PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO 10ª Câmara de Direito Público

Transcrição

1 Registro: ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação / Reexame Necessário nº , da Comarca de Sorocaba, em que são apelantes FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO e PREFEITURA MUNICIPAL DE SOROCABA, é apelada FABIANA DA ROSA CAMPOS. ACORDAM, em do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso do município para julgar improcedente a ação e deram provimento em parte ao recurso oficial e ao recurso da Fazenda do Estado. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ (Presidente sem voto), TERESA RAMOS MARQUES E PAULO GALIZIA. São Paulo, 28 de agosto de Torres de Carvalho RELATOR Assinatura Eletrônica

2 Voto nº AC /17 Apelação nº Apte: Fazenda Estadual e outro Apdo: Fabiana da Rosa Campos Origem: Vara Faz Pública (Sorocaba) Proc. nº Juiz: Karina Jemengovac ASSISTÊNCIA À SAÚDE. Sorocaba. Hiperparatireoidismo secundário grave. Cloridrato de Cinacalcete 30mg. Alto custo. Fornecimento. Responsabilidade. Multa. 1. Medicamento. Fornecimento. A moléstia e a necessidade do medicamento estão comprovadas por prescrições e relatórios médicos. Relevância dos fundamentos do pedido que tem assento no art. 6º da LF nº 8.080/90. Padronização de medicamentos que não impede o fornecimento de outros não padronizados, a depender do caso concreto e conforme a justificativa apresentada pelo médico. Jurisprudência deste Tribunal e dos Tribunais Superiores que privilegia o direito à saúde garantido no art. 196 da Constituição Federal. 2. Tratamento. Responsabilidade. A Constituição e as leis atribuem à União, ao Estado e ao município o dever de cuidar da saúde da população; mas disso não decorre a solidariedade típica do direito privado. O fornecimento dos medicamentos excepcionais e de alto custo compete ao Estado, a teor da regionalização e hierarquização das ações de saúde previstas no art. 198 da Constituição Federal e nos termos da Portaria GM-MS nº 204 de , não havendo razão para condenação do município, cujo apelo fica provido. 3. Multa. A multa fixada pela sentença comporta adequação para o valor e a periodicidade usualmente aplicados pela Câmara. Procedência. Recurso do município provido. Recurso oficial e do Estado providos em parte. 1. A sentença de fls. 96/101 julgou procedente a ação para compelir os réus, de forma solidária, a fornecerem à autora, portadora de hipertensão arterial sistêmica, hiperparatireoidismo secundário grave, insuficiência renal crônica e meningomielocele com bexiga neurogênica, o

3 medicamento Cloridrato de Cinacalcete 30mg, sob pena de multa diária de R$-1.000,00, limitada a R$ ,00; honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor corrigido da causa. Apela o Estado (fls. 106/110); alega que houve violação a preceitos constitucionais de harmonia dos poderes e isonomia; a proteção da saúde traz norma programática e não impositiva de direitos; a multa diária imposta é exorbitante, razão pela qual deve ser reduzida; há de ser determinada a apresentação periódica de receituário médico. Pede o provimento do recurso. Apela o Município (fls. 113/124); preliminarmente pede a suspensão do processo, ante a determinação do STJ no REsp nº ; alega ser parte ilegítima, por se tratar de obrigação do Estado, já que o medicamento pleiteado é de alto custo. No mérito, aduz que o processo tem relação com a questão a ser decidida no RE nº /RN do STF, que reconheceu a repercussão geral do tema; não há solidariedade entre as entidades integrantes do SUS; é ineficiente que ambos os entes sejam compelidos a cumprir a mesma obrigação; a multa diária deve ser afastada; a condenação honorária deve ser afastada. Pede o provimento do recurso. Contrarrazões às fls. 129/133. Recursos tempestivos e isentos de preparo. É o relatório.

4 2. Nos termos do art. 198 da Constituição Federal, as ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, descentralizado, visando ao atendimento integral com prioridade na prevenção, com participação da comunidade. O Sistema Único de Saúde - SUS, a quem a Constituição atribuiu a efetivação do direito previsto no art. 196, foi instituído pela LF nº 8.080/90 de com base, entre outras particularidades, na descentralização políticoadministrativa visando (art. 7º, IX) à descentralização dos serviços para os municípios e à regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde. O art. 8º prevê que as ações do SUS serão executadas de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente; o art. 16 atribui à direção nacional a formulação de políticas públicas de saúde e o financiamento do sistema, mediante repasses de verbas, e à direção estadual (art. 17, I) 'promover a descentralização para os municípios dos serviços e ações de saúde'. O SUS a que se pede ajuda é organizado em níveis de hierarquia conforme a complexidade, de modo que os integrantes se responsabilizam pela prestação do que lhes cabe, mas não tudo. Não contraria a Constituição; ao contrário, atende aos art. 196 e 198, a distribuição das ações de saúde entre os níveis hierárquicos que compõem o sistema. Nem a Constituição nem a lei estabelecem a solidariedade das entidades participantes do SUS. Há solidariedade, como conceituada no art. 264 da lei civil, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigação, à dívida toda; e essa não é a característica do SUS. Cada parte está obrigada a fornecer o que lhe compete, segundo a hierarquia do sistema e o nível de complexidade; são obrigações independentes, paralelas, integrais, mas não solidárias. É preciso cuidado com as palavras. O fato de o autor poder exigir, de um ou de outro, a prestação, não implica em solidariedade dos réus.

5 Mas, abstraindo a questão técnica, ainda que a autora possa exigir de um ou de outro a assistência de que necessita, não pode exigir a mesma assistência, ao mesmo tempo, de ambos. O pedido, do modo como formulado, leva à dupla aquisição do medicamento, dupla atividade administrativa, dupla defesa, duplicidade de gastos administrativos e desorganização do sistema, que não se justifica e a ninguém beneficia. A autora deve dirigir o pedido contra o órgão a quem cabe o fornecimento, ou àquele que preferir se ambos tiverem a obrigação. O medicamento requerido é de alto custo e complexidade (a caixa com 30 comprimidos do medicamento Mimpara 30mg custa aproximadamente R$-700,00), cuja responsabilidade pelo fornecimento é do Estado. Assim a questão se resolve: a obrigação é do Estado e, figurando ele na lide, não há razão para a condenação do município, cujo apelo fica provido. 3. No mais, a necessidade do medicamento e a moléstia da autora encontram-se comprovadas pelos relatórios e receituários médicos de fls. 14/18, não sendo a falta de padronização óbice ao fornecimento do que foi receitado. O entendimento está de acordo com a jurisprudência assente deste Tribunal e dos Tribunais Superiores, que privilegia o direito à saúde garantido no art. 196 da Constituição Federal. A relevância dos fundamentos do pedido tem assento no art. 6º da LF nº 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde, que instituiu o SUS) que assegura a assistência farmacêutica. Não há ofensa ao art. 2º da Constituição Federal, pois a decisão não impede ao Estado a execução de qualquer de suas políticas públicas; é simples exercício da jurisdição que a Constituição outorga ao Poder Judiciário.

6 4. Multa cominatória. A juíza fixou a multa cominatória em R$-1.000,00 por dia, limitada a R$50.000,00, para o caso de descumprimento da obrigação; o valor e a periodicidade destoam dos usualmente fixados pela Câmara para casos semelhantes; é caso de adequação, nos termos do dispositivo. O voto é pelo provimento do recurso do município para julgar improcedente a ação em relação a ele, arcando a autora com os honorários advocatícios que fixo em R$-300,00, nos termos do art. 85, 8º do CPC, suspensa a exigibilidade enquanto perdurar a miserabilidade processual (fls. 37/38); e pelo parcial provimento do recurso oficial e do Estado para fixar a multa cominatória em R$-200,00 por semana ou fração, mantida no mais a sentença, com a observação de que o atendimento poderá ser feito por meio de medicamento similar ou genérico, de mesmo princípio ativo. Faculto às partes oporem-se, em igual prazo, ao julgamento virtual de recurso futuro. TORRES DE CARVALHO Relator