HETEROGENEIDADE E AFIRMAÇÃO DO ENTE: DUNS ESCOTO E A ESTRUTURA DA ONTOLOGIA 1



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Transcrição:

HETEROGENEIDADE E AFIRMAÇÃO DO ENTE: DUNS ESCOTO E A ESTRUTURA DA ONTOLOGIA 1 PEDRO M. GONÇALO PARCERIAS 1. Ontologia e metafísica O que se manifesta como origem sempre se oferece ao pensamento na obscuridade da não-determinação ou da não-limitação pois, todo o determinado, é desde sempre marcado pela posteridade como sua qualidade essencial. Contudo, o que assim se manifesta, sempre afirma, juntamente com a origem, a instabilidade originária do seu ser princípio porque, na instabilidade, o que origina jamais se deixa comutar com o originado, o qual, enquanto determinado, encontra sempre a sua posição como uni dado estável. A instabilidade originária enquanto permanece na sua essência é o que nunca se deixa apropriar ou proporcionar através de um análogo - é o que sempre permanece heterogéneo a toda a proporção ou razão de comutabilidade. Na instabilidade fundamental, é o fundo indiferenciado do que é absolutamente heterogéneo que rege a totalidade das possibilidades do fundado. O fundo não se opõe, no entanto, ao fundado - a origem, na sua total indeterminação sem condições, é absolutamente unilateral. Opor o 1 O presente trabalho foi objecto de uma conferência proferida no dia 14 de Março de 2003, sob o título Heterogeneidade e afirmação do ente. Estrutura da ontologia medieval: consequências e rupturas, conferência essa inscrida no âmbito do Seminário informal de Filosofia Medieval, organizado pelo Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Para esse efeito, o autor contou com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, instituição da qual é bolseiro. Sobre o conceito de heterogeneidade foi já publicado um outro trabalho - Pedro Parcerias, Pensar o excesso. Porto 2002 -, o qual entra em conexão próxima com o texto aqui apresentado. Este afirma o conceito de heterogeneidade como regência e instauração da estrutura fundamental da ontologia; aquele aborda a dissolução e o excesso do que é doado por essa estrutura fundamental, bem como a sempre recondução dos mesmos ao seu interior. Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004 ) pp. 95-128

96 Pedro M. Gonçalo Parcerias fundado ao fundo seria, na afirmação do fundado, negar a origem como sua contrariedade. Os enunciados que se distribuem segundo a contrariedade tomam um dado determinado como origem desde sempre ofuscada por um outro princípio, o qual se esconde por detrás da oposição obscurecendo-a, sendo aí, a oposição, a zona do pensável a clarificar pelo ordenamento e distribuição de outras oposições derivadas desta primeira. Esta clarificação opera por comutabilidades e proporções : separa a zona clara da obscura, tomando esta segundo um valor invertido ou de sinal contrário em relação ao termo claro e esclarecedor. Cindindo a totalidade que é doada com a heterogeneidade da origem, não é somente o obscuro que se sepa ra do claro mas é, também, a metafísica que se separa da ontologia; é o que está para além do determinado que se esconde, enquanto origem perdida ou ruído de fundo, atrás do que é clarificado nas determinações seguindo a escala das oposições. Neste ordenamento, a oposição posta pelo discurso filosófico contemporâneo entre metafísica e ontologia funda-se na oposição recíproca entre o ente e o nada na questão «porquê o ente e não o nada?»2. O questionado na questão supõe já uma cisão na totalidade pois, a essência da questão, reside na operação que possibilita a escolha entre um enunciado disjuntivo que sempre, enquanto questionado, é suposto pela questão. É a oposição na questão entre o ente e o nada que proporciona o redesenhar da metafísica como ontoteologia a qual, desta maneira, se deverá sempre inclinar para o lado de uma ciência do ente supremo mais do que para uma ciência do ente em geral ou do ente enquanto ente, abandonando a metafísica o seu papel de ciência originária à ontologia e remetendo -se, por fim, ao lugar de ciência regional. Se se considerar o ente enquanto oposto ao nada, uma ciência que considere o ente supremo não poderá nunca deixar de relegar para um plano de verdade derivada, logo menos verdadeira, o ente enquanto ente pois, todo o ente que não o primeiro, inclui sempre um certo grau de mistura com o nada, enquanto determinação essencial da sua temporalidade, por oposição com a eternidade do ente supremo3. Assim, 2 Martin Heidegger, Was ist Metaphysik?, 9a ed., Frankfurt 1965, p. 23: "Warum ist überhaupt Seiendes und nicht vielmehr Nichts?". 3 De acordo com Heidegger, o nada que se opõe verticalmente ao ente é o nada da «dogmática cristã» como ausência (Abwesenheit ) do ente supremo ou do maximamente existente, e isto enquanto o nada é aquela ausência a partir da qual provém o ente criado - Martin Heidegger, op.cit., p. 39: "Die christliche Dogmatik dagegen leugnet die Wahrheit des Satzes ex nihilo nihil fit und gibt dabei dem Nichts eive verãnderte Bedeutung im Sinne der võlligen Abwesenheit des aubergõttlichen Seienden : ex nihilo fit - ens creatum. Das Nichts wird jetzt der Gegenbegriff zum eigentlich Seienden, zum summum ens, zu Gott als ens increatum. Auch hier zeigt die Auslegung des Nichts die Grundauffassung des Seienden an". pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra -n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 97 a ontologia enquanto ciência originária, deveria abandonar a consideração do ente supremo, confinando - se à alternância entre ser e nada na sua mútua oposição, enquanto o ser se dá como tempo4, constituindo-se, então, o horizonte da temporalidade como alternância comutável entre o ser e o nada, e isto enquanto ser e nada se compõem reciproca (Sein und nichts gehõren zusatnmen5 ) e homogeneamente, tanto na essência da verdade enquanto comutabilidade recíproca entre o velar e o desvelar, como na verdade do ser que transporta na sua essência o seu comutável recíproco, isto é, o nada6. A ultrapassagem ou pretensa ultrapassagem da metafísica pela ontolgia reside, pois, no dispositivo de substituição do particípio ou do substantivo pelo verbo, ou seja, na substituição da metafísica enquanto ciência do ente enquanto ente pela ontologia enquanto questionar que se dirige ao ser enquanto ser. Na ontologia da comutabilidade entre ser e nada, o ente como tal abandona o seu lugar de subiectum da ciência para se transformar em obiectum ou Gegenstand, o qual é iluminado pela doação do ser como tempo. O dispositivo de substituição assenta no enunciado segundo o qual o devir é permanente alternância entre o ser e o nada e, se o devir se deve constituir como horizonte do obiectum, porque o tempo é o primeiro nome ( Vorname ) do ser7, deverá ser um verbo a ocupar a preocupação do pensamento, uma vez que, aparentemente, é o verbo que dá conta do devir e não o particípio ou o substantivo. O enunciado contemporâneo «o ser dá-se como tempo» ou «o ser manifesta - se na sua alternância com o não-ser» constitui -se, na verdade, a partir da aporia aristotélica sobre o tempo, bem como a partir da tematização agostiniana pela psicologização do tempo e, ainda, através da resolução provisória de Averróis daquela aporia, com a necessária transposição da mesma do campo da física para o campo da ontologia. A dita aporia habita na oposição entre o campo cosmológico do tempo e a sua dimensão psicológica. Embora a tese aristotélica, no seu conteúdo aporético, oponha dialecticamente a cosmologização do tempo e a sua psicologização, a unidade do tempo enquanto subiectum encontrar-se-á do lado cosmológico. O tempo é, aí, medida do movimento porque número do movimento mas, o que procede à operação numeradora, é a alma ou o intelecto8. A aporia 4 Ibid, p. 17: "Sein ist in Sein und Zeit nicht etwas anderes ais Zeit, insofern die Zeit ais der Vorname für die Wahrheit das Wesend des Seins und so das Sein selbst ist". 5lbid, p. 39. 6 Ibid, p. 35: "Das Nichts gibt nicht erst den Gegenbegriff zum Seienden her, sondem gehdrt ursprünglich zum Wesen selbst". 7 Cf. nota 4. 8 Sobre o tempo como número do movimento segundo o anterior e o posterior: Aristóteles, Física, ed. H. Cateron in Physique, ed. bilingue, V ed., Paris 1961, IV, 11, Revista Filosófica de Coimbra - a. 25 (2004) pp. 95-128

98 Pedro M. Gonçalo Parcerias do tempo, porque o número não pode existir sem uma alma numerante, divide-se assim entre o esse in re e o esse in anima. Contudo, o que deverá unificar o tempo enquanto subiectum, para além da pluralidade dos distintos movimentos e da multiplicação das operações numeradoras pelo número de intelectos, será o movimento hierarquicamente superior, a saber, o movimento do céu na medida em que, na sua eternidade, é contemporâneo a todos os restantes movimentos. À tendência cosmológica de Aristóteles, opõe-se a tese agostiniana segundo a qual o espírito ou a alma se dispõe como lugar do tempo e como operador da sua unidade. A unidade do tempo enquanto subiectum constitui-se através da possibilidade que a alma ou espírito tem de dilatar o agora presente enquanto distentio A resolução averroísta entre as duas tendências da aporia é realizada através da distinção aristotélica entre potência e acto. Fora da alma, o tempo existe somente em potência, e o seu ser coincide materialmente com o do movimento, sendo a operação da alma, enquanto esta numera o movimento, o que confere ao movimento a sucessão enquanto ser em acto do tempo. "cum non fuerit anima, non erit tempus. Nisi aliquis dicat quod erit, etsi anima non fuerit, ex illo quod, cum fuerit in actu, tempus erit in potentia. Et hoc est propter suum subiectum proprium, scilicet motum. Et hoc intendebat, cum dicit: «Verbi gratia quoniam possibile est, ut motus sit absque eo, quod 219b1-2; ARISTOTELES LATINUS, Physica - translatio vetus, ed. F. Bossier e J. Brams, vol. VIII -1, Leida-Nova Iorque 1990, IV, 11, p. 175: "hoc enim est tempus: numerus motus secundum prius et posterius"; sobre a operação numeradora da alma sem a qual não existe número nem tempo: Aristóteles, Física IV, 14, 223a21-29. ARISTOTELES LATINUS, Physica IV, 14, pp. 188-189: "Utrum autem cum non sit anima, erit tempus aut non? Dubitabit enim aliquis; inpossibile enim cum sit numerantem esse, inpossibile est et numerabile aliquod esse; quare manifestum est quia neque numerus; numerus enim est aut quod numeratur aut numerabile. Si autem nichil aliud aptum natum est quam anima numerare et anime intellectus, inpossibile est esse tempus anima si non sit, sed aut hoc quando aliquando cum sit, tempus est, ut si contingit motum esse sine anima. Prius autem et posterius in motu sunt; tempus autem hec sunt secundum quod numerabilia sunt". 9 Agostinho de Hipona, Confessiones, XI, 28, 37: "Sed quomodo minuitur aut consumitur futurum, quod nondum est, aut quomodo crescit praeteritum, quod iam non est, nisi quia in animo, qui illud agit tria sunt? Nam et expectat et attendit et meminit, ut id quod expectat per id quod attendit transeat in id quod meminerit. Quis igitur negat futura nondum esse? Sed tamen iam est in animo expectatio futurorum. Et quis negat praeterita iam non esse? Sed tamen adhuc est in animo memoria praeteritorum. Et quis negat praesens tempus carere spatio, quia in puncto praeterit? Sed tamen perdurat attentio, per quam pergat abesse quod aderit. Non igitur longum tempus futurum, quod non est, sed longum futurum longa expectatio futuri est, negue longum praeteritum tempus, quod non est, sed longum praeteritum longa memoria praeteriti est". pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 99 anima sit», id est, motus erit, etsi anima non erit. Et secundum quod prius et posterius sunt in eo numerata in potentia, est tempus in potentia, et secundum quod sunt numerata in actu, est tempus in actu. Tempus igitur in acto non erit, nisi anima sit; in potentia vero erit, licet anima non sit".10 A síntese averroísta entre a tendência cosmológica da temporalidade aristotélica e o tempo da alma agostiniano, a partir da distensão do agora presente, na sua translação para a matriz da ontologia fenomenológica, encontra-se perante a seguinte transmutação: o vúv ou nunc, o agora aristotélico, conforme se considere o original grego ou a sua translatio medieval, enquanto elemento não temporal do tempo, torna-se doação intra-mundana do campo ontológico ou, de outra maneira, manifestação ôntica da dimensão ontológica. O vúv deixa de ser o elemento da medida do movimento para que a sua alternância, segundo o anterior e o posterior, se converta na constituição, como tempo, da doação do ser assim descosmogilizado. Contudo, a pura doação somente encontra o seu sentido - isto é, o seu acto - na sua compreensão, a qual, em Heidegger, é realizada pelo Dasein enquanto lugar da compreensão do ser e, como tal, abertura à doação do ser enquanto ser, ou do ser que na sua comutabilidade com o nada se dá como tempo. É o ente como obiectum ou Gegenstand que é, pois, iluminado pela doação do ser na alternância e reciprocidade com o nada e que se doa à compreensão na temporalização do Dasein ou, segundo a origem medieval e agostiniano-averroísta da tese, é o tempo em potência que se temporaliza pela sua vinda ao acto na distensão da alma ou na sua operação numeradora. Do subiectum ao obiectum, a pretensa ultrapassagem da metafísica pela ontologia salda-se na tese segundo a qual o ente supremo, ou o que maximamente é ente, cede a sua verticalidade à horizontalidade da comutabilidade, como tempo, entre o ser e o nada. Porém, o saldo tem custos: a ontologia toma-se num discurso sobre comutabilidades onde o que é se mostra na comutabilidade com a proporção inversa. Ou seja, o que se produz no lugar do pensamento fundamental é um esvaziamento do conceito metafísico como tal, isto é, do conceito metafísico enquanto conceito intensivo] 1. Na ontologia fenomenológica, o ser esgota-se 10 Averróis, In physicam in Aristotelis Opera cum Averrois Cornmentariis, vol. IV, Veneza 1562, t. 131, fol. 202E ; sobre toda esta problemática da chamada «realidade do tempo» - cf. Pasquale Porro, Forme e modelli di durata nel pensiero medievale, Lovaina 1996, pp. 2-17. 11 Na ontolgia de Duns Escoto, o que caracteriza o conceito metafísico como tal é a sua intensidade ou a sua possibilidade de intensidade, porque a exterioridade da diferença sempre afirma o ente entre o infinito e o finito como graus de entidade e como modos de ser. Embora a temática venha a ser discutida mais à frente no presente trabalho, para uma Revista Filosófica de Coimbra - n. 25 (2004) pp. 95-128

100 Pedro M. Gonçalo Parcerias na extensão recíproca do vúv na sua alternância com o nada pois, todo o comutável, deve ser dotado de um valor extensivo que constitui o seu limite, esgotando a sua essência na sua proporção. E, como o que esgota a sua essência na sua proporção encontra o seu fim no exterior de si num outro comutável, o ser enquanto ser, na ontologia fenomenológica, encontrará o seu fundamento numa transcendência escondida ou perdida enquanto primeiro análogo dos analogados na comutabilidade. Assim, a nivelação do ser com o nada na horizontalidade, resulta num outro modo de ciência regional ou restrita, que sempre remete para uma origem perdida num ente supremo escondido. Por outro lado, para que a ontologia se constitua como ciência, o seu subiectum tal como o que doa o obiectum não se poderá perder na equivocidade, devendo manter uma certa unidade, senão unívoca, pelo menos analógica12. A mesmidade do ser na ontologia de Heidegger, a qual permitirá o fundar do discurso científico, é paralela à mesmidade do vúv na cosmologia aristotélica : é sempre o mesmo ser que é doado como tempo, tal como no movimento dialéctico do tempo é sempre o mesmo agora que sobrevém como elemento não-temporal do tempo. No entanto, o carácter elementar do vúv põe o seguinte problema levantado pela sua indivisibilidade enquanto elemento: "Si enim instans est idem secundum substantiam - copulans partes temporis - et variatum secundum rationem, et maior est distinctio instantis in diversis partibus temporis quam in una, sicut de puncto in linea, sequitur quod instans nec secundum substantiam nec secundum rationem manet in toto tempore. Et licet Philosophus ibi dicat aliqua verba quae videntur sonare aliud, tamen si attendatur solutio praedicta, non sonant aliud, sed secundum haec dieta faciliter possunt exponi ; non enim est intelligibile quod aliquod indivisibile manet idem in omnibus partibus."13 A tese segundo a qual o ser se dá como tempo na alternância com o nada encontra a sua origem na tese aqui refutada por João Duns Escoto: é exposição mais completa desta problemática - cf. Pedro Parcerias, Duns Escoto, o pensável e a metafísica virtual, volume monográfico de Medixvalia. Textos e estudos 19 (2001), pp. 111-115 e pp. 143-156. 12 O problema prende-se com a necessidade de encontrar um universal comensurável que sirva de género a uma dada ciência, tal como foi descrito por Aristóteles nos Segundos Analíticos (1, 4, 73b 26-74a 3), e com a impossibilidade genérica do ente na constituição da metafísica. 13 João Duns Escoto, Lectura, ed. Vaticana, Cidade do Vaticano, 1950ss, 11, dist. 2, p. 1, q. 2, n. 92 pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente: Duns Escoto e a estrutura da ontologia 101 sempre o mesmo ser que se doa, ora como ser ora como nada, segundo o tempo - o que varia não é a sua substância ou essência mas, sim, a sua razão, ou seja, a sua doação enquanto obiectum. Porém, o indivisível que constitui o tempo não pode manter em todo o tempo a sua mesmidade essencial. Por um lado um indivisível não pode ser movido na constituição do fluxo, porque, primeiramente, o indivisível percorreria uma distância inferior ou igual a si antes de percorrer uma maior. Como um indivisível não tem partes, logo etc14. Por outro lado, a distância entre os instantes seria variável. Os instantes seriam dotados de grandeza e, deste modo, de grandezas variáveis. Assim, o instante não pode ser o mesmo segundo a sua essência em todo o tempo, nem o ser na tese segundo a qual a sua doação constitui o tempo. O ser na alternância com o nada, para além de cair na categoria da quantidade - o que lhe retira qualquer pretensão de concomitância com a essência do ente -, ao cair na equivocidade absoluta, não pode mais constituir o obiectum da ontologia porque se dispersa carecendo de unidade. A ontologia fenomenológica somente se pode constituir como discurso unificado através do primado da consciência que atribui sempre o mesmo sentido ao ser que se apresenta como obiectum na sua equivocidade. Aí, o conceito de ser é puramente nominal. A sua densidade conceptual não resulta de uma agregação intensiva, mas do nivelar segundo as comutabilidades extensivas na proporção que esgota a essência da doação do ser. Contudo, como uma essência jamais cai na categoria da quantidade - porque no homem não se pode dizer onde termina o animal e começa o racional - o ser que se doa como tempo na alternância com o nada é uma essência previamente esvaziada para que possa ser apresentada à consciência. 2. A metafísica como ontologia A ciência originária, enquanto a origem sempre envolve a totalidade, terá necessariamente de ser uma ciência da totalidade. O seu subiectum não deverá, de modo algum, ser limitado ou comportar qualquer tipo de condições. A metafísica será, então, ciência do ente na sua comunidade, isto é, ciência do ente enquanto ente. O subiectum originário e sem condições é o subiectum que é pressuposto por todos os restantes; é o subiectum que 14 João Duns Escoto, Ordinatio 11, ed. Vaticana, dist. 2, p. 1, q. 2, n. 99: "indivisibile non potest moveri, quia tunc motus eius componeretur ex indivisibilibus, quia prius pertransiret minus vel aequale sibi, quam maius; igitur tempus esset compositum ex indivisilibus, quod est contra PHILOSOPHUM.". Revista Filosófica de Coimbra - e. 25 (2004) pp. 95-128

102 Pedro M. Gonçalo Parcerias não necessita de condições prévias para se afirmar, mas que determina os seus consequentes sem condições. "Igitur ostensum est tibi ex his omnibus quod ens, inquantum est ens, est commune omnibus his et quod ipsum debet poni subiectum huius magisterii, et quia non eget inquiri an sit et quid sit, quasi alia scientia practer hanc debeat assignare dispositionem eius, ob hoc quod inconveniens est ut stabiliat suum subicctum an sit et certificet quid sit scientia cuius ipsum est subiectum, sed potius debet concedere tantum quia cst et quid est. Ideo primum subiectum huius scientiae est ens, inquantum est ens; et ca quae inquirit surti consequentia ens, inquantum cst ens, sine condicione".1s E, o que não carece de condições prévias é o que não se sujeita a uma questão para a sua afirmação. Ou seja, o ente enquanto ente é o que se afirma de modo absoluto sem contrário e permite, desta maneira, fundar a ciência sobre a unidade do seu subiectum pois, a ciência que considera o ser na alternância com o nada, não pode nunca deixar de trazer anexa uma certa tendência para a dispersão. Em Aristóteles, o que conferia unidade à intra-mundaneidade do tempo era o movimento circular do céu o qual, enquanto primeiro móvel, unificava todo o tempo enquanto medida dos diversos movimentos. Consciente da necessidade, contra a dispersão, de uma condição de possibilidade de agregação da estrutura do tempo, a ontologia de Heidegger encontra no ser-para-a-morte do Dasein esse mesmo princípio, e isto enquanto a morte é a possibilidade absoluta que sempre vem ao encontro do Dasein, libertando todas as restantes possibilidades e, porque assim singulariza (vereinzelt) o Daseitl, a morte agrega a totalidade das possibilidades como estrutura do Dasein16. Porém, num e 15 AVICENNA LATINUS, Liber de philosophia prima sive Scientia Divina, ed. S. Van Riet, Lovaina -Leiden 1977, 1, 2, pp. 12-13. 16 A antecipação da morte no seu sentido próprio - isto é, como um dirigir-se para a sua possibilidade (Vorlaufen in die Müglichkeit - Martin Heidegger, Sein und Zeit, 53, p. 261) - revela ao Dasein o seu poder- ser originário como um todo. Perante a inultrapassabilidade ( Unüberholbarkeit ) da possibilidade que é a morte, a qual é sempre presente como morte singular de um Dasein singular, o Dasein singulariza-se no seu ser-para-o fim pois, somente o Dasein, pode assumir essa sua possibilidade. Sendo a morte o absolutamente nada do Dasein, este é o fundamento do seu nada. Ser um poder-ser na totalidade quer dizer que o Dasein nunca é dado definitivamente mas é sempre poder-ser: sempre desenrola as suas possibilidades temporalizando -se. A morte, na sua inultrapassabilidade, liberta todas as restantes possibilidades para o Dasein, porque não poderá haver nenhum percurso previamente dado que não possa ser atalhado pela morte. No nível ôntico-existentivo, decidir-se pelo seu ser-para-a -morte significa suportar a pura possibipp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 103 noutro caso, tanto o movimento do céu como a morte do Dasein incluem- -se na facticidade do mundo e permanecem, consequentemente, no exterior do que tem dignidade de princípio ontológico. Contudo, a morte no ser- -para-a-morte, em Heidegger, emerge como um certo princípio ontológico na medida em que liberta a totalidade das possibilidades do Dasein e, porque o Dasein é o lugar da compreensão do ser (Seinsverstdindnis)I7, liberta a totalidade da compreensão do sentido do ser. Mas, o facto de algo que é doado facticamente se poder constituir em princípio ontológico, somente é possível porque deriva de um outro princípio ontológico, este sim fundamental e mais originário no interior da ontologia heideggeriana, a saber, o nada absoluto enquanto origem da negação". Assim, como o nada absoluto é o que se doa na alternância com o ser na sua equivocidade e dispersão, a unidade da ontologia fenomenológica somente emerge ao nível do Dasein, constituindo-se, aí, a ciência como ciência regional. O que acontece porque o obiectum da ontologia fenomenológica tem condições prévias, e somente o que não tem condições, isto é, o que é absolutamente originário, se pode afastar da dispersão e da equivocidade. A unidade da ciência através da estrutura da temporalidade encontra, em Kant, um outro tipo de formulação. Se, por um lado, o tempo enquanto forma pura da representação é ligação do diverso, permitindo agregar o obiectum ou Gegenstand numa representação unitária, por outro lado, o tempo como sentido interno deve entrar em conexão com outra unidade originária, e também transcendental, a qual se constitui como própria possibilidade da representação, a saber, a unidade da apercepção pura - o eu penso enquanto zona absolutamente determinável da pensabilidade da coisa que, acompanhando na sua mesmidade e identidade a totalidade dos pensamentos, permite a sua agregação em torno da marca da identidade pois, sem esta, algo seria representado à consciência não podendo, tio entanto, ser pensado19. Porém, a absoluta determinabi1idade do princípio lidade enquanto tal. Não como algo no futuro que pode vir a ser presente, mas sim como porvir (Zukunft), como puro poder-ser em sentido próprio do Dasein - cf. Seio und Zeit, 53 e 65. 17 Cf. ibid, 31. Is Martin Heidegger, Was ist Metaphvsik?, p. 28: "Gibt es die Verneinung und das Nicht nur, weil es das Nichts gibt? Das ist nicht entschieden, noch nicht einmal zur ausdrücklichen Frage erhoben. Wir behaupten: das Nichts ist ursprünglicher ais das Nicht und die Verneinung.". 19 Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunfi, B 131-132: "Das: Ich denke, mui) alie meine Vorstellungen begleiten kônnen; denn sonst würde etwas in mir vorgestelit werden was gar nicht gedacht werden kónnte, welches eben so viel heibt, ais die Vorstellung würde entweder unmóglich, oder wenigstens für mich nichts seio <...>. Also hat alies Mannigfaltige der Anschauung Bine notwendige Beziehung auf das: Ich denke". Revista Filosófica de Coimbra - n. 25 (2004 ) pp. 95-128

104 Pedro M. Gonçalo Parcerias originário confere à ciência uma certa instabilidade fundamental como origem. "Zum Grunde derselben kdnnen wir aber nichts anderes legen, ais die einfache und für sich selbst an Inhalt gíinzlich leere Vorstelung: Ich, von der mann nicht einmal sagen kann, daâ sie ein Begriff sei, sondem ein bloâes Bewuâtsein, das alie Begriffe begleitet. Durch dieses Ich, oder Er, oder Es (das Ding), welches denkel, wird nun nichts weiter, ais ein transzcndentaies Subjekt der Gedanken vorgestclit = x, welches nur durch die Gedanken, die seine Prãdikate sind, erkannt wird, und wovon wir, abgesondert, niemals den mindesten Begriff haben kõnnen".20 A instabilidade do princípio enquanto absolutamente determinável não é em si mas, sim, na sua transitividade para a determinação, porque é somente quando se procura saber o que é esse determinável, ou seja, quando se procuram os seus predicados essenciais, tentando nomeá-lo como «eu», «ele», «aquilo» ou «coisa», que o determinável que acompanha todos os pensamentos devém problemático pois são esses mesmos pensamentos que são os seus predicados - isto é, são esses pensamentos que o determinam enquanto conceito. No entanto, tal determinação não se encontra ontologicamente fundamentada, parecendo depender do mesmo tipo de voluntarismo metafísico que preside à determinação do ego cogito cartesiano. E, também no texto cartesiano surge a mesma instabilidade filosófica do princípio. "Ego sum, ego existo, quoties a me profertur, vel mente concipitur, necessario esse verum. Nondum vero satis intelligo, quisnam sim ego ille, qui jam necessario sum".21 O que se impõe na sua apodicticidade - o ego sum - é, na verdade, um conceito vazio e indeterminado, o qual somente se constituirá como determinado, enquanto representação completa, através de uma operação voluntária que lhe atribui a marca do ego sum. Tal como acontecerá em Kant, a mesma vacuidade do princípio, a sua pura determinabilidade, transforma-se em problema no seu devir na determinação - no chamar a si de uma quididade que ultrapasse a pura determinabilidade. Mas, se o princípio se caracteriza pela sua absoluta determinabilidade, a sua essência somente 20 Ibid, A345-6 / B403-4. 21 Renê Descartes, Meditationes de prima philosophia in Euvres de Descartes, ed. C. Adam & P. Tannery, vol. VII, nouvelle présentation, Paris 1983, p. 25. pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - a." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 105 poderá ser heterogénea ao que funda e que, depois, devém como certeza apodíctica determinada fundadora da ciência, a qual se encontra como termo de um mecanismo voluntário e que não segue a necessidade heterogénea do princípio ou subiectum da ciência. Ou seja, se se fizer encontrar o ego sum ou o ego cogito com a pura determinabilidade do princípio, sem o recurso à operação voluntária, o ego cogito devirá predicado e não subiectum. É na pura determinabilidade do subiectum da ciência originária que habita a sua heterogeneidade enquanto sua essência - é o seu ser sem condições que rege, mantendo-se na sua pureza e vacuidade, a totalidade do condicionado ou determinado. A ciência originária deve, então, recusar a tentação do determinado e instalar-se na instabilidade filosófica da heterogeneidade do seu fundamento. E essa instabilidade filosófica é o que caracteriza o subiectum da ontologia medieval após a entrada, no ocidente latino, dos libri naturales de Aristóteles. É a pura determinabilidade e instabilidade do enunciado ens inquantum ens que agregará em seu redor a totalidade das distintas variantes de uma mesma estrutura medieval da ontologia ou metafísica, ou da metafísica como ontologia. Isto não quer, no entanto, dizer que a ontologia medieval se constitui como um bloco uniforme, tirando uniformemente as suas consequências de um mesmo fundo comum. Ao invés, a afirmação do ens inquantum ens sitie condicione, enquanto afirmação de uma invariância originária, caracterizar-se-á sempre pelo irromper do disforme a cada afirmação da estrutura unitária e originária22. Naturalmente, é no habitar da instabilidade que surge também a tentação do determinado. Por isso, a afirmação heterogénea da instabilidade deverá emergir segundo três formas que representam outras tantas posições entre a afirmação da instabilidade originária e a tentação pelo determinado. A afirmação do ens inquantum ens, na sua heterogeneidade e instabilidade, pode, então, ser negativa, restritiva ou positiva. Afirmar o conceito de ente como subiectum da ciência originária é posicionar na origem o mais confuso e indeterminado dos conceitos, o qual, paradoxalmente, é também o maximamente cognoscível ou pensável. Este máximo do conceito de ente é guardado e afirmado pela sua comunidade ou pelo seu ser comuníssimo. 22 Pois todo o disforme deve sempre ser reconduzido a uma permanência - João Duns Escoto, De primo principio, ed. Felix Alluntis in Tratado acerca del primer principio, ed. bilingue, Madrid 1989, c. 3, n. 30: "Nulla enim difformitas perpetuatur nisi in virtute alicuius permanentis quod nihil est successionis, quia omnia successionis sunt eiusdem rationis ; sed est aliquid prius essentialiter, quia quidlibet successionis dependet ab ipso, et hoc in alio ordine quam a causa proxima, quae est aliquid illius successionis". Revista Filosófica de Coimbra - n. 25 (2004) pp. 95-128

106 Pedro M. Gonçalo Parcerias O ente é o maximamente pensável porque, sendo comum a todo o campo da pensabilidade, sempre que o pensamento se dirige a um certo pensável, pressupõe o conceito de ente sem condições. É, pois, a extrema comunidade do conceito de ente que constitui a marca da sua obscuridade ou da sua confusão. É esta confusão originária que, se tomada negativamente, emerge como confusão a decidir, isto é, a ultrapassar. E será esse o enunciado que servirá de ponto de partida à metafísica de Henrique de Gand, e isto enquanto esta se constitui como afirmação negativa da instabilidade do conceito de ente. Aí, o conceito comuníssimo de ente, enquanto comum a Deus e à criatura, será um conceito marcado pela confusão negativa e pelo erro. "Natura enim est intellectus non potentis distinguere ea quae propinqua sunt, concipere ipsa ut unum, quae tamen in rei veritate non faciunt unum conceptum. Et ideo est error in illius conceptu. Verus enim conceptus primo concipiendo esse simpliciter indeterminatum quod ratione suae indeterminationis nihil ponit omnino neque determinat, ut ex hoc nihil sit in re commune deo et creaturae positivum, sed negativum solum".23 Ou seja, o conceito comuníssimo resulta de uma lacuna no poder do que pensa o conceito de ente. A comunidade é uma comunidade negativa pela extrema proximidade entre um conceito e outro, conceitos esses que o intelecto não tem poder suficiente para distinguir. Porém, Henrique mantém-se na tradição estrita do enunciado de Avicena: é o ente enquanto ente que deve ser o subiectum da metafísica. Assim, a decisão que resolve a confusão do conceito originário, opera pela via da analogia. E o ente na extrema latitude extensiva, no que diz respeito à compreensão dos seus elementos, que será um conceito análogo a Deus e à criatura. "ens largissimo modo acceptum, quod secundum Avicennam est subiectum metaphysicae. Et est commune analogum ad creatorem et creaturam".24 A analogia é, neste enunciado, a consciência da falta de poder do intelecto. E, sem a consciência anexa à analogia, a ciência originária perderá a sua unidade: é a analogia de indeterminação num e noutro conceito que produz a unidade do subiectum da ciência. Ou seja, é a própria analogia da instabilidade que confere à metafísica a sua unidade. Mas, se a instabilidade, ainda que de modo negativo, é aceite no subiectum da ciência, a mesma é recusada para o obiectum motor do intelecto, o que proporciona 23 Henrique de Gand, Suinma Quaestionum Ordinarium, ed. Badius, Paris 1518, a. 21, q. 2, fol. 125S. 24 Ibid, q. 3, fol. 126D. pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 107 um desfazamento ou desadequação entre um e outro. O primeiro objecto do intelecto que pensa a cognoscibilidade metafísica não será o ente enquanto ente mas, sim, Deus. "indeterminatio duplex est. Quaedam privative dicta. Quaedam negative dieta. Cum enim dicitur hoc bonum, aut illud bonum, intelligitur ut summe determinatum, et per materia et per suppositum. Indeterminatio privativa est illa qua intelligitur bonum ut universale, unum in multis et de multis, ut huius et illius bonum, licet non ut hoc vel illud bonum, quod natum est determinara per hoc et illud bonum, quia est participatum bonum. Indeterminatio vero negativa est illa qua intelligitur bonum simpliciter ut subsistens bonum <...> Ergo cum semper intellectus noster naturaliter prius concipit indeterminatum quam determinatum <...> intellectus noster intelligendo bonum quodcumque in ipso naturaliter, prius cointelligit bonum negatione indeterminatum, et hoc est bonum quod deus est".25 A analogia na instabilidade move-se entre o indeterminado negativamente e o indeterminado privativamente, isto é, entre o ente em si subsistente e o ente com a marca da universalidade enquanto é comum a muitos. Como o segundo indeterminado pode ser determinado e o primeiro é em si mesmo subsistentemente indeterminável e, porque o intelecto procede do mais indeterminado para o mais determinado, será Deus - o ente em si subsistente mas sem determinação quiditativa, o que segue um outro enunciado de Avicena também recuperado por Tomás de Aquino, a saber, Deus é puro ser sem determinação de qualquer tipo26 - o primeiro objecto do intelecto. Contudo, será precisamente esta desadequação entre subiectum e obiectum que não permitirá que a metafísica se constitua no Gandavense como ciência originária ou como verdadeira ontologia, e isto enquanto a ontologia como pensamento do ente se deve constituir como ciência do ente na sua absoluta comunidade sem condições. Na metafísica de Henrique, o ens inquantum ens dependerá da sua doação prévia por um obiectum que se distingue do enunciado fundamental. 25 Ibid, a. 24, q. 7, foi. 144H. 26 AVICENNA LATINUS, op. cit., VIII, 4, p. 402: "Omne habens quidditatem causatum est; et cetera alia, excepto necesse esse, habent quidditates quae sunt per se possibiles esse, quibus non accidit esse nisi extrinsecus. Primus igitur non habet quidditatem, sed super habentia quidditates fluit esse ab eo; ipse igitur est esse exspoliatum, condicione negandi privationes et ceteras proprietates ab eo"; Tomás de Aquino, De ente ei essentia, ed. C. Capei [e in L'être et l'essence, ed. bilingue, Paris 1991, VI, p. 63: "Aliquid enim est sicut Deus cuius essentia est ipsum suum esse; et ideo inveniuuntur aliqui philosophi dicentes quod Deus non habet quidditatem vel essentiam, quia essentia sua non est aliud quam esse eius". Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004) pp. 95-128

108 Pedro M. Gonçalo Parcerias A posição restritiva da instabilidade originária é a via seguida por Tomás de Aquino e que, precisamente enquanto restrição, está na origem de uma tradição moderna e contemporânea que segue de Descartes a Heidegger, passando por Kant27. O ente enquanto ente é o subiectunt da 27 Num texto célebre, Jean -François Courtine defende que a tradição metafísica moderna encontra a sua origem no texto escotista e na sua transmissão por Suarei, embora não linearmente. Nesse texto, a tónica é colocada na doutrina do esse obiectivum. Seria, pois, a noética e a construção da objectividade, ou aquilo a que Courtine chama 'objectidade ', a determinar o desenrolar da metafísica na história. É a objectidade, enquanto «termo possível de uma intentio» que se estende do esse obiectivuin escotista ao ens in quantum ens reale de Suarez, ou seja, ao ente enquanto objecto possível do entendimento, passando pela «radicalização» da intuição em Pedro Auriol, a qual se dirigirá tanto aos objectos existentes como aos não existentes, assim como pelo esse apparens do século XIV, nomeadamente em Gregório de Rímini e em João de Ripa, tal como, ainda, pelo chamado conceptualismo de Ockham - cf. Jean-François Courtine, Suarez et le svstème de Ia métaphvsique, Paris 1990, pp. 157-227. No entanto, se no que diz respeito à filiação da objectividade, o desenrolar da tradição assim posto não oferece grande contestação, o mesmo não pode ser dito em relação ao subiectuni da metafísica, onde a analogia entis determina mais a tradição moderna e contemporânea do que a univocidade do conceito de ente escotista. Em Descartes, uma coisa é verdadeira na medida em que é conhecida por Deus. Assim, a redução eidética operada pelo cogito encontra o seu fundamento na analogia infinito-finito. Analogia essa que, posteriormente, se esconde para conceder o poder do fundamento ao cogito - cf. Jean-Luc Marion, Sur Ia théologie blanche de Descartes, nova ed. corrigida e completada, Paris 1991, pp. 22-30. De modo paralelo, o ser supremo ou essência suprema aparece, na Kritik der reinen Vernunft como um ideal da razão para o qual o entendimento legislador deve tender, mas que nunca o deve tomar como objecto - objecto é somente o que é dado na experiência - de modo a conferir unidade sistemática ao conhecimento. O ideal do ser supremo, como princípio regulador da razão, é, então, o que fundamenta sem fundamentar a unidade originária da apercepção pura, mas como ideal que se ausenta do processo do conhecimento - cf. lmmanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, A619 / B647. Se em Descartes e em Kant a analogia como que funda o fundamento para depois se esconder, em Heidegger pode-se dizer que se assiste a um retorno pleno da analogia do ente sob o nome da diferença ontológica: como é o ser que é fundamento dos entes, e particularmente do homem, pode-se dizer que o ente é um habens esse - Martin Heidegger, Über den Humanismus in Lettre sur l'humanisme, ed. bilingue, Paris 1964: "Statt dessen wãre von «S. u. Z.» her gedacht, zu sagen: Précisément nous sommes sur un plan c,6 il y a principalement I'Etre. Woher aber kommt und was ist le plan? L'Etre et le plan sind das Selbe. In «S. u. Z.» <...> ist mit Absicht und Vorsicht gesagt: il y a l'etre: «es gibt» das Sein. Das il y a übersetz das «es gibt» ungenau. Denn das «es», was hier «gibt» nennt jedoch das gebende, seine Wahrheit gewãrende Wesen des Seins. Das Sichgeben ins Offene mit diesem selbst ist das Sein selber". Então, se o que se doa na abertura e com a própria abertura é o ser, a abertura é disposição para o ser e com o ser. O termo 'disposição' traduz aqui a predisposição para ser afectado ou a afectividade pp. 95-128 Revista FitruvíJica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 109 metafísica mas, somente, enquanto o ente na sua comunidade é causado por um puro acto de ser sem determinação quiditativa. o que é "ens commune est proprius effectus causae altissimae, scilicet Dei".28 A afirmação do ente aparece aqui mais uma vez sujeita a condições prévias. A decisão tomista provoca uma ainda maior dependência da doação prévia do que o que acontecerá com a metafísica de Henrique de Gand. Enquanto em Henrique a dependência era do subiectum em relação ao obiectum, no aquinate, para além desta relação de dependência - a qual é derivada do facto do primeiro objecto do intelecto ser a quididade material - subsiste ainda uma relação de dependência intrínseca ao subiectuni, isto é, o próprio subiectum enquanto subiectum depende ainda da sua própria doação por uma causa que lhe é exterior e, naturalmente, prévia, a qual permanece no exterior da ciência. A razão desta dependência é a comutabilidade do ente com o acto de ser (actus essendi). Se o primeiro ente, causa do subiectum da metafísica, é puro acto de ser, os entes que caem dentro da esfera da comunidade do ente deverão receber por participação uma dada proporção comutável desse mesmo acto de ser, e o sinal dessa proporção será dado pela sua essência enquanto marca do seu limite. Na metafísica tomista, a heterogeneidade sem condições - o que não tem proporção nem é comutável - situar-se-á no exterior da ciência, condicionando-a a ser sempre um saber derivado, dependente e não originário29. (Befindlichkeit) tal como esta é descrita no 29 de Sein und Zeit. A disposição como abertura é o 'aí', o Da, do Dasein. Befindlichkeit quer também dizer 'estado cm que algo se encontra ': neste contexto, ' estado para ser afectado'. As várias conotações de Befindlichkeit podem ser vertidas para um termo largamente utilizado pela escolástica latina medieval, a saber, habitus, o qual entra em conexão próxima com o verbo habere. O ser que se manifesta na e com a abertura do Da do Dasein responde, pois, à mesma estrutura que o seguinte enunciado tomasino : ens dicitur quasi esse habens (Tomás de Aquino, In duodecint limos Metaphysicorum Aristotelis Expositio, ed. M.-R. Cathala, Turim-Roma 1964, XII, lect. 1, n. 2419). Naturalmente, a ontologia heideggeriana não é, simplesmente, uma translatio da metafísica tomista, mas ambas parecem responder à mesma sub -estrutura da ontologia, combinando - se, num e noutro discurso, os enunciados de maneira paralela. 28 Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 66, a. 5 ad 4. 29 No Aquinate, a metafísica como saber não originário constitui-se como via de acesso ao saber teológico do qual depende - Tomás de Aquino, Suinnia contra gentiles in Opera omnia, ed. Leonina, Roma 1918-1930, vol. XIII, III, 25: "prima philosophia tota ordinatur ad Dei cognitionem sicut ad ultimum finem "; a teologia pode-se, então, dividir em duas partes: uma tem por subiectum as coisas sagradas em si tal como são doadas pela revelação; a outra é a teologia perseguida pelos filósofos : aí Deus não é subiectum mas é princípio do subiectum da metafísica, isto é, do ente enquanto ente - Tomás de Aquino, Super Boethiuni Revista Filosófica de Coimbra - n. 25 (2004) pp. 95-128

110 Pedro M. Gonçalo Parcerias É na metafísica de João Duns Escoto que a instabilidade enquanto heterogeneidade originária do ens inquantum ens é afirmada na sua positividade, proporcionando à metafísica o poder de se constituir como ciência geral do ente ou ontologia. A ciência procede por demonstrações. E, se o subiectum de uma ciência deve conter virtualmente a totalidade dos enunciados verdadeiros dessa mesma ciência, o seu subiectum deverá ser a fonte de toda a possibilidade demonstrativa. Assim, o subiectum deverá ser um conceito com unidade e distinção suficiente para se poder instalar como termo médio de um silogismo ou de uma demonstração. Logo, o conceito de ente deverá ser unívoco pois, nem a analogia nem a equivocidade, têm unidade suficiente para se afirmarem como termo médio de uma demonstração. Porque a analogia é uma espécie da equivocidade, o seu conceito como termo médio não provará a demonstração, mas servirá à falácia. "univocum conceptu dico, qui ita est unus quod eius uniras sufficit ad contradictionem, affirmando et negando ipsum de eodem; sufficit etiam pro medio syllogistico, ut extrema unita in medio sic uno sine fallacia aequivocationis concludantur inter se uniri".30 Assim, a definição de univocidade é, precisamente, o ser suficiente para excluir a contradição. O que exclui em si a contradição é o que é em si possível. O conceito de ente enquanto subiectuin da metafísica sitie condicione e na sua univocidade é afirmação da possibilidade do que é posto pelo conceito de ente31. "ens, hoc est cui non repugnat esse".32 De trinitate in Opera omnia, ed. Leonina-C.E.R.F, Roma-Paris 1992, vol. L, q. 5, a. 4, resp.: "theologia siue scientia divina est duplex: una in qua considerantur res diuine non tamquam subiectum scientie, set tamquam principia subiecti, et talis est theologia quam philosophi prosequuntur, que alio nomine metaphisica dicitur; alia uero que ipsas res diuinas considerar propter se ipsas ut subiectum scientie, et hec est theologia que in sacra scriptura traditur". 30 João Duns Escoto, Ordinatio 1, dist. 3, p. 1, q. 1-2, n. 26. 31 Alguns intérpretes contemporâneos de Duns Escoto têm acentuado a construção lógica do conceito unívoco de ente, fazendo depender a ontologia da lógica - Olivier Boulnois, Analogie et univocité selon Duns Scot: la double destruction in Les études philosophiques 3/4 (1989), pp. 349-369, p. 367: "La destruction de I'aporie métaphysique se fait sur une fondation logique, et non plus métaphysique <...>. Pour sortir de l'aporie, Ia métaphysique doit sortir d'elle-même et se soumettre aux lois de Ia logique". Porém, nada é mais contrário ao espírito da letra escotista, onde os conceitos lógicos dependem dos conceitos metafísicos e, como será sustentado a seguir, bem como foi já afirmado noutro texto, o conceito de ente constitui a própria essência da univocidade - cf. Pedro Parcerias, Duns Escoto, o pensável e a metafísica virtual, p. 82. 32 João Duns Escoto, Ordinatio, ed. Vivès, IV, dist. 8, q. 1, n. 2. Pp. 95-128 Revista Filosó/ica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente: Duns Escoto e a estrutura da ontologia 1 1 1 E enquanto rege a possibilidade de todo o possível, porque é ente todo aquele ao qual não repugna ser, que o conceito de ente se situa na absoluta heterogeneidade em relação a todo o fundado. Para o conceito de ente na sua univocidade não há qualquer tipo de condição prévia ou de précompreensão. O ente enquanto subiectum da metafísica é o absolutamente incomutável: é o que não tem reciprocidade ou contrariedade. Nem mesmo a univocidade é sua condição prévia ou horizonte de doação pois, se o ente enquanto ente é fonte de toda a demonstração possível, e se toda a demonstração do que é possível tem por fundamento um conceito unívoco, é o próprio ente enquanto ente que constitui a essência da univocidade, sendo esta já regida pela simples afirmação do ente - porque todo o possível deve poder ser afirmado como ente e porque todo o possível deve poder ser demonstrado através de um conceito unívoco, o ente enquanto afirmação absoluta rege a totalidade das afirmações possíveis. O conceito de ente deverá ser não somente subiectum da metafísica mas, também, obiectum primeiro do intelecto pois, se o ente enquanto ente é condição de possibilidade de todo o possível, e porque todo o objecto enquanto objecto tem de ser possível, o conceito de ente encontra-se sempre incluído, segundo a sua univocidade, em todo o objecto". Enquanto as decisões metafísicas de Henrique e de Tomás, mas também de Heidegger e de Kant, permitiam o operar da cisão no interior do ens inquantum ens, a decisão escotista é uma decisão pela não-cisão: é decisão pela instabilidade fundadora ou decisão pela indecisão. A indecisão não significa aqui imobilismo perante o subiectuin mas, ao invés, permanência na heterogeneidade do enunciado originário e na sua instabilidade pois o estável é o que é determinado e doado por uma cisão no interior do subiectum. E, o que não tem proporções é o que recusa todo o tipo de comutabilidade e de reciprocidade ou de alternância permanecendo, unilateralmente e sem condições, na sua heterogeneidade absoluta. A ciência na sua heterogeneidade é a ciência do ente sem condições mas com consequências ou concomitâncias, ou seja, é ciência do ente e das suas paixões: a metafísica é, desta maneira, ciência dos transcendentais34. Afirmar 33 Sobre a ultrapassagem das metafísicas de Tomás e de Henrique pelo Doutor Subtil - cf. Stephen D. Dumont, La doctrine scotiste de l'univocité et Ia tradition médiévale de Ia métaphysique in Philosophie 61 (1999), pp. 27-49; o texto foca esse mesma ultrapassagem a partir da adesão escotista aos critérios aristotélicos para a fundação de una ciência, tal como estes foram descritos nos Segundos analíticos. 34 João Duns Escoto, Quaestiones super libros Metaphvsicorum Aristotelis, ed. G. Etzkoni et alii, Nova Iorque 1997, 1, Prologus, n. 17: "maxime scibilia <...> sunt communissima, ut ens in quantum ens, et quaecumque consequuntur ens in quantum ens <...>. Haec autem communissima pertinent ad considerationem metaphysicae"; ibid, n. 19: "Et hanc scientiam vocamus metaphysicam <...> quasi transcendens scientiam, quia est de transcendentibus". Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004 ) pp. 95-128

1 12 Pedro M. Gonçalo Parcerias a metafísica como ciência dos transcendentais é atribuir-lhe o estatuto de ontologia fundamental, e isto enquanto o ente é o primeiro dos transcendentais e, também, o fundamento de todos os restantes transcendentais. Então, o verdadeiro, o um e o bom tiram a sua possibilidade da entidade do ente enquanto sua última nota quiditativa, enquanto sua última e essencial formalidade pois, uma essência, é sempre instalada pela sua própria possibilidadei5. Contudo, como uma essência é afirmação da heterogeneidade da sua regência no interior do regido, todo o possível tira a sua possibilidade de si mesmo, ignorando a existência ou não da causa primeira. "nihil est simpliciter impossibile nisi quia simpliciter rcpugnat sibi esse; cui autem repugnat esse, repugnat ei ex se primo, et non propter respectum aliquem affirmativum vel negativum eius ad aliquid aliud primo. Repugnantia enim quaecumque est extremorum ex ratione sua formali et per se essentiali, circunscripto quocumque alio respecto utriusque extremi - positivo vel negativo - ad quodcumque aliud, sicut album et nigrum per se ex suis rationibus formalibus contrariantur et habent repugnantiam formalem, circunscribendo per impossibile omnem respectum ad quodcumque aliud. Illud ergo est simpliciter impossibile cui per se repugnat esse, et quod ex se primo est tale quod sibi repugnat esse, - et non propter aliquem respectum ad Deum, affirmativum vel negativum; mimo repugnares sibi esse, si per impossibile Deus non esset".36 O possível enquanto ausência de repugnância formal tira a sua possibilidade das compossibilidades intrínsecas às suas razões formais, compossibilidade essa que é regida pela heterogeneidade do ente enquanto ente pois, o que inclui repugnância ou incompossibilidade entre as suas razões formais, é aquilo ao qual repugna ser, e isto sem qualquer tipo de relação à sua causa ou mesmo sem relação à última causa. O ente enquanto ente na sua heterogeneidade e sem condições não tem causas - na hipótese contrária, a primeira causa seria causa de si mesma37. Mas o que não 35 O que acontece mesmo com a essência divina, a qual, para demonstrar a necessidade da sua existência, deve primeiro demonstrar a sua possibilidade, na famosa coloratio do argumento ontológico de Anselmo - João Duns Escoto, De primo principio, c. 4, n. 79: "Per illud potest colorare ilia ratio Anselmi de summo cogitabili. Intelligenda est descriptio eius sic: «Deus est quo», cogitatio sine contradictione, «maius cogitare non potest», sine contradictione". 36 João Duns Escoto, Ordinatio 1, dist. 43, q. unica, n. 5. 37 AVICENNA LATINUS, op. cit., 1, 2, p. 14: "principium non est principium omnium entium. Si enim omnium entium esset principium, tunc esset principium sui ipsius; ens autem in se absolute non habet principium; sed habet principium unumquodque esse quod scitur. Principium igitur est principium aliquibus entibus". pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)

Heterogeneidade e afirmação do ente : Duns Escoto e a estrutura da ontologia 113 considera a causa, dada a heterogeneidade do subiectuni, é o que também não considera as realidades efectivas enquanto efeito das causas. Logo, a metafísica enquanto ciência dos transcendentais é pensamento virtual, porque o possível tira a sua possibilidade de si próprio, mesmo que o mundo ou Deus ou nada exista efectivamente. Assim, ao contrário do que postulava o enunciado heideggeriano, é a consideração do primeiro ente, o qual tira também a sua possibilidade da afirmação heterogénea da entidade do ente, que permite que a metafísica se constitua como ontologia fundamental, isto é, se constitua como ciência do ens inquantum ens sine condicione. 3. A estrutura medieval da ontologia O ente enquanto ente na sua univocidade é o conceito de ente entregue ao seu paradoxo. Em Aristóteles ser unívoco significava ser genérico - e, aí, o conceito de ente não se podia constituir como género mais comum pois, como a diferença específica é sempre exterior ao género, o ente seria contraído pelo nada. Por outro lado, como a diferença de algum modo sempre é, o ente seria contraído pelo ente, ou o mesmo pelo mesmo, o que é absurdo". É sobre esta tradição aristotélica, mas também tomista19, e comum a inúmeros autores medievais40, que se constituirá a filosofia moderna e contemporânea, enquanto este nexo se constitui sobre a oposição entre o ente e o nada e, também, enquanto a oposição como contrariedade 31 ARISTOTELES LATINUS, vol. XXV2, Metaphvsica, ed. G. Vuillcmin-Dicm, Leida 1976, III, c. 3, p. 49: "Non est autem possibile genus existentium unum esse esse neque unum neque ens; nam necesse differentias cuiusque generis et esse et unam esse quamlibet, impossibile autem praedicari aut species de proprium generum differcntiis aut genus sine suis specibus; quare si unum genus aut ens, nulla differentia nec unum nec ens crit". 39 Tomás de Aquino, tn duodecim libros Metaphvvsicorum Aristotelis expositio, ed. M.- R. Cathala, Turim-Roma 1964, 111, Lect. VIII, n. 433: "Nec etiam differentia ponitur in definitione generis: ergo nullo modo per se genus praedicatur de differentia <...>. Nulla autem differentia potest accipi de qua non praedicetur ens et unum, quia quaelibet differentia cuiuslibet generis est ens et est una, alioquin non posset constituere unam aliquam speciem entis. Ergo impossibile est quod unum et ens sint genera". 40 A título de exemplo pode-se citar Sigério de Brabante, Quaestiones in inetaphvsicam, reportação de Munique, ed. W. Dunphy, Lovaina-A-Nova 1981, Introductio, q. 7, p. 49: "si esse esset omnino univoce dictum, bene probares; sed esse ipsum multipliciter dicitur et plures habet rationes; nonne tunc potest multiplicari ex racione essendi quae plures est, et non per aliquid cui additum est? <...> ratio essendi non potest esse ratio addita, quia omnis ratio est essendi ratio, ita quod ratio entis praedicatur de omnibus rationibus univoce". Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004) pp. 95-128

114 Pedro M. Gonçalo Parcerias sempre se estabelece sobre um eixo ora vertical ora horizontal. Mas há uma outra tradição onde a diferença ultrapassa a contrariedade a qual, em Aristóteles, era estabelecida como máximo da diferença, tradição essa que remonta ao Sofista de Platão. Aí, o ente é posto na sua unilateralidade sem contrariedade pois, o não-ente enquanto nada do ente, não afirma o contrário do ente mas qualquer coisa de outro41. Será este Platão subterrâneo, pois o Sofista não foi conhecido durante a Idade Média no ocidente latino, que encontrará eco no seguinte enunciado escotista: "Iste enim modus arguendi peccat in praedicationibus denominativis, nam ' rationale non est per se animal, igitur est per se non animal ' non sequitur. Unde sicut ' rationale ' dicitur animale denominative ct non per se, sic illa differentia dicetur ens denominative, non per se primo modo, quia est praedicatio denominativa, et determinans est extra rationem determinabilis".42 Tal como a diferença específica - isto é, no exemplo escotista, 'racional' - é exterior ao género - ou seja, 'animal ' - e daí não se segue que afirme a contrariedade do género, também à diferença que contrai imediatamente o ente, sendo um outro para além do ente, não se segue que seja o não-ente ou o nada. A diferença não é em si um não - ente mas uma razão formal outra que denomina o ente. Referida somente a si mesma, a diferença é o que é puramente determinante não incluindo, formalmente, nada de determinável, e isto enquanto o ente é o que é puramente determinável43. A diferença absoluta, isto é, enquanto puramente determinante na sua referência a si mesma, é o que é doado pelo ens inquantum ens enquanto subiectum de uma ontologia ou metafísica virtual. A ontologia virtual é ciência do pensável causado pela possibilidade do possível independentemente das realidades efectivas44. Assim, todo o possível pode causar distintos conceitos de acordo com o número das suas razões formais ou das suas compossibilidades. É porque se instala na matriz virtual da entidade do ente que o conceito de ente é unívoco pois, aí, a univocidade que une Deus e a criatura é somente o seu último traço quiditativo : o ente enquanto 41 Platão, Sofista 257b. 42 João Duns Escoto, Lectura 1, dist. 3, p. 1, q. 2, n. 123. 43 João Duns Escoto, Theoremata in Opera omnia-editio minor, ed. G. Lauriola, vol. I, Alberobello 1998, t. 13, n. 3: "Determinabilis et determinans nihil idem essentialiter includunt, nec unum alterum. Ac per hoc sunt primo diversa, alias nugatio in omni conceptu resolubili, et processus in infinitum, quia illud commune in utroque determinabitur ; et ipsum et determinans aliquid includunt, quod iterum determinabitur in infinitum". 44 Sobre a metafísica como pensamento virtual - cf. Pedro Parcerias, Duns Escoro, o pensável e a metafísica virtual, nomeadamente pp. 75-79. pp. 95-128 Revista Filosófica de Coimbra - n." 25 (2004)