V Encontro de Pós-Graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP - EPOG
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- Beatriz Brandt Valverde
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1 V Encontro de Pós-Graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP - EPOG FFLCH/ USP São Paulo, 23 a 26 de novembro de Título proposta: Transe audiovisual das celebrações rave: reflexões sobre a era da reprodutibilidade técnica Carolina Abreu Fui tomada de grande surpresa quando encontrei minha apresentação convidada para uma mesa sobre drogas neste Encontro. Confesso que fiquei de alguma forma contrariada e intrigada: o resumo proposta que eu enviei não tinha nada a ver com drogas ou uso de psicoativos. Apenas uma idéia preconcebida de rave ou de transe poderia agrupar a proposta à temática das drogas. O texto que eu pretendia apresentar trata-se de resumo da terceira parte da minha tese, sobre a questão do uso de tecnologias de reprodução áudio visual pelo festejar rave, de como a reprodutibilidade técnica se torna uma linguagem, talvez com efeitos de transe trance é nome de um gênero de música eletrônica muito comum em raves. Confesso que desejei dialogar com estudos benjaminianos que encontram espaço na filosofia e letras dessa faculdade. Porém, considerando os títulos dos trabalhos dos colegas na mesma mesa, me animei, achei interessante e desafiante um possível diálogo com esse recorte, e acabei elaborando um texto específico para hoje. Como muitos de vocês devem saber a prática das raves, que já data aproximadamente quinze anos no Brasil, se vale do uso de várias substâncias psicoativas, especialmente o esctasy, e eu não sou nem cínica nem tola de tratar as raves ignorando o peculiar uso de drogas que se faz nestas situações; mas de fato minha pesquisa não é sobre drogas, mas sobre festa. Com o título Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual, é da perspectiva da antropologia da performance e da antropologia da experiência que eu encontro as principais questões da minha pesquisa. Meu mestrado, no mesmo departamento, debruçou-se também no contexto das raves, mas com outras questões, em outra linha de pesquisa, procurando explorar a dinâmica de agrupamentos urbanos através da festa e da delimitação de circuitos pelos espaços das cidades e da internet. Meu interesse no doutorado é o de lançar luz sobre a natureza da experiência nas raves de trance, focando o esquecido, o rasurado e o oculto pelos seus discursos e atuações - olhar para 1
2 o esquecido, o rasurado e o oculto é proposta metodológica de Walter Benjamin (1994) e Clifford Geertz (1989). Volta-se para os ruídos, os elementos não-resolvidos e esquecidos na criação de uma xxxperience. Xxxperience é nome de rave brasileira, que em outubro deste ano comemorou 14 anos como mais de uma centena de edições realizadas. Eu parto da desconfiança sobre a instauração de uma realidade absoluta e paralela pela festa, e trata de sua fragilidade e de seu inacabamento. Procura pelos planos em conflito, carregados de tensão que são operados nas montagens realizadas pelo modo de festejar rave. * (...) seja no ritual tribal xamânico ou no ritual eletrônico trance, a dança representa a busca por um estado de transcendência coletiva. Podemos inclusive comparar os líderes espirituais, Xamãs, com os DJs. Ambos controlam o ritmo, a frequência, a velocidade do som psicodélico, proporcionando aos demais o estado de transe. O Psychedelic Trance recupera o sentido tribal e transcendental de dançar. As raves se comparam às cerimônias indígenas religiosas, como as do Pow-wows americanos, ou nos cânticos noturnos do índios Truká (interior de Pernambuco), que usam a música repetitiva e a droga Jurema para contactar um universo paralelo. (artigo A cultura além da música de Lívia Paupério, jornalista e raver, disponível no site Zuvuya) 1 A justaposição rave do ritual tribal xamânico com o eletrônico trance dispararam questões centrais para essa pesquisa: a qual experiência se refere a montagem rave dos poderes das tecnologias do final do século XX com imagens de um passado tido como primitivo? Que utopias guardam essas visões? Que experiência a performance da festa produz? Será possível pensar a própria rave como uma imagem dialética que comporta questões não-resolvidas entre a sociedade urbana ocidental e seu imaginário sobre um passado primordial tribal? Quais outras montagens as raves operam? * Pitty, 25 anos, numa reportagem de revista Beatz (n.6, 2003: 15-16), se definiu double face. Durante a semana traja calça social e sapato alto como profissional de marketing de uma empresa de computadores, e nos finais de semana usa roupas coloridas, de tecidos leve, para dançar nas raves de trance, onde se sente parte de um outro universo, imaginário e idealizado. Nas raves, deixa à mostra a tatuagem de Ganesh que cobre quase toda sua costa, ama tomar banho frio de cachoeira, admira borboletas e acredita em fadas e duendes. A possibilidade de 1 Disponível em: Acessado em: 5 de maio de
3 ficar descalça purifica minha alma, diz Pitty. Sobre a sua primeira rave, à beira da represa de Guarapiranga, declara: Dancei muito progressivo e vi o sol nascer junto com um monte de gente ao meu lado. Descobri um mundo novo. Qual era a performance mesmo? Da executiva ou da raver descalça que expõe sua enorme tatuagem de Ganesh? Para Erving Goffman (1995) todo o mundo é um palco, o mundo da interação social estaria cheio de atos rituais; diferentemente Victor Turner (1987) localiza a realidade dramatizada pelo não-ordinário, pelos usos especiais. A fase dramatúrgica começaria quando se dá interrupções no fluxo diário da interação social. Schechner (1985), no mesmo caminho de Turner focando os meta teatros da vida social, considera a performance como um comportamento restaurado : atende a um roteiro razoavelmente estruturado, significativo culturalmente, numa seqüência de movimentações em cenários específicos que se utiliza de elementos altamente codificados, mas que se projeta no futuro, em uma representação do que se quer ser. A performance da rave procura restaurar o ritual, mas atualiza a versão de um ritual que é genérico. Refere-se ao imaginário ocidental sobre o ritual construído por relatos de exploradores e viajantes sobre povos tradicionais, um estereótipo do que seria sagrado, como bem caracteriza Roger Bastide (1992) em O Sagrado Selvagem. Talvez a performance rave não possa ser mais do que uma dramatização do ritual pois, como aponta Victor Turner (1982), os rituais que predominam em sociedades pré-industriais - tal a citação de Lívia sobre os Pow-wows e dos Truká acima - estão associados a ritmos cíclicos, biológicos e sócio-estruturais, e integram-se centralmente ao processo social total, produzindo símbolos que evocam significados intelectuais e emotivos comuns a todos os membros do grupo. Em sociedades onde a esfera do trabalho separa-se da atividade ritual, tal como nas sociedades industriais, surge a esfera do lazer como campo privilegiado para os processos liminares de produção simbólica. Na esfera do lazer ou entretenimento, marginal às arenas centrais da economia e política, a liminariedade se dá por manifestações plurais, fragmentárias e experimentais que ocorrem nas interfaces e interstícios do conjunto de instituições centrais. Atividade de adesão voluntária, optativa, individual, sem a obrigatoriedade típica dos rituais. Mas ainda que não seja exatamente ritual, a rave se quer ritual e parece ter efeitos de ritual, que encanta o mundo e opera uma passagem numa ordem cósmica. É certo que a rave é geralmente um acontecimento impactante, intenso e peculiar; por vezes, um choque. Lembremos que uma rave não é qualquer evento de música eletrônica, como aqueles que preenchem as agendas dos clubes ou o Sholl Beats, que mais parecem uma apresentação de DJs 3
4 animadores de platéia ou, neste caso, e quando bem sucedido, de pista de dança. Rave, no Brasil, tem que ser no meio do mato ou numa praia minimamente deserta. Cria instalação em espaços não ocupados pelas atividades urbanas regulares. Algumas pessoas fazem longas viagens para ir à raves, aquelas que moram mais perto do local escolhido, de qualquer forma, viajam para fora da cidade, transitam por caminhos até então desconhecidos, geralmente durante a noite e já agrupados com os amigos mais próximos. As pessoas vão de caravana para a raves, conforme a gíria usada. A rave não se apropria simplesmente de espaços não previstos para seu uso. Nem apenas monta uma cenografia nesses lugares. A rave, como festa, cria uma instalação : um lugar absoluto, uma ilha, um universo paralelo Universo Paralello é nome de rave brasileira. Como instalação, a rave não é apenas cenário, é um isolamento no espaço e tempo que procura criar unidade autônoma para ser e ter sentido. A forma instalação é uma tecnologia, uma tecnologia para síntese de experiências de sentido - pelo corpo, sensorial, e experiências de significado, da imaginação, ação de imaginar. Pela centralização da atenção num campo de estímulo limitado, possibilita a experiência de fluxo (cf. Csikszentmihayi, citado em Turner, 1982). A consciência é estreitada, intensificada e amarrada num foco de atenção limitado. Passado e futuro são suspensos - apenas o agora importa. (...) A intensificação é o nome do jogo (Turner, 1982:56) 2. A rave cria instalação de um universo fantástico de magia, adrenalina, música, sentimentos, o melhor da vida são as promessas do vídeo-convite para a rave Xxxperience de novembro de Certo tipo de paraíso artificial para experiências sintéticas. Sintéticas são as músicas e muitas das drogas das rave, sintéticas são as bebidas energéticas, as cores fluorescentes (signo emblemático da chamada cultura rave), a história da humanidade que é por ali re-lembrada, contada. Sintético: concentrado, ampliado ou intensificado tecnologicamente. Louvado Seja Deus pela experiência prima e única que tive nesse fim de semana. O que acontece quando pessoas que REALMENTE se esforçam para ir ao mundo dos sonhos???(...) Uma energia cósmica vinda da imagem de Shiva me contagiou, meu corpo já não sentia nenhuma dor ou cansaço depois de tanto dançar em sets anteriores e chego a gritar MEU DEUS! A cada virada, parecia estar em outra dimensão uma sensação plena de bem estar misturada com momentos de 2 [ Consciousness must be narrowed, intensified, beamed in on a limited focus of attention. Past and future must be given up - only now matters. ( ) Intensification is the name of the game. ]. Tradução de Herbert Rodrigues, não publicada. 4
5 ARREPIO e CHORO. Olhava para o céu azul e agradecia à boa força que me proporcionou esse momento único em minha vida. Era como se a música ouvida fizesse cócegas em meu cérebro. Compartilho o momento com outras pessoas ao meu lado que estavam sentindo a mesma boa e mágica sensação. (assinado por M-HIPNOTIC, grifo meu) 3 A experiência da rave, uma experiência prima e única é, antes de mais nada, sensorial, orgânica, corpórea. A tese de doutorado em ciências sociais de Pedro Teixeira (2006) - intitulada Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase - aponta a eficácia da música eletrônica de pista para a produção de um transe exclusivo à sociedade tecnológica. O autor analisa como os DJ s trabalham com a sondagem (1) dos efeitos da altíssima intensidade (dbdecibéis) do som eletronicamente amplificado, (2) dos efeitos de diferentes faixas de freqüências (Hz- hertz) quando produzidas em altíssimo volume e (3) dos efeitos de velocidades (BPM - batidas por minuto) do tempo musical metronicamente controlado, na resolução do corpo sonoro motor de uma máquina de transe. Embora o autor admita que seja preciso certa disponibilidade dos participantes para que a sinergia som-movimento se alastre para todo o público, ele não considera os efeitos dos psicoativos ingeridos na ocasião dessas festas, assim, acho que o autor trata de corpos vazios, esvaziados. Em minha pesquisa procuro dar conta dos corpos com vísceras, coração e pulmão, eu trato de corpos compostos por sistemas nervosos. A música troveja através de minha carne, as notas rodam com minhas veias. DJ s rodopiam suas escrituras com eloqüência, deleite e segurança. O grave chocalha meu pulmão e bate em uníssono com meu coração. Se eu fecho meus olhos eu posso ver minha carne derreter e minha alma ascender entre os espaços do som. (tradução minha) - declaração de Tara Mc Call (citada em Gerard 2004: 168) sobre a experiência de uma pista de dança de música eletrônica. Corpos que não apenas recebem, mas produzem sensações, emoções, significados; respiram, pulsam. São corpos instrumentos primários de conhecimento, tal como Marcel Mauss (2003) os concebeu. Nesse trabalho, eu trato de muitos corpos que aprenderam a se deixar afetar pela música eletrônica de pista depois que consumiram alguma vez um ecstasy. Numa rave em meados de 3 Capturado de um chat do sítio Zuvuya ( da internet, em 1 de junho de
6 2003, observei um jovem participante vestindo uma camiseta com a imagem de uma cápsula colorida seguida da legenda extra flavour. Ora, se a festa é o espaço social, por excelência, permissivo ao uso de substância ilegais, perigosas e ilícitas, arena propícia para o exagero, as experimentações, a violação de regras e tabus (Durkheim, 1996; Bakthin, 1993; Turner, 1982; entre outros); a forma de festejar rave não se vale de todas ou qualquer substâncias. a droga que já foi chamada pelos seus usuários nos anos 90 de pílula do amor. Na rave, ingere-se o ecstasy, uma tecnologia química bastante específica do século XX, que desde o final da década de 80 foi apropriada como droga recreativa pela chamada geração clubber. Seus reconhecidos efeitos não são apenas individuais, mas atravessam e criam um corpo coletivo. Informação pertinente do meu trabalho de campo, a combinação entre música eletrônica e ecstasy é recorrente e parece que interdependente. Aprendi a ouvir e gostar de música eletrônica depois que tomei um ecstasy; antes a música era como barulho, incomodava.. Esta é minha história, que freqüentei e organizei raves na década de 90 no Brasil, e a de muitos outros. Bia (30 anos, em 2004), sobre quando experimentou um ecstasy, conta: foi a primeira vez que eu senti a música eletrônica tocar em mim, o som era maravilhoso, era house, (...) a música antes era insuportável. Um dos mais reconhecidos efeitos do ecstasy é a possibilidade ampliada de sentir no corpo a música eletrônica. Mais apropriado do que dizer que se ouve música eletrônica, é dizer que se sente a música eletrônica. Depois que se vivenciou alguma(s) vez(es) a experiência do ecstasy, muitas pessoas dizem nem precisar tomá-lo para entrarem no espírito da música. Luíza (22 anos, em 2005), conta que quando vai a raves pela manhã (chega na festa por volta das 11 horas da manhã do domingo), diversas vezes só bebe uma cerveja e vai dançar na pista pois logo ela surpreendentemente sente-se como se tivesse tomado um ecstasy. É como se o corpo tivesse uma memória que a música ativa, diz ainda. Sob efeito do ecstasy é possível sentir a própria respiração e as batidas do coração. A visão é alterada, mas apenas levemente, as cores se tornam um pouco mais vivas, os contornos das formas suavizados, mas não há distorções significativas. O paladar também é aguçado, tornase gostoso sentir a leve doçura da água ou de frutas, - ninguém se arrisca a ingerir alimentos de gosto muito forte, pois esses podem ser agressivos dada a sensibilização do momento. Mais agradável do que o gosto da água, é sensação da matéria da água na boca ou escorrendo pela garganta, pois o sistema mais alterado pelo ecstasy parece ser o tátil. As sensações táteis do corpo 6
7 (internas e externas) são agradáveis e prazerosas: movimentações, toques, pulsações, temperaturas. É a dança, então, a atividade que melhor possibilita e ativa essas experimentações sensoriais. Vale ressaltar que é a prática da dança que ativa a conexão e a memória dessa conexão entre os elementos. Essa é a particularidade de fruição da música de pista: um conjunto de interações, afetos e prazeres vivenciados pela prática da dança. A dança expande sua afinidade com a música pela permissão de constituir uma relação física cada vez mais profunda com ela. Também a dança é coletiva e compartilhar a música de pista intensifica o modo pelo qual ela afeta você, tal como a presença da música altera o modo pelo qual as pessoas presentes se relacionam umas com as outras. Essa interação musical-sensual entre pessoas no ambiente das pistas é a balada desejada nos clubs e a vibe festejada nas raves. Vibe é expressão de comunhão, um compartilhar de sensações e emoções. André (30 anos em 2004) definiu: A vibe é um momento quando as pessoas acreditam estar pulsando no mesmo tempo, na mesma sintonia, e... é isso. Ficam felizes juntos, dançam juntos, tem um sentimento coletivo... de vibe. Enfatizando o caráter compartilhado, Marcelo (com 30 anos em 2004) pontua: A vibe é a comoção geral, é a loucura em grupo. Potência tecnológica Além da música eletrônica e do ecstasy há ainda o LSD, a maconha, as bebidas energéticas, os fraktais, as cores fluorescentes, as luzes negras, o estrobo, as projeções dos VJs (vídeo jóqueis) - que espalhadas por grandes telas, pelo teto de tendas jogam em loop uma imageria que mais se aproxima do delírio ou do sonho, de projeções de imagens do inconsciente. A lista de tecnologias privilegiadas pelo festejar rave que tem uma eficácia direta sobre os estados cognitivos tecnologias emblemáticas deste tipo de festa - poderia se estender, mas não tenho a intenção de esgotá-la neste momento, talvez seja mais importante ainda a combinação delas, gerando sinergias; apenas quero chamar a atenção para o propósito rave em transcender estados cognitivos ordinários, por vezes almejando experiências-limite. Escancarando as portas da percepção, o festejar rave adentra no país das maravilhas, na terra do nunca, em jardins secretos (nomes de edições de raves), abre portais dimensionais de conexão intergaláctica (conforme comentado diversas vezes por ravers) e transforma seus participantes em seres poderosos. Na rave nos tornamos seres poderosos: encantados, belos, sensuais, iluminados. Não há dúvidas numa rave, estamos todos lá para ser feliz, podemos 7
8 qualquer coisa. Não há dúvidas, nem dor, nem desconforto, apenas confiança de que temos escolhas e podemos qualquer coisa. Na rave somos seres poderosos, tão potentes quanto a sociedade a qual pertencemos. Pois se a rave festeja algo, ela festeja a POTÊNCIA da sociedade tecnológica. Na rave, as pessoas se investem dos poderes da sociedade tecnológica, talvez especialmente o poder de criar e viver fantasias, um sonhar acordado. No país das maravilhas da rave as pessoas experimentam a possibilidade de serem fadas, hippies, índios, gurus, sexys, cyborgues. A forma subjuntiva na rave, o como se, afasta-se do exercício do ator, e mais se aproxima da brincadeira mimética da criança. Aliás, muitos dos seres encantados dessas festas são os objetos e personagens que povoaram a infância da geração rave, na década de 70 e 80, difundidos pela televisão, o cinema, as revistas, os livros que foram lidos: seres de contos de fadas, personagens de desenhos animados, astronautas, aliens, deuses hindus, logotipos da Texaco e da Coca-cola. Haveria aí a indicação de um desejo de recapturar o mundo perdido da infância? Talvez. Qualquer que seja a resposta, ela não altera a força da realização dessas fantasias, nem os poderes desses personagens. O festejar rave refere-se diretamente à experiência da vida urbana, capitalista, unificada pela comunicação de massa e pelas promessas da tecnologia industrializada. Observações de mais de 10 anos em raves apontam: os participantes da festa são moradores de metrópoles ou grandes cidades. Como um espelhamento dessa sociedade os ravers se autodenominam uma tribo globalizada, ainda que de uma forma ambivalente, já que procuram restituir e marcar outra dimensão dessa sociedade: não o movimento de globalização da produção capitalista, mas um laço humano comum e genérico - dos momentos de communitas (cf. Turner) experimentados pela festa, que mesmo efêmeros e fugazes, são profundamente marcantes. Como uma tribo que se quer global, os ravers herdam a história de toda uma humanidade, alimentando-se de uma unidade (unidade mítica) que engole sem mastigar as diferenças, as contradições, os descompassos de povos e historicidades. Pela festa os ravers dramatizam o mito de origem da sociedade ocidental: a comunidade tribal. Infância perdida da sociedade, imagem mítica que ainda guarda suas utopias. Vários ravers banham-se nus em cachoeiras e praias durante a festa, num movimento que poderia ser puro natural -, se não lembrasse tanto imagens criadas pelo romantismo alemão, restituído pelos hippies e se não fosse praticado exatamente por aqueles de corpos mais belos e delineados. 8
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