidade. Ante uma oferta inadequada, principalmente em caso de jejum, o organismo da criança utiliza seus depósitos para manter a estrutura e a função dos vários órgãos. Entretanto, esses depósitos se depletam rapidamente e então ela começa a utilizar sua massa proteica muscular para gerar energia, caminhando rapidamente para uma desnutrição aguda. Caso já exista algum grau de má nutrição, a privação nutricional terá um efeito deletério muito maior sobre a integridade da criança (13). Ressalte-se que uma desnutrição proteico-energética aguda nos primeiros meses de vida, quando a criança deveria apresentar um ritmo acelerado de crescimento, pode levar a um déficit neuropsicomotor irreversível (14). PAPEL DOS CARBOIDRATOS Os carboidratos são fontes energéticas primárias, fornecendo energia para cérebro, medula, nervos e glóbulos vermelhos. A maior parte dos carboidratos da dieta é de origem vegetal; a única grande exceção é a lactose, presente no leite e seus derivados. A via final do processo de digestão dos carboidratos é a glicose, molécula indispensável para a manutenção da integridade funcional do sistema nervoso; sob condições normais é a única fonte de energia para o cérebro. Além disso, a glicose é precursora de ácidos nucleicos e da matriz do tecido conjuntivo (10). Nestlé Nutrition Institute PAPEL DAS PROTEÍNAS E DOS AMINOÁCIDOS As proteínas foram os primeiros nutrientes considerados essenciais para o organismo por possuírem nitrogênio em sua estrutura. São formadas por múltiplas combinações de aminoácidos e desempenham funções estruturais, reguladoras, de defesa e de transporte nos fluidos biológicos (15). Na raça humana nove aminoácidos são essenciais, ou seja, devem ser fornecidos pela dieta, pois o organismo é incapaz de sintetizá-los. São eles: treonina, triptofano, histidina, lisina, leucina, isoleucina, metionina, valina e fenilalanina. Sua deficiência ocasiona alterações na síntese proteica e em processos bioquímicos e fisiológicos; na criança provoca balanço nitrogenado negativo e graves alterações no crescimento e no desenvolvimento cerebral (16). Os aminoácidos não-essenciais são igualmente importantes na estrutura proteica; no entanto, caso haja deficiência em sua ingestão, eles podem ser sintetizados em nível celular a partir de aminoácidos essenciais. Em recém-nascidos, principalmente prematuros, e em lactentes jovens existe uma terceira classe de aminoácidos, os condicionalmente essenciais, ou seja, que podem ser considerados essenciais em certos estados fisiológicos de desenvolvimento e em determinadas condições clínicas. É o caso de taurina, arginina, cisteína, cistina e possivelmente tirosina (16). 9
12 A qualidade da proteína está ligada à sua capacidade de satisfazer as necessidades orgânicas de crescimento e manutenção. É definida pelo equilíbrio entre aminoácidos essenciais. Na verdade, se um desses aminoácidos estiver presente em quantidade limitante ou insuficiente, a proteína não poderá ser totalmente utilizada na síntese de novos tecidos. As proteínas formam a estrutura básica das células, portanto são indispensáveis para a vida e o crescimento de todos os órgãos, inclusive do cérebro. São utilizadas na formação e na renovação dos tecidos, na síntese de enzimas, hormônios e anticorpos e na regulação de processos metabólicos (17). Há um intercâmbio constante entre proteínas endógenas e dietéticas. Por essa razão, a ingestão de proteína deve ser frequentemente adequada às diversas faixas etárias das crianças. IMPORTÂNCIA DA TAURINA A taurina é um aminoácido que ocorre de forma natural no organismo e na alimentação através da ingestão de proteínas animais. Ela difere da maioria dos aminoácidos, pois não se incorpora às proteínas, existindo em sua forma livre na maioria dos tecidos animais. É mais abundante no músculo, nas plaquetas e no sistema nervoso em desenvolvimento (18). É um aminoácido não-essencial, pois pode ser produzida no organismo através da cisteína. Entretanto, no recém-nascido e no lactente jovem, essa conversão não se mostra adequada, e a taurina é considerada um aminoácido condicionalmente essencial, ou seja, há necessidade de sua oferta através da dieta, visto que, nas situações em que os lactentes são alimentados com dieta láctea sem taurina (leite de vaca integral), os níveis plasmáticos desse aminoácido declinam significativamente (19). A deficiência também pode ocorrer em pacientes que recebem nutrição parenteral por períodos prolongados. A taurina é um neurotransmissor, um regulador de sódio e água intracelular e um estabilizador das membranas celulares. Participa também de processos de desintoxicação celular e está envolvida na produção e na atividade da secreção biliar por ser precursora do ácido taurocólico, que entra na composição de ácidos biliares (20). A taurina melhora a força de contração do músculo cardíaco, prevenindo o desenvolvimento de miocardiopatias. Esse aminoácido também facilita o desempenho das células da retina e as protege dos efeitos agressivos da luz ultravioleta e de substâncias tóxicas, com os radicais livres, visto que a deficiência de taurina leva à degeneração dos fotorreceptores, medida através do eletrorretinograma (21). Com base nisso e como se sabe que existem grandes quantidades de taurina no leite humano, o Codex Alimentarius (FAO/OMS-1994) preconiza o enriquecimento de todas as fórmulas infantis com taurina para aprimorar o desempenho neurológico dos lactentes, sua 10 Nestlé Nutrition Institute
13 função retiniana e cardíaca e propiciar melhor síntese de sais biliares (22). PAPEL DOS LIPÍDIOS Os lipídios são macronutrientes que desempenham funções energéticas e estruturais e interagem na síntese hormonal. Os ácidos graxos são responsáveis pelo fornecimento de energia, enquanto os fosfolipídios fazem parte da membrana celular, desempenhando função estrutural de alta importância biológica. Além disso, as gorduras e os óleos contidos nos alimentos conferem sabor e sensação de saciedade, além de transportar as vitaminas lipossolúveis (23). Os lipídios são compostos formados pela agregação de átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio; alguns apresentam também fósforo e enxofre em sua estrutura e, bioquimicamente, originam-se da esterificação de ácidos graxos e álcoois. Podem ser classificados em simples, complexos e derivados. Outra classificação leva em conta o comprimento da cadeia e a posição e configuração das duplas ligações, a saber (23) : Comprimento da cadeia Curta Média Longa Duplas ligações Saturados Insaturados Monoinsaturados Poli-insaturados Entretanto, mais importante que a classificação bioquímica é a função dos vários lipídios que compõem o organismo, como (23) : Nestlé Nutrition Institute Reserva energética (triglicérides). Isolantes térmicos. Isolantes elétricos (lipídios não-polares). Protetores de órgãos vitais. Componentes de membranas celulares. Precursores de mediadores bioquímicos (leucotrienos, prostaglandinas, prostaciclinas e tromboxanos, entre outros). Os ácidos graxos são sintetizados a partir de ligações entre unidades de dois carbonos. A presença de duplas ligações nomeia o ácido graxo (23) : Ácido graxo insaturado (uma ou mais duplas ligações). Ácido graxo saturado (sem duplas ligações). Os triglicérides são ésteres do glicerol que contêm três moléculas de ácidos graxos, e sua classificação é estabelecida conforme o carbono terminal, o tamanho da cadeia e a função orgânica, a saber (23) : C<6 - triglicérides de cadeia curta (TCC). C triglicérides de cadeia média (TCM). C>12 - triglicérides de cadeia longa (TCL). Do ponto de vista metabólico, os triglicérides desempenham o papel de fornecedores de energia, pois são oxidados no fígado, liberando energia em forma de trifosfato de adenosina (ATP). Os ácidos graxos monoinsaturados são fornecidos por meio de fontes vegetais, como óleo de oliva, canola, açafrão e amendoim, e estão associados à redução da incidência de doenças cardiovasculares. Essa redução parece dever-se à 11
14 facilitação do transporte lipídico e à diminuição dos níveis de colesterol (24). Os ácidos graxos de cadeia longa são oriundos de fontes animais e de algumas gorduras vegetais, como o cacau. Existe associação direta entre o consumo de gorduras saturadas e a incidência de doenças cardiovasculares pela elevação dos níveis séricos de colesterol e de lipoproteínas de baixa densidade (24). Os triglicérides de cadeia média não necessitam da lípase pancreática nem dos sais biliares para a absorção intestinal. Por não ficar armazenados no fígado nem no tecido adiposo, eles são utilizados rapidamente, em conjunto com a glicose, como fonte energética. Além disso, no metabolismo celular, independem da carnitina para a oxidação mitocondrial e não comprometem o sistema retículo-endotelial (25). Os triglicérides de cadeia curta podem ser sintetizados, endogenamente, por enterobactérias através da fermentação de fibras de polissacarídeos. Sua absorção ocorre pela mucosa do cólon e podem ser utilizados na neoglicogênese. Além disso, os triglicérides desse tipo têm a capacidade de manter a integridade dos enterócitos (25). As lipoproteínas são compostos hidrossolúveis formados a partir de fosfolipídios, triglicérides e colesterol em associação com apoproteínas. Dentre suas funções, destacam-se as de (23) : Transportadoras de lipídios e colesterol. Precursoras das lipoproteínas de baixa densidade. Receptoras do colesterol esterificado. ÁCIDOS GRAXOS ESSENCIAIS Quase a totalidade dos ácidos graxos pode ser sintetizada pelo organismo a partir de proteínas e carboidratos da dieta, porém os ácidos graxos poliinsaturados linoleico e linolênico não o são, pois as células dos mamíferos não têm capacidade nem habilidade de inserir uma dupla ligação antes do carbono-9 da cadeia dos ácidos graxos, contando-se a partir do ômega terminal. Pelo exposto, o ácido graxo linoleico (18:2 ϖ-6) e o α-linolênico (18:3 ϖ-3) são reconhecidos como ácidos graxos essenciais. Esse fato faz com que a ingestão lipídica seja vital para a espécie humana, pois a fonte desses ácidos graxos é exclusivamente dietética (26). Os ácidos graxos essenciais possuem importantes funções, como transporte e oxidação de colesterol, e são componentes dos fosfolipídios da membrana celular e precursores dos ácidos poliinsaturados de cadeia longa (araquidônico e docosaexaenoico) (27). Os ácidos graxos são componentes importantes dos fosfolipídios, que originam toda a estrutura celular, inclusive suas membranas. A composição da membrana modula sua fluidez e sua permeabilidade e é determinante de suas funções (23) : Permeabilidade. Atividade receptora de hormônios. Transporte de íons e solutos. Atividade enzimática. Resposta elétrica. As membranas celulares possuem estruturas compostas de moléculas proteicas 12 Nestlé Nutrition Institute
15 e lipídicas. Estas últimas agrupam-se em duplas camadas, em que as porções proteicas se integram, promovendo assim uma barreira seletivamente permeável. Essas membranas são estruturas dinâmicas, já que suas moléculas proteicas e lipídicas (fosfolipídios, glicolipídios e colesterol) difundem-se dentro das próprias camadas. Essa fluidez depende da quantidade de ácidos graxos existentes na membrana, e a presença de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa tende a torná-la ainda mais fluida (28). A deficiência de ácidos graxos essenciais relaciona-se com a deficiência de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa (série ϖ-6 e ϖ-3). A sintomatologia dessa síndrome inclui dermatite, hipopigmentação, hipotonia, aumento do metabolismo, alteração da homeostase hídrica, aumento da fragilidade e da permeabilidade das membranas celulares, alterações eletrocardiográficas e eletroencefalográficas e maior suscetibilidade a infecções (29). A deficiência perinatal de ácidos graxos essenciais resulta em (30) : A curto prazo Alteração da síntese de surfactante. Alteração da função plaquetária. Menor resistência às infecções. A médio e longo prazo Déficit do desenvolvimento neuropsicomotor. Déficit visual. Menor velocidade de crescimento. Tanto o déficit neurológico quanto o visual decorrem da deficiência de fosfolipídios do ácido araquidônico e do Nestlé Nutrition Institute docosaexaenoico no cérebro e na retina. Vale a pena ressaltar que, nos recémnascidos pré-termo, essas deficiências e alterações poderão ser mais evidentes em menor espaço de tempo (31, 32). ÁCIDOS GRAXOS POLI-INSATURADOS DE CADEIA LONGA Os ácidos graxos essenciais (ácido cis-linoleico e α-linolênico) são responsáveis pela formação das duas séries de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa, a ϖ-6 e a ϖ-3, que resultam no ácido araquidônico e no docosaexaenoico (28). Normalmente, o ácido linoleico (18:2 ϖ-6) se transforma em ácido α-linoleico (18:3 ϖ-6), que se converte em ácido araquidônico (20:4 ϖ-6). A síntese do ácido araquidônico é mediada pelas enzimas δ-6-dessaturase e elongase. A ativação dessas enzimas alonga a cadeia de carbono, passando de 18 para 20 ou 22 átomos e inserindo de 3 a 6 duplas ligações, tornando-o assim mais insaturado. Excessos do próprio ácido e de outros ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa, como o ácido eicosapentaenoico ou o docosaexaenoico, íons de cálcio e alguns hormônios, podem inibir a ação da enzima dessaturase, tendo como consequência o bloqueio da síntese do ácido araquidônico e a formação do ácido oleico [ϖ-9] (28). A importância desse bloqueio se reflete no fato de que o ácido araquidônico é precursor de mediadores bioquímicos 13
16 envolvidos na inflamação, infecção e modulação do sistema imune, pois os eicosanoides, principalmente a prostaglandina (série 2) e o leucotrieno (série 4), são sintetizados a partir do ácido araquidônico. Além disso, tais compostos agem em uma grande variedade de processos evolutivos e fisiológicos (33) : Fechamento do ducto arterioso. Diminuição da translocação bacteriana. Interação plaquetária. Integridade da função renal. Pela outra via metabólica, o ácido α-linolênico (18:3 ϖ-3) se transforma em ácido eicosapentaenoico e docosaexaenoico, que também são precursores da prostaglandina (série 3) e do leucotrieno (série 5). Essas conversões são igualmente mediadas pela enzima dessaturase. O ácido araquidônico e o eicosapentaenoico, através da ação de enzimas intracelulares (lipoxigenases) e de membranas (livres ou associadas cicloxigenases), convertemse em prostaglandinas, tromboxanos e leucotrienos (34). Estudos com carbono-13 marcado mostraram que tanto o recém-nascido de termo quanto o pré-termo são capazes de sintetizar o ácido araquidônico e o docosaexaenoico pela elongação e dessaturação dos ácidos graxos essenciais. Entretanto, essa habilidade no processo de síntese depende de (35) : Oferta adequada de ácidos graxos essenciais. Oferta energética proporcionada, isto é, relação adequada entre carboidratos e lipídios. Presença de atividade enzimática, principalmente da enzima dessaturase. Caso as condições descritas acima não estejam presentes, os ácidos graxos essenciais ofertados serão oxidados para gerar energia, e a síntese dos ácidos das séries ϖ-3 e ϖ-6 talvez deixe de ocorrer. Vale ressaltar que o sistema enzimático de produção desses ácidos poderá ser insuficiente ou imaturo, resultando em produção deficitária. Como decorrência disso, em recém-nascidos pré-termo ou doentes, tais ácidos seriam condicionalmente essenciais (36, 37). NUTRIÇÃO E DESENVOLVIMENTO NEUROLÓGICO Nas últimas décadas várias pesquisas mostraram os efeitos da desnutrição sobre o desenvolvimento neuropsicomotor das crianças. Sabe-se que vários fatores alteram esse desenvolvimento, entre eles os genéticos, o meio ambiente, o nível socioeconômico e a presença de comorbidades, mas seguramente a nutrição ocupa papel importantíssimo no desenvolvimento neurológico da criança (38). Estudos bem conduzidos demonstraram que a suplementação nutricional, em determinadas situações, compensa algum déficit neurológico em crianças desnutridas, mormente a suplementação de micronutrientes (39). Existem várias teorias para justificar a relação entre desnutrição e déficit cognitivo na infância, e uma delas aponta 14 Nestlé Nutrition Institute
17 lesões irreversíveis no cérebro em razão de uma dieta inadequada tanto quantitativa quanto qualitativamente (40). Esse prejuízo neurológico será mais evidente quanto mais cedo ocorrer a desnutrição e, caso se dê já uma agressão nutricional durante a vida intrauterina, a magnitude da lesão será ainda maior. Nas situações em que ocorrer o somatório de crescimento intra-uterino restrito e desnutrição nos primeiros anos de vida, o déficit neurológico se tornará ainda mais evidente. Um estudo realizado com crianças de baixo peso ao nascer mostrou deficiência neurológica em comparação com recém-nascidos de peso adequado ao nascimento. Uma das críticas feitas a esse estudo é sobre a população participante, pois a maioria dessas crianças de baixo peso também era prematura e poderia apresentar outros fatores que afetariam seu desenvolvimento neurológico, como hemorragias intracranianas (41). Vale ressaltar que nos países em desenvolvimento a maioria das crianças de baixo peso ao nascer é composta de recém-nascidos pequenos para a idade gestacional e que muitos deles são resultado de crescimento intra-uterino restrito do tipo simétrico, ou seja, casos em que a agressão nutricional ocorreu precocemente na gravidez, com grandes chances de afetar o crescimento cerebral no período mais crítico, quando ocorre a divisão celular. Estudos com animais mostraram que a desnutrição promove alterações de Nestlé Nutrition Institute estrutura e funções cerebrais, principalmente quando ocorre em períodos de mitose acelerada. Essas modificações incluem redução da mielina, de neurotransmissores e das ramificações dendríticas, além de alterações da mitocôndria neuronal (41). A análise das pesquisas sobre suplementação nutricional mostra informações interessantes, pois não se observaram benefícios importantes para o desenvolvimento neurológico da criança quando a suplementação é dada somente à gestante. Isso demonstra que o déficit nutricional durante os dois primeiros anos de vida também acarreta sérios prejuízos ao desenvolvimento neuropsicomotor da criança, levando-se em conta que esse período é um dos mais propensos à ocorrência de desnutrição (42). Além disso, vários estudos demonstraram a relação entre ofertas nutricionais adequadas no primeiro ano de vida e melhor desenvolvimento cognitivo futuro, inclusive em crianças que sofreram algum grau de desnutrição após os 2 anos de idade (38). Lucas e colaboradores demonstraram, em 1998, diferenças significativas no desenvolvimento neurológico de crianças prematuras aos 8 anos de idade em relação à dieta dos primeiros meses de vida. O grupo que recebeu leite humano apresentou melhor desempenho intelectual em comparação ao grupo alimentado com fórmulas para pré-termo. No entanto, confrontando-se os grupos que receberam aleitamento artificial, os que foram alimentados com 15
18 fórmula para pré-termo mostraram melhor desempenho do que os alimentados com fórmula de partida (43). NUTRIENTES E DESENVOLVIMENTO NEUROLÓGICO Consultar tabelas 1 e 2 (páginas 27 e 28). Vários estudos afirmam que uma drástica redução de energia e/ou de nutrientes essenciais, durante os primeiros anos de vida, provoca efeitos deletérios na estrutura e na função do sistema nervoso central (44). A associação entre restrição do crescimento intra-uterino e desnutrição precoce na vida pós-natal mostra alterações como diminuição do número de células e do conteúdo de DNA nas células restantes (45). Além disso, as pesquisas também revelam menor produção de neurotransmissores (acetilcolina, dopamina e norepinefrina) e menor deposição de mielina. As funções correlatas dessas alterações bioquímicas induzidas pela desnutrição seriam variações eletroencefálicas e dos potenciais evocados auditivo e visual. A correlação entre alterações neurológicas e restrição do crescimento intrauterino é bem mais evidente ante a deficiência de iodo. Entretanto, outros déficits nutricionais também devem ser apontados, como deficiência de ferro, de taurina e de ácidos graxos essenciais (46). Em relação ao iodo, o desenvolvimento do cérebro humano depende dos hormônios tireoidianos, e o período mais crítico da deficiência de iodo situa-se entre a vida fetal e o terceiro ano de vida. Durante várias décadas, a falta desse nutriente foi considerada a causa mais comum de retardo mental prevenível. Estima-se que 800 milhões de indivíduos sejam vulneráveis à deficiência de iodo e, dentre eles, 200 milhões já estariam afetados (47). Os ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa e seus derivados eicosanoides estão envolvidos na regulação do crescimento celular através da modulação gênica. A prova disso é o efeito do ácido docosaexaenoico na maturação funcional da retina, observado em várias espécies animais, inclusive nos primatas, em que esse ácido promove efeito direto na diferenciação dos fotorreceptores (48). Vale lembrar que tal efeito se inicia na vida intra-uterina, mas só termina no final do primeiro ano de idade, o que mostra a importância da presença de níveis adequados de ácido docosaexaenoico no feto, no recém-nascido e no lactente jovem (49). A regulação da expressão gênica pelos ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa é realizada através da transcrição, e os fatores que ativam essa transcrição têm estrutura semelhante à dos receptores nucleares dos hormônios da supra-renal, da vitamina D, da tiroxina e do ácido retinoico (50). Os ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa são componentes de vários fosfolipídios que, em conjunto com o colesterol, promovem a organização das membranas celulares e de diversas 16 Nestlé Nutrition Institute
19 organelas intracelulares. Já é bem conhecida a relação entre alteração dos ácidos graxos das membranas celulares e déficit funcional quanto a fluidez, espessura, propriedades elétricas e interação com proteínas das referidas membranas (23). A deficiência da série ϖ-3 dos ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa provoca uma troca de ácidos graxos na membrana celular, mais evidente nas células nervosas e retinianas, em que ocorre alteração da permeabilidade celular. Essa permeabilidade é ainda mais afetada quando se dá a substituição de um ácido graxo poli-insaturado por outro saturado, o que põe em risco a integridade da célula com alteração da molécula de fosfolipídio e prejuízo de sua função (23). Além disso, essa troca de ácidos graxos diminui o potencial elétrico da membrana celular porque bloqueia os canais de sódio e de cálcio (44). Ademais, deve-se observar com bastante interesse o efeito dos ácidos graxos essenciais (linoleico e linolênico) na maturação da função retiniana. As crianças alimentadas precocemente com leite humano apresentam maiores quantidades do ácido araquidônico e do docosaexaenoico no córtex cerebral e na retina, pois o leite materno, além de conter teores adequados de ácidos graxos essenciais, também apresenta em sua composição ótimas quantidades de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa (DHA e ARA) (51). Através da análise do potencial evocado visual, que avalia a integridade neuronal entre a retina e o córtex occipital, foi Nestlé Nutrition Institute possível observar que crianças alimentadas com leite humano ou que receberam suplementação de óleo de peixe (fonte de DHA) apresentavam melhor desempenho visual em comparação com crianças que receberam fórmula infantil convencional. Esse desempenho melhor é justificado pela presença de maiores níveis de ácidos graxos essenciais e ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa em suas membranas celulares. Vale também ressaltar que essas mesmas crianças, aos 3 anos de idade, apresentavam melhor acuidade visual e melhor desempenho neuropsicomotor quando comparadas às crianças que não receberam leite humano (44). À luz da biologia molecular, é importante ressaltar os efeitos dos nutrientes na expressão gênica e na regulação molecular. Vários nutrientes (aminoácidos, ácidos graxos e micronutrientes) podem influenciar a transcrição do DNA e, consequentemente, a expressão gênica, a síntese e a estabilidade do RNA mensageiro, a síntese de proteínas nucleares e a atividade enzimática intracelular (44). Deve-se enfatizar o fato de que o excesso de nutrientes também é prejudicial para o desenvolvimento neurológico da criança (43). Isso pode ser comprovado quando se analisa o efeito de ofertas elevadas de proteínas a prematuros e sua estreita relação com índices menores de quociente de inteligência. PAPEL DAS VITAMINAS As vitaminas são nutrientes necessários, em quantidades pequenas, para o cres- 17
20 cimento adequado e a manutenção do organismo. Não fornecem energia, não servem como construtores, mas agem na regulação dos processos metabólicos. Um estudo realizado no ano passado mostra que muitas pessoas se beneficiam da suplementação de vitaminas, visto que não têm dieta balanceada, principalmente nos extremos da vida, como crianças e idosos (52). Outro estudo, este já próprio para a faixa etária pediátrica, mostra que a suplementação de vitaminas em crianças deve seguir guias de recomendações específicas, como o Reference Nutrient Intake (RNI), para diferentes idades (53). Uma pesquisa desenvolvida na Inglaterra demonstra a dificuldade de estabelecer as necessidades diárias de vitaminas para crianças abaixo de 4 anos de idade, enfatizando que as recomendações devem ser mais bem elaboradas, visto que essas crianças podem ter uma ingestão inadequada de vitaminas e desenvolver deficiências subclínicas (54). VITAMINA A A Vitamina A é essencial ao crescimento e desenvolvimento da criança. Atua também na manutenção da visão e no funcionamento adequado do sistema imunológico, além de manter saudáveis as mucosas, que atuam, igualmente, como barreiras de proteção contra infecções. A hipovitaminose A é uma doença nutricional grave e constitui a causa mais freqüente de cegueira prevenível entre crianças. Além das alterações oculares que podem levar à cegueira, essa deficiência contribui com o aumento das mortes e das doenças infecciosas na infância. Um estudo americano publicado em 2007 mostrou que a suplementação regular de vitamina A reduz a gravidade de doenças diarreicas, diminuindo em 23% a mortalidade de crianças com diarreia cuja idade varia entre 6 e 59 meses (55). Corroborando esses dados, uma pesquisa desenvolvida no México também mostrou algum efeito redutor sobre a incidência de diarreia em crianças durante o verão (56). Outro estudo, conduzido no Sri Lanka, mostrou resultado muito importante ao concluir que a suplementação de vitamina A em escolares sadios diminuiu o absenteísmo por doenças infecciosas em comparação com um grupo controle que recebeu placebo (57). É sabido que crianças de países em desenvolvimento têm maior deficiência de vitamina A em comparação com crianças de países ricos. Um estudo chinês reforça essa deficiência e mostra que o grupo de maior risco de hipovitaminose A é composto de crianças jovens, provenientes de regiões rurais, com pais de baixa instrução, que não ingerem alimentos ricos em vitamina A (58). VITAMINA D Atualmente as recomendações de suplementação de vitamina D para o lactente 18 Nestlé Nutrition Institute
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