Mulheres e memórias: cotidiano e trabalho
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- Gustavo Paiva Farinha
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1 Mulheres e memórias: cotidiano e trabalho Sueli de Araújo Montesano 1 Esta pesquisa resgata o trabalho feminino, dos anos 50 a 70, numa metalúrgica, em uma pequena cidade no interior de São Paulo. As trabalhadoras dos anos 50, ousaram ao adentrarem ao mundo masculino de trabalho, operarem máquinas pesadas como tornos e furadeiras, vestirem macacões, roupas masculinas, numa cidade onde o uso de calças compridas ainda não havia sido instituído. O silêncio das fontes, como os jornais do lugar, da empresa, a história da empresa, os esquecimentos dos antigos operários da fábrica, a impossibilidade de pesquisar os arquivos da organização, incentivaram o resgate dessas vivências e experiências, pela memória das trabalhadoras. Ao valorizar os testemunhos desses sujeitos sociais, recupera-se fragmentos do passado, de onde emergirão os estilos de vida, o modo de agir e pensar de um tempo pretérito, nos espaços da fábrica e da cidade, carente de registros escritos. Resgato, pois, estas histórias e procuro perceber, nos discursos como se delineavam as relações homem-mulher, as expectativas e imposições sociais, os jogos de poder articulados sob a forma de dominação, subordinação, resistência e aceitação. Algumas questões se colocaram: quem eram estas operárias? Quais os sonhos e expectativas que traziam? Como encararam e se adequaram ao novo espaço de trabalho? Como eram vistas não apenas na fábrica como também no círculo familiar, de amizades e na cidade? Quais as tensões que emergiram com a aproximação do masculino e feminino no ambiente fabril e como eram enfrentados? A presente comunicação, uma fração da pesquisa, focalizará o trabalho feminino nessa fábrica, nos anos 70. As idéias de igualdade e liberdade significam que as pessoas são sujeitos de direitos, embora estes, nem sempre estejam garantidos, mas devem ser exigidos e conquistados. Nesse contexto inserem-se as lutas femininas por igualdade nos anos 70 no Brasil, possibilitando-lhes escolher entre o trabalho dentro ou fora do espaço doméstico. Foi uma década em que houve o aumento do número de mulheres na indústria, não apenas em setores considerados tradicionalmente femininos, mas também nas 1 Doutora- PUC/SP. Professora: Faculdade Campo Limpo Paulista e Universidade Ibirapuera.
2 2 metalúrgicas onde eram 10,5% do total da força de trabalho; na construção mecânica 9,2%; no material elétrico e de comunicação 31,1%; no material de transportes 8,6% 2. A bibliografia aponta que as mulheres predominavam nas indústrias alimentícias, têxteis, eletrônicas 3 porque são setores em que os trabalhos desenvolvidos são manuais, repetitivos, exigem delicadeza, destreza, enfim, como dizem são serviços de mulheres. Da mesma forma no setor de equipamentos eletrônicos o discurso é o da competência feminina pelas tarefas minuciosas e delicadas. No metalúrgico, siderúrgico, petroquímico, entre outros, a divisão sexual do trabalho ocorre havendo um maior ou menor movimento de masculinização ou feminilização no trabalho. Nestes redutos masculinos, a afirmação é de que as mulheres não podem exercer certas funções por serem pesadas, perigosas, insalubres, sujas, mas que podem ser aproveitadas para as tarefas leves, mais limpas que envolvam habilidades femininas. Na realidade isso é um estereótipo porque pesquisas mostram que na maior parte dos países do Leste, empregam-se maciçamente mulheres para as atividades pesadas 4. Nas indústrias automobilísticas, por exemplo, as operárias ingressam em setores de estofamentos (...) o trabalho consiste em costurar, cortar, juntar pedaços de tecidos, de couro ou de plástico para a proteção dos bancos, ou seja, um trabalho tipicamente feminino(...) as vezes, em certas empresas ou em certos países, elas ocupam outros postos como a montagem elétrica, em que o trabalho consiste em encaixar, no interior do veículo já montado, as partes elétricas (componentes e fios) 5 Aponta-se que essa feminilização pode, em alguns países, estar relacionada às mudanças tecnológicas em alguns postos tradicionalmente dos homens. O deslocamento das fronteiras do trabalho masculino e feminino parece ter relação com 2 Souza Lobo, Elizabeth. A prática invisível das operárias. In: O sexo do trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p Neves, Magda de Almeida. Trabalho e cidadania. Petrópolis, Vozes, 1995, pp Doarè, Hélène Le. Divisão sexual e divisão internacional do trabalho: reflexões a partir das fábricas subcontratadas de montagem (México e Haiti). In: O sexo do trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp Hirata, Helena. Nova divisão sexual do trabalho. São Paulo, Boitempo, 2002, pp.204,205. Neves, Magda de Almeida, idem, pp Hirata, Helena. op.cit. p. 207.
3 3 a desqualificação, ou seja, em setores menos qualificados as mulheres e nos mais qualificados os homens. Isso parece estar relacionado ao status e papéis tradicionalmente por elas desempenhados no espaço doméstico. Não é um trabalho especializado, técnico, por isso desempenham tarefas manuais, de auxiliares, ajudantes e sempre subordinados 6. Já o domínio masculino está relacionado ao uso da técnica, de tecnologia, fabricar ferramentas, consertar e regular máquinas, enfim o homem dedica-se a mecânica, uma tarefa viril. Logo, a utilização de equipamentos avançados, particularmente os pesados, os postos mais qualificados permanecem com eles e os não qualificados e rotineiros com as mulheres. Desta forma, há a feminilização da força de trabalho na fábrica, no momento em que a qualificação deixa ser requerida. A indústria eletrônica no Brasil e na França emprega um número significativo de mulheres. No Brasil em dezembro de 1981, constatou-se que 31% da mão de obra era feminina, ou seja, mulheres. Na França no mesmo ano e setor elas correspondiam a 34,6% 7. Nas ocupações que exigem qualificação técnica, a maioria são homens e o grande número de mulheres desempenham funções não qualificadas e nesses casos os homens são supervisores. Estudos de uma multinacional francesa que também tem fábrica no Brasil 8 apontaram que em ambas elas compõem 70% da força de trabalho na produção. As explicações do emprego do trabalho feminino no ramo eletrônico baseia-se na interligação das esferas de produção e reprodução, ou seja, as habilidades adquiridas no aprendizado doméstico para a família é apropriado pela fábrica 9 Essas questões parecem estar relacionadas com a empresa pesquisada. Esta, nos anos 60, fabricou e testou o primeiro torno à comando numérico e nos anos 70 adotou máquinas à comando numérico computadorizado. O trabalho de montagem de painéis mecânicos e eletrônicos era realizado por homens e nessa época passou a ser tarefa das mulheres, que eram treinadas para executar o serviço, segundo depoimento de um ex-funcionário. (...) eram trabalhos feitos por homens antigamente e depois passou para as mulheres por serem mais delicadas, pacientes era trabalho mais adequado a elas (...) 10. O discurso de se trabalhar com equipamentos eletrônicos é o da competência feminina pelas tarefa minuciosas e delicadas. As empresa se apropriam das 6 Idem p Hirata, Helena. op. cit. p Idem. 9 Idem, p Funcionário aposentado,entrevista janeiro/2004.
4 4 qualidades femininas, para a realização de tarefas desqualificadas, com salários inferiores aos homens 11. Além destes, na empresa pesquisada, algumas rebarbavam peças pequenas e delicadas, outras trabalhavam nos escritórios dentro da fábrica, como na manutenção, no almoxarifado, onde faziam anotações, utilizavam fichários o que exigia o primeiro grau completo. Também haviam algumas no controle de qualidade, na regulagem de calibre, micrômetros e outros instrumentos. Por sofrerem desgastes com o uso, estes, constantemente, precisavam passar pela metrologia conforme depoimento. (...) todos instrumentos após o uso passavam por uma inspeção na sala de metrologia para controle (...) A sala de regulagem ficava na usinagem e as moças tinham vergonha de entrar na fábrica.tinha uma funcionária que entrava de cabeça baixa e saia assim (...) ela fazia um trabalho administrativo(...) 12. Na empresa pesquisada, como em outras, percebe-se que as mulheres eram contratadas tendo em vista minimização dos custos, além de ser força de trabalho maleável, obediente, dócil, e não organizada 13. Também, a maioria das trabalhadoras são jovens o que explica pelo fato delas não terem obrigações familiares, via de regra gozavam de boa saúde, condições físicas, acuidade visual, destreza das mãos 14. Pelas memórias, afirmaram que, na época, na empresa, ganhavam melhor que em outras da cidade, mas mesmo assim os salários eram em torno de 50% menor do que dos homens da mesma fábrica. Essa diferença parece estar relacionada com as qualidades femininas que, não sendo adquiridas por canais institucionais reconhecidos, nas quais não se investiu em aprendizado, são entendidas como qualidades naturais, inatas e não conquistadas num longo aprendizado informal doméstico. Logo, são desqualificadas, e tem baixo valor 15. Como elas eram mal formadas sem qualificação para o trabalho fabril, essas características foram muito bem aproveitadas pelas empresas, para justificarem os baixos salários. Tais diferenças, na empresa pesquisada, não eram questionadas por elas e nem pelos homens, provavelmente, pela legitimidade da visão do trabalho 11 Souza Lobo, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. São Paulo, Brasiliense,1991, pp Funcionário aposentado, entrevista janeiro/ Doaré, Hélène Le, op.cit p Idem, pp Kergoat, Daniele. Em defesa de uma sociologia das relações sociais. In: O sexo do Trabalho, op. cit. p.84.
5 5 natural das mulheres. A remuneração feminina era, tradicionalmente, vista como complementar, acessória, portanto, não era preciso ser igual a do homem, que era provedor do lar. Nesse contexto, provavelmente, pela interiorização dessas diferenças de papéis, essa inferioridade era a aceita por entenderem o trabalho feminino como de menor valor que o masculino. As trabalhadoras pesquisadas, jovens, algumas com o curso ginasial completo, lembraram que era muito difícil ingressar na empresa. As vagas eram disputadas porque, ela era a que melhor pagava na cidade, oferecia estabilidade aos operários e era difícil demitir. Treinava seus trabalhadores, possibilitava-lhes uma profissão, e por muito tempo foi vista como uma escola. Soma-se a isso que, trabalhar lá era ótimo para curriculum, tanto dentro como fora da cidade. (...) era dizer que trabalhou na... para ter emprego garantido (...) Eram tidos como bons funcionários(...). Ser funcionário nessa indústria também conferia um status diferenciado na cidade, o mito dos bons rendimentos e em época que não havia cartão de crédito ela era a referência por não atrasar os salários. A empresa conseguia dessa forma manter essa mão de obra sob controle, silenciada, pois a visão operária da empresa era da oportunidade do ganho e a perspectiva de ascensão profissional e social. Trabalhar em escritórios menores na cidade, em fábricas têxteis, significava ganhar menos e nas tecelagens, não ter nenhum estudo. Parece, pois, que o desenvolvimento tecnológico da indústria local teve um impacto favorável ao possibilitar a inclusão das mulheres no mundo masculino fabril e com ele a emergência de novas oportunidades de trabalho, o desempenho de novos papéis sociais fora de casa, que ao longo do tempo, contribuiu para as transformações dos valores, dos hábitos tradicionais e para alterar, de certa forma, o padrão cultural de uma parcela da população. Por outro lado, mantém o modelo tradicional, ao incorporar as mulheres em tarefas femininas, com baixos salários, oferecendo-lhes um papel secundário numa sociedade e, particularmente, numa empresa dominada por homens. Bibliografia Doarè, Hélène Le. O sexo do Trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 Gorz, André.Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo, Martins Fontes, Hirata, Helena. Nova divisão sexual do trabalho. São Paulo, Boitempo, Kergoat, Danièle. O sexo do trabalho. Rio de janeiro, Paz e Terra, Gorz, André. Crítica da Divisão do trabalho. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
6 6 Neves, Magda de Almeida. Trabalho e Cidadania: as trabalhadoras de Contagem Petrópolis, Vozes, Souza-Lobo. Elizabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho dominação e Resistência. São Paulo, Brasiliense,1991.
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