Agenciamentos entre ficção
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- Luiz Felipe Palmeira Lameira
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1 Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução ao campo das narrativas transmidiáticas 1* Assemblages between television serial fiction and new media: an introduction to the field of transmedia storytelling Resumo Gilberto Alexandre Sobrinho 2 Edvaldo Acir 3 O texto investiga sobre as transformações nas narrativas seriadas, relacionadas com as novas mídias. Partindo do conjunto de ficções seriadas caras ao fluxo televisivo, apontam-se mudanças estruturais, nas formas de comunicação e de consumo, sendo a web 2.0 agenciadora de reelaborações significativas que resultam nas narrativas transmidiáticas. Palavras-chave: Ficção seriada. Novas mídias. Narrativas transmidiáticas. 77 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez Abstract This text develops an introductory approach to the changes in the realm of serial narratives, related to the new media context. Starting from serial fiction television, produced to feed television flow, we detected structural changes in the forms of communication and consumption. Web 2.0 is faced as an agent for significant reworkings that result in transmedia storytelling. Keywords: Serial ficction. New media. Transmedia storytelling. 1 Artigo recebido em Aprovado em Professor Doutor no Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes da Unicamp. Foi Coordenador do curso de graduação em Comunicação Social Midialogia. Atualmente, é assessor da Pró-Reitoria de Graduação da Unicamp. Atua nas Áreas de História da Televisão e do Vídeo, na graduação e na pós-graduação. gilsobrinho@hotmail.com. 3 Mestre em Artes pela Unicamp. Especialista em Publicidade pela ECA /USP. edvaldoacir@uol.com.br.
2 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução Apartir da década de 90 (séc. XX), sob o impacto do digital, a produção audiovisual foi afetada por transformações profundas. Cinema, televisão e vídeo passaram, então, por mudanças nos processos de produção, distribuição e consumo. Com o avanço das mídias digitais, sendo a internet protagonizadora desse processo, foram agregadas novas formas de comunicação, socialização e se reformulou a esfera dos negócios. O interesse, neste texto, recai sobre as relações entre televisão e novos agenciamentos de produção, distribuição, consumo e negócios sob o impacto do digital. Sendo a televisão produtora e veiculadora de conteúdos, vamos perscrutar um tema caro à configuração de sua programação nesse novo cenário: as séries narrativas ficcionais no horizonte da produção transmidiática. O advento das narrativas transmidiáticas está vinculado ao aparecimento das chamadas novas mídias. Denominam-se novas mídias o vídeo e cinema digitais, os sites da web, os ambientes e os mundos virtuais, os games de computador e de consoles computadorizados, as instalações interativas mediadas por computador, as animações com imagens reais e sintéticas, os domínios da multimídia, os dispositivos móveis e as demais interfaces humano-computador. (Mu r r ay, 1998, p. 152). Graças aos recursos das novas mídias, as histórias podem ser apresentadas a partir de diversos pontos de vista, com histórias paralelas, com possibilidades de interferência na narrativa, com opções de continuidade ou descontinuidade da narrativa. Para a elaboração deste artigo, estabelecemos relação entre o plano conceitual, principalmente, a partir de Jenkins (2009), Lacalle (2010), Murray (1998), O Reilly (2011). Traçamos um breve percurso histórico, destacando casos relevantes do fenômeno observado e entrevistamos profissionais de TV e de grupos de mídia que já trabalham com produção transmidiática. Nessas conversas, foi possível verificar uma forte tendência por parte de alguns desses grupos, operadoras e produtores de audiovisual. Em diversos níveis, já dedicam infraestrutura e pessoas para o desenvolvimento da área de audiovisual para dispositivos móveis, mesmo que essa ainda não seja uma iniciativa popularizada entre os usuários no Brasil. Há, por assim dizer, uma expansão do vocabulário televisivo, pois, ao olhar o universo da produção seriada, nota-se um forte movimento comunicacional entre as telas, digamos, da sala de estar e das telas móveis multiplicadas, acessíveis e conectadas. A televisão, a partir da segunda metade do século XX, tem um histórico de alterações significativas, mesmo tendo uma vida relativamente curta. Em pouco tempo, passou a exercer grande espectro de influência em relação às outras mídias, dado que se mantém até a atualidade. Até a década de 80 (séc. XX), o aparelho eletrodoméstico tinha o espaço doméstico, em particular a sala de estar, como topografia essencial,
3 e o ato de ver televisão era homologado de forma passiva, ao menos do ponto de vista de uma participação direta com o material veiculado. Precisamente, a partir de 1983, com o surgimento do controle remoto, seguido da comercialização e do barateamento do videocassete, alterou-se de forma profunda o consumo da mensagem televisiva; posteriormente, o satélite e o cabo promoveram também mudanças estruturais. A partir de meados da década de 90 (séc. XX), e com ênfase nos anos 2000, vemos surgir uma outra configuração, sob o impacto das novas mídias. Pode-se dizer que a evolução tecnológica, associada a interesses públicos e privados de expansão do setor, contribuiu decisivamente para um quadro de reelaborações significativas. No intuito de mapear e refletir, de forma introdutória, sobre os efeitos dessa passagem, este texto volta-se ao estudo de narrativas seriadas de ficção, a fim de observar quais elementos se destacam nesse horizonte. A escolha justifica-se pela importância que a serialização adquiriu na grade de programação e, consequentemente, nos usos expandidos desse conteúdo na era digital, sendo o produto ficcional atualizado em vários formatos dessa natureza, tais como telenovelas, soap operas, séries, sitcoms, minisséries. Realizaremos uma inspeção geral sobre essas alterações, para, em seguida, observar o comportamento da produção seriada brasileira. No Brasil, a telenovela constitui um formato privilegiado no âmbito da serialização, sendo a Rede Globo a emissora/produtora que se destaca. Sob o impacto das tecnologias digitais, a televisão tem multiplicado seu vocabulário e reconfigurado suas singularidades. O fluxo televisivo, aspecto definidor da programação segundo Williams (2003), não se sustenta mais como traço definidor de uma programação que estava à disposição do telespectador, ela passou a ser contida, e o eterno presente da grade tornou-se coisa do passado. Ainda sob o impacto do videocassete, programas eram armazenados, e a estocagem caseira permitia investimentos de sentido segundo o desejo do espectador. Recentemente, programas são comercializados em DVDs e convivem com a TV aberta, a programação segmentada dos canais pagos, a cabo ou por satélite. O surgimento do Youtube acentuou o estilhaçamento da programação e incrementou as apropriações dos espectadores em relação ao seu conteúdo. A TV Digital assinala outro campo profundo de mudanças, onde a interatividade segue como o desafio dos programadores na nova relação com o espectador/usuário. Nesse quadro, as relações entre TV, internet e, particularmente, a web, merecem considerações mais destacadas. 79 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez A internet, segundo Lacalle (2010), forneceu a infraestrutura tecnológica necessária para superar a diversidade de formas comunicativas; operando transformação de conteúdos de meios prévios para o formato digital, constitui um dos instrumentos
4 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução privilegiados para poder representar configurações socioculturais baseadas na cooperação e é um metameio interativo e comunitário. Trata-se de um espaço de trocas entre sujeitos de modo contundente, que forma um circuito que agrega de maneira indistinta autores e leitores, produtores e espectadores, criadores e intérpretes. Em seu desenvolvimento, a internet agregou o conceito de multiplataforma, em que se destaca a migração de conteúdos para mídias com características próprias, um fenômeno recente, marcado, sobretudo, pela multiplicação de telas. Diante desse movimento, em que velhas mídias (TV, rádio e cinema) convivem com as novas mídias (computador, celular, tablets, etc.), o fenômeno da convergência assinala um novo paradigma no campo da comunicação: trata-se da remodelação da relação entre produção e consumo de conteúdos midiáticos. Vale dizer que, nesse ambiente facilitado pela internet, a demanda por vídeos, sobretudo de programação televisiva, tem protagonizado esse processo, e a web 2.0, uma plataforma aberta, tornou possível a participação de usuários na elaboração de conteúdos. Segundo O Relly (2005), são sete os princípios básicos da web 2.0: 1) a World Wide Web como plataforma de trabalho; 2) o reforço da ideia de inteligência coletiva; 3) a gestão de base de dados como competência primária; 4) a constante atualização gratuita dos dados e dos serviços disponíveis na rede; 5) a utilização de modelos de programação rápidos e a busca da simplicidade; 6) software não-limitado a um único dispositivo; 7) o valor agregado das experiências dos internautas. Portanto, esse quadro tecnológico traz consigo o surgimento de um outro sujeito que, potencialmente, pode participar de modo ativo na construção da significação em rede. No plano do desenvolvimento narrativo, o agenciamento de conteúdo que prevê a inclusão de um sujeito que não apenas recebe a mensagem, nos moldes acima descritos, mas participa de sua elaboração promove o que Jenkins (2008) denomina narrativa transmidiática, em que não há somente a migração de conteúdos para multiplataformas, mas também a ativação do conhecimento desse usuário na geração e nos desdobramentos das histórias. Jenkins propõe a tese de que temos, hoje, o estabelecimento de novos paradigmas de comunicação e a reinvenção dos suportes de mídia de maneira complementar, proporcionando novas significações técnicas e socioculturais. Ou seja, para Jenkins, a televisão não vai acabar por conta da internet, assim como a internet não vai inventar um novo modelo de comunicação em vídeo: o acoplamento das duas propostas vai criar uma terceira via, com a possibilidade de novas ferramentas e de mecanismos de interatividade. E isso, por sua vez, deve reconfigurar a maneira pela qual as pessoas se
5 apropriam do produto audiovisual, determinando um novo modelo de raciocínio comunicacional que, por fim, gerará impactos na economia, na arte, nos modos de consumo e no relacionamento entre as pessoas e o mundo como um todo. Como explica Jenkins, a convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica a partir da qual a indústria midiática opera e pela qual os usuários processam a notícia e o entretenimento. (Je n k i n s, 2009, p. 286). Em 1999, A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, direção Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, EUA), uma produção independente de baixo custo, ficção escamoteada de documentário, tornou-se emblema pioneiro da junção entre mobilização de fãs na internet e sucesso absoluto de público em escala internacional quando chegou às salas de cinema. Dando sequência, o surgimento de Matrix (1999, direção Irmãos Wachowski, EUA) ampliou o vocabulário das narrativas audiovisuais, por meio do desenvolvimento de produtos para multiplataformas. Os desdobramentos narrativos de Matrix, também conhecidos como franquia, incluíam pedaços-chave de informação transmitidos por meio de três filmes live action, série de curtas de animação, uma coleção dupla de histórias em quadrinhos e também videogames. Esses exemplos surgidos da esfera do cinema assinalaram um outro imperativo de comunicação com o público e, mais importante, mobilizaram outras janelas para o mundo dos negócios midiáticos. Esse exemplo comprova que o processo de produção e circulação de uma narrativa transmidiática requer alto grau de coordenação entre diferentes setores de mídias, envolvendo uma teia complexa de franchising e licenciamento de produtos. Mas foi principalmente no âmbito da televisão, sobretudo norte-americana, que as transformações em relação à expansão do conteúdo narrativo se acentuaram, e Lost é um caso específico desse fenômeno. 81 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez J. J. Abrams e Damon Lindelof foram os criadores da série que começou a ser exibida em 2004, pela rede norte-americana ABC, e teve sua última temporada lançada em 2010, o que contabilizou seis temporadas e 121 episódios no total. A série televisiva, comercializada internacionalmente, é o núcleo de um conjunto de produtos midiáticos composto por blogs, videogames, livros, sites, vídeos na internet e outros produtos. Vale dizer que se busca uma arquitetura entrelaçada e a valorização da cooperação entre os vários setores que edificam esse novo conceito de produto audiovisual. Das extensões de Lost, podemos destacar os episódios feitos para serem exibidos exclusivamente em aparelhos celulares, os chamados mobisódios, Lost Missing
6 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução Pieces, em que apareciam situações não exibidas na TV, amarrando alguns fios soltos da trama. Outro produto dessa rede transmídia foi a incorporação do ARG, ou Alternate Reality Game, jogo em que a realidade ficcional se transmuta com o cotidiano do espectador, integrando-o no universo fantasioso. Em seus aspectos técnicos, um ARG pode ser definido como um jogo de natureza coletiva que usa como suporte várias plataformas digitais, tais como GPS, telefonia móvel, internet, etc. Trata-se de uma interface que intermedia um formato lúdico no qual o público se sujeita a desvendar um intrincado jogo narrativo interligado ao universo de Lost. (Me s q u i ta, 2010, p. 6-7). A solução para a incorporação dos ARGs no universo transmídia de Lost surgiu em 2006, com o chamado The Lost Experience. Nele havia o intuito de preencher alguns vazios entre a segunda e a terceira temporadas, mantendo, assim, a expectativa do público. Depois, seguiram-se mais três: ARGs, FIND815 (2007), Dharma Iniciative Recruiting Project (2008) e Lost University (2009). A incorporação dessa interface funcionou como instrumento de marketing e de propaganda (além da promoção da própria série, apareceram os patrocinadores Sprite, Jeep, Monster.com e Verizon), de sedução narrativa e buscou transformar a experiência narrativa em imersão adensada. Ao fim da última temporada, Lost contabilizava números expressivos de espectadores na TV e na web, e as vendas dos DVDs foram recordes. Jenkins (2009, p. 384) nos diz que cada vez mais as narrativas estão se tornando a arte da construção de universos, na medida em que os artistas criam ambientes atraentes e que não podem ser completamente esgotados em uma única obra ou mesmo em uma única mídia. Há, portanto, no horizonte, mudanças estruturais nas formas pelas quais as produções narrativas audiovisuais se distribuem e, consequentemente, se consomem. Para Marcelo Glutz, diretor de Mídias Digitais da Globosat, se a história dos Três Porquinhos fosse lançada hoje, teríamos uma comunidade no Orkut, poderíamos acompanhar os porquinhos no Twitter, ler os detalhes sobre a obra de cada casa; assistir a um episódio de 3 minutos com as aventuras do Lobo Mau e a perseguição dos três porquinhos no celular, depois do Lobo Mau com a Chapeuzinho Vermelho ou o Lobo Mau na sua vida pessoal. Poderíamos ver no Google Maps da distância percorrida entre as casas que o Lobo Mau iria destruir. Assistir a um documentário do History Channel sobre a saga da Família Porco na América. E ainda: enviar um SMS e receber um ringtone com o sopro do lobo. Poderíamos conversar com os amigos sobre o que faríamos no lugar do porquinho construtor, enviar para o Lobo Mau a nossa receita favorita de leitão à pururuca para ele aproveitar melhor, entre outras interações com a história principal. (Glutz, 2010, s.p.). De forma divertida, Glutz chama a atenção para o conteúdo (narrativo) expandido que as novas mídias potencializam.
7 Pedro Rolla, diretor de Mídia do Portal Terra para a América Latina e Estados Unidos, chama a atenção para as conexões e a multiplicidade de aparelhos: TVs, PCs, Notebooks, Netbooks, I-pads, I-pods e celulares. O que resulta, de imediato, num consumo avassalador de mídia. Em um futuro próximo, ele enxerga que a probabilidade de as pessoas terem mais de um aparelho conectado à internet é alta, sendo tudo cada vez mais wireless. Rolla destaca que as pessoas podem se locomover entre os diversos lugares, conectar e acessar os conteúdos de seu interesse nos vários momentos do dia. E há prazer nesses acessos aos conteúdos. Conexões e prazeres numa escala espaciotemporal dinamizada pela oferta múltipla de dispositivos interconectados: Em um aplicativo, no Facebook, no Twitter, no que for. Quando eu estou com o meu iphone, eu consigo enxergar prazer, entrar no Facebook e falar que aconteceu tal coisa e que eu estou com tal problema. As pessoas, cada vez mais, estão consumindo mais conteúdo. E cada vez mais, os devices são móveis, possibilitando uma velocidade incrível da informação. Temos hoje a capacidade de gravar um vídeo pelo celular em Johanesburgo, na frente do estádio, e mandar em tempo real para as pessoas publicarem em multiplataformas. (rolla, 2010, s.p.). Levando em conta a descentralização da produção e do consumo no contexto das novas mídias, Luiz Gleiser, diretor de Núcleo da TV Globo, afirma que há algum tempo a maior emissora de TV aberta do Brasil busca atingir o usuário em toda parte. De forma estratégica, há a necessidade de ativar mecanismos de participação num contexto de acentuadas transições, em que as formas discursivas deixam de existir em um centro único para habitar vários lugares. A interatividade e a integração das redes sociais são mecanismos dessas novas demandas. Gleiser cita como exemplo as webséries de Malhação. Malhação é um programa para adolescentes e se constrói sob o imperativo do ecletismo, em que se tenta falar com o conjunto da sociedade brasileira. Nas webséries, começou-se a produzir conteúdos complementares, em que se ativam, por exemplo, o aprofundamento na psicologia, no comportamento e no universo de cada personagem. Essas webséries são produzidas por dispositivos tais como o telefone, o Nokia i95 ou o X1, da Sony, que possui uma câmera extremamente singela. Dessa forma, o custo de produção é muito baixo. Cada uma dessas webséries costuma ter três episódios com uma média de 1 minuto e 30 segundos, 1 minuto e 40 segundos, e são produzidas em 40 minutos. Essas pílulas acabam se acoplando ao conceito e ao produto final do próprio programa. (Gleiser, 2010, s.p.). 83 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez Outro exemplo foram os episódios criados para a internet da telenovela Passione (2010). Depois que a cena era gravada, os personagens continuavam-na em um monólogo dirigido para a câmera. Esse monólogo só existia na internet, ele não era veiculado na TV Globo. Isso era supervisionado pelo próprio Sílvio de Abreu, autor da telenovela. Ele destacou o fato de todo programa da TV Globo ter, necessariamente,
8 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução que levar em consideração o conceito de multiplataformas e, já em vários casos, avançar para os domínios da transmídia. Ele destaca, inclusive, em como ser atingido pela ausência do telespectador, sempre tendo em mente essa necessidade de estar presente em um universo multiplataforma e ser viabilizado dentro dos orçamentos. Trata-se de um negócio que está funcionando bem, crescendo exponencialmente. A telenovela Passione teve um universo considerável de exibição do Twitter que foi bastante importante durante cada capítulo e no final dos capítulos. E, depois, podia-se cruzar a história por dentro do próprio site. (Gleiser, 2010, s.p.). Para Glutz, entre a mídia tradicional e o que se denomina uma experiência totalmente transmídia, há três níveis diferentes. O primeiro é o transporte, que é simplesmente quando se pega o conteúdo de determinada mídia e se o transporta para outra mídia. É o que a Globo.com faz quando, por exemplo, pega a telenovela, corta e oferece no site. Aqui não se cria nada, simplesmente, se desloca um conteúdo que estava em uma mídia para outra mídia. Isso serve para atingir pessoas que não estão naquela mídia original daquele conteúdo, pessoas que não estão vendo a novela às 21 horas e que podem querer conseguir vê-la no dia seguinte, de manhã, por exemplo, ou que perderam a novela. O segundo nível é o que se chama de tradução, quando existe uma adaptação da história na passagem de uma mídia para outra. Todos os filmes que viraram games são exemplos clássicos. Por fim, há a experiência chamada de transmídia. Trata-se de uma expansão, portanto, a obra é expandida. Os exemplos mais clássicos são: Big Brother, Heroes, Lost e Matrix. Para Michael Monello, produtor de A Bruxa de Blair, o mais importante é deixar fatos profanos e se apropriar da história. Reconstruir parodiando, amplificando, ramificando e dividindo o sucesso. A propriedade da história é do autor, então, se pode contar do jeito que se quiser. Para ele, é importante fazer o fã se apropriar da história para gerar um encadeamento maior, para gerar grandes desdobramentos para aquela história no fim. (Glutz, 2010, s.p.). Com olhos voltados à relação direta entre novos formatos narrativos e, mais acentuadamente, aos novos modelos de negócios, Steve Rudolph, diretor Global de Mídia, do Instituto de Pesquisas McKinsey, diz que, nos Estados Unidos, aproximadamente, um quarto das pessoas está disposto a pagar pelo menos US$ 5 mensais por um agregador de conteúdo de alta qualidade. Além disso, os usuários não mostram rejeição a anúncios relevantes em conteúdos audiovisuais, bem-direcionados e que podem fazer parte do entretenimento. Segundo o executivo, um terço dos anunciantes nos Estados Unidos já investe em campanhas multiplataformas. As pesquisas também apontam o declínio de 1% em número de horas assistidas no consumo de vídeo linear e um aumento de 14% no consumo não-linear. Ao mesmo tempo, a geração de receitas com vídeos nos Estados Unidos cresceu 8% no período de 1990 a
9 2010. Metade dos americanos tem gravador de vídeo digital, e metade costuma assistir ao conteúdo pré-gravado. Houve um aumento de 39% de usuários que assistem a vídeos em três telas. Na internet, 80% das atrações assistidas são gratuitas. Rudolph destacou que para monetizar nesse novo cenário de consumo de mídia, é preciso estabelecer parcerias, desenvolver conteúdos profissionais de qualidade (embora o conteúdo não-profissional seja complementar e importante), criar novas formas de conteúdo e resolver os dois lados da equação: aumento de valor para o anunciante e para os usuários. Parece que, no fim, tudo volta para a TV. Os complementos tornam a experiência de TV melhor, observa (TI INSIDE, 2010, s.p.). O quadro apresentado, embora de forma resumida, elucida o surgimento de novos modelos e/ou formatos narrativos associados com novos modelos de negócios, o que Jenkins (2008) denomina a cultura da convergência, alicerçada nos seguintes termos: a convergência dos meios de comunicação, a valorização da cultura participativa e a ativação da inteligência coletiva. Os exemplos de narrativas transmidiáticas anteriores são signos desse novo cenário conceituado pelo teórico norte-americano. Vemos, assim, a redefinição do campo midiático em que há uma mudança cultural pelas alterações nas esferas da produção e do consumo. A produção seriada no Brasil ainda não alcança o grau de convergência que a verificada no contexto norte-americano. Pelo que se pode verificar, a realidade efetiva da transmediação no âmbito narrativo pertence a lugares que detêm tecnologia, e, em termos de negócios, essa nova ficção é encabeçada por grandes corporações que estendem seu produtos em escala planetária. Produtoras independentes como a O2 e a Conspiração Filmes já integraram o seu vocabulário a produção voltada para multiplataformas, seguindo essa forte tendência contemporânea. Um exemplo pioneiro da migração e expansão de conteúdo narrativo foi experienciado pela própria O2. O circuito foi iniciado pelo curta-metragem Palace II (2000), exibido no programa Brava Gente, na Rede Globo, seguindo-se a realização do longa-metragem de sucesso internacional Cidade de Deus (2002), coproduzido pela Globo Filmes e Videofilmes, posteriormente a série coproduzida pela Rede Globo Cidade dos Homens ( ) e, finalmente, o longa-metragem Cidade dos Homens (2007), em que participaram Globo Filmes, Fox Filmes e Petrobras. É importante destacar que as variações da narrativa, cujo ponto de partida foi, na verdade, o romance de Paulo Lins, Cidade de Deus, configura uma experiência dinâmica entre produção independente cinematográfica e televisiva, não há, portanto, a mobilização de dispositivos de rede, próprios do cenário apresentado pelas mídias digitais. Evidentemente isso não atenua a importância desse exemplo para o audiovisual brasileiro e a produção para multiplaformas. 85 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez. 2011
10 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução Algumas das iniciativas mais ousadas no Brasil no que se refere à utilização de produção e distribuição do audiovisual em um ambiente de convergência midiática estão ligadas ao canal de televisão por assinatura da operadora Oi. A empresa se posiciona como uma empresa de mídia completa e, por isso, para ela é fundamental a criação de produtos adequados para todas as mídias. O canal lançou, no fim de novembro de 2009, o projeto Castigo Final, um jogo que envolvia programa de TV, site de apoio na internet, divulgação de pistas e informações de episódios pelo celular, sempre com vídeos específicos para cada mídia. O jogo previa a participação do público para salvar a vida de oito prisioneiras que estavam isoladas em um presídio de segurança máxima de alta tecnologia. Depois de uma pane no sistema, as prisioneiras começaram a ser assassinadas, e o jogador precisava descobrir o código que abriria as portas da prisão para que elas retomassem o contato com o mundo exterior. Os jogadores precisavam navegar por todo esse conteúdo para descobrir as pistas que levavam ao código secreto. As pistas foram enviadas por SMS para quem se cadastrava. (Al m e i d a, 2010, p. 101). No Brasil, a minissérie fez sucesso no mundo virtual e televisivo. Uma semana após a transmissão em TV, os episódios foram disponibilizados no site com.br. Mais de 20 mil pessoas se ligaram no site para assistir ao primeiro capítulo, e mais de 125 mil fãs, impulsionados pela estreia televisiva do programa, passaram pelo endereço eletrônico da série e interagiram em comunidades nas redes sociais, incluindo Orkut, Facebook e Twitter. Mais de um milhão de acessos também foram registrados com as chamadas e os anúncios de Castigo Final espalhados pela web. (Al m e i d a, 2010, p. 102). Essa minissérie foi indicada para o International Digital Emmy Awards/2010, conquistando para o Brasil a sua primeira participação nessa premiação da indústria televisiva. A primeira produção brasileira, 100% produzida pela BeActive Entertainment, concorreu na categoria Programa digital ficção. A série de suspense foi desenvolvida em parceria com a produtora Millagro e foi finalista do primeiro Pitching Multimídia do Canal Oi. Castigo Final concorreu com produções do Reino Unido da BBC, da Fremantle e uma produção da Alemanha, da UFA TV. Pela primeira vez, o Brasil foi indicado para uma das categorias digitais do Emmy. E depois de conquistar a primeira nomeação brasileira para o Digital Emmy Awards/2009 e de uma nomeação para um Rose d Or/2009, a série Castigo Final, conquistou o prêmio Best Internacional Format Awards na categoria de melhor formato multiplataforma em Cannes A minissérie esteve também presente como case study no evento Futuremedia/2009, que aconteceu em novembro, em Londres. A BeActive Entertainment negociou a adaptação do Castigo Final com empresas na França e nos Estados Unidos.
11 Também, nesse contexto, chamam a atenção as telenovelas produzidas para o horário nobre da Rede Globo, em que se encontram as estratégias alinhadas a esses modelos surgidos pelas demandas de circuitos integrados das plataformas digitais. Podemos verificar expedientes dessa natureza nas três últimas produções da emissora e também em Insensato Coração, Caminho das Índias (2009), Viver a Vida (2010) e Passione (2010/2011) valem-se, mesmo de forma econômica, de estruturas narrativas transmidiáticas que agregam: a exibição em capítulos no horário nobre (o produto audiovisual mais assistido no País) e a página na web, de onde se expandem o conteúdo narrativo e a esfera da recepção e dos negócios associados. O site de Caminho da Índias é um bom exemplo de como se articulou a transmediação: no menu principal, havia doze seções que incluíam Capítulos, Bastidores, fique por Dentro, Personagens, Revista, Você na Novela, Vídeos, Busca, Créditos, Trilha, Loja e Conexão Índia. Ainda no site, constavam convites para outras plataformas que continham o conteúdo da novela tais como: Twitter, o Blog do Indra e o Blog Caminho das Índias Finais. Além dos links diretos do Estúdio, Newsletter, Fale Conosco, Fale com o Diretor, Outras Atrações e Novela no Celular no menu do rodapé. Foi nessa telenovela que se dinamizaram, de forma pioneira, esses esquemas migratórios de conteúdos, as outras telenovelas seguiram, de forma parecida, esse modelo. Tendo em vista a prerrogativa da cultura da convergência como um horizonte transformador da cultura na produção e no consumo de conteúdos, podemos notar a agregação desses novos valores na esfera da telenovela global. Formam-se comunidades participativas nas redes sociais, ativa-se o interesse do público, expandindo o conteúdo em mídias locativas, provoca-se o interesse pelo desenvolvimento de jogos, mobilizam-se outros lugares para dinamizarem a fidedignidade e a identificação com o produto de ficção, bem como com as marcas que patrocinam e garantam os negócios e o lucro. 87 Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez Referências ALMEIDA, L. Mídias irmãs. São Paulo: Anuário de Mídias Digitais; Converge Comunicações, JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, LACALLE, C. As novas narrativas da ficção televisiva e a internet. Matrizes, ano 3, n. 2, p , jan./jul LOPES, M. I. V. (Org.). Ficção televisiva no Brasil: temas e perspectivas. São Paulo: Globo, 2009.
12 Sobrinho, Gilberto Alexandre. Acir, Edvaldo. Agenciamentos entre ficção seriada televisiva e novas mídias: uma introdução MÉDOLA, A. S.; REDONDO, L. V. A ficção televisiva no mercado digital. In: RIBEIRO, A. P.; SACRAMENTO, I.; ROXO, M. História da televisão no Brasil: do início ao dias de hoje. São Paulo: Contexto, MESQUITA, D. Realidade ambígua: imersão em The Lost Experience. Revista Geminis, ano 1, n. 1, p , jul./dez MURRAY, J. H., Hamlet on the Holodeck: the future of narrative in the cyberspace. Cambridge: MIT, O REILLY, T. What is Web 2.0. Design Patterns and Business Models for the next Generation of Software Disponível em: < tim/news/2005/09/30/what-is-web-20.html>. Acesso em: 13 jan TI INSIDE, Receita com conteúdos 2.0 está a caminho, diz McKinsey, Disponível em: < esta-a-caminho-diz-mckinsey/ti/194735/news.aspx>. Acesso em: 31 ago WILLIAMS, R. Television: technology and cultural form. London; New York: Fontana, Entrevistas: GLEISER, Luis. Diretor de Núcleo. Rede Globo. Local: 11º Fórum Brasil TV, Converge Comunicações. São Paulo: 29 jul GLUTZ, Marcelo. Diretor de Mídias Digitais. Globosat. Local: 11º Fórum Brasil TV, Converge Comunicações. São Paulo: 29 jul ROLLA, Pedro. Diretor de Mídia para a América Latina e Estados Unidos, Portal Terra. Local: 11º Fórum Brasil TV, Converge Comunicações. São Paulo: 29 jul
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