Fatores Humanos em manutenção de aeronaves

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Transcrição:

Fatores Humanos em manutenção de aeronaves Paulo Roberto Fernandes Serra Engenheiro PRS Consultoria - Diretor Palavras Chave: Acidentes, Fatores, Humanos, Manutenção BIOGRAFIA Paulo Roberto Serra é engenheiro mecânico formado pela PUC-Rio em 1969, com diversos cursos de especialização e estágios no campo aeronáutico, nos Estados Unidos, Inglaterra e França. Atuou inicialmente em engenharia de manutenção na VARIG, e em seguida em projeto, desenvolvimento, ensaios, certificação e aeronavegabilidade continuada na Embraer, onde foi Chefe da Engenharia de Sistemas Hidromecânicos. Foi DER e RCF da então Divisão de Certificação do CTA/IFI. Possui grande experiência em projetos, gerenciamento de programas, especialmente na área de confiabilidade e segurança de sistemas, bem como em capacitação de pessoas, tendo atuado durante muitos anos como professor em cursos de especialização e mestrado na Embraer, ITA, CTA, ANAC e outras organizações. Possui experiência internacional no campo administrativo e gerencial, tendo sido gerente técnico, e posteriormente Diretor Geral da sucursal da Embraer na França (Embraer Aviation International), onde atuou de 1985 a 2002. É Diretor da PRS Consultoria, empresa que presta serviços de consultoria e treinamento nas áreas segurança de sistemas, SMS, fatores humanos e áreas correlatas. É membro da Ordem do Mérito Aeronáutico no grau de Oficial. RESUMO DO ARTIGO Fatores Humanos tem sido objeto de uma enorme concentração de estudos e pesquisas nas duas últimas décadas, com uma grande influência negativa sobre a segurança operacional. Na área de manutenção, essa influência dos fatores humanos vem aumentando de forma preocupante; tem sido citado como causa principal ou fator contribuinte de 35 a 40% dos últimos 50 acidentes aeronáuticos; torna-se um dos poucos parâmetros de segurança operacional que está piorando. O artigo aborda o assunto apresentando estatísticas e desenvolvendo diversas hipóteses para explicar as possíveis causas de fenômeno. ARTIGO Historicamente, a manutenção não era um ramo da atividade aeronáutica com contribuição significativa para acidentes. Se observarmos as estatísticas das décadas de 50 até 70 (1), a manutenção apresentava como causa ou fator contribuinte importante uma participação de 3 a 4 % nos acidentes, sendo que nos Estados Unidos esse número era um pouco maior ( ver Figuras 1 e 2 ). Naquela época a atividade operacional era e continua sendo até hoje - o maior contribuinte dos acidentes; os acidentes envolvendo problemas com o avião, ou seja, acidentes relacionados com a aeronavegabilidade, também tinha uma contribuição importante. Com o passar dos anos essas proporções mudaram muito: as novas ferramentas de engenharia desenvolvidas a partir da introdução nos requisitos de certificação do FAR/CS 25 1309 (2) fez com que a contribuição dos aviões se reduzisse a menos de 10%, número esse relativo à massa de todos os aviões em operação, independentemente da época em que foram projetados e homologados. Se fizéssemos uma estatística somente da parcela dos aviões projetados e certificados com a aplicação dos conceitos modernos do 1309, veríamos que essa contribuição caiu para 4 a 5 % (3). Com a grande quantidade de aviões novos com essas características sendo introduzida no mercado, e com a retirada de serviço dos aviões antigos, esse número ficará cada vez mais representativo da real contribuição do avião moderno, como máquina, para os acidentes. Tanto isso é verdade que diversos países já introduziram regras para retirar de serviço aviões com mais de 20 anos em serviço.

As estatísticas são ingratas, variam muito de uma fonte para outra, e dependem de qual o foco da pesquisa pretendida; portanto, os números apresentados abaixo são indicativos da ordem de grandeza das contribuições de cada causa em duas épocas diferentes. Década de 70 Últimos 40 acidentes Manutenção Operações Aeronavegabilidade Manutenção Operações Aeronavegabilidade Figura 1 Proporções relativas das principais contribuições para os acidentes fatais A questão do acidente operacional, ou do que se costumava chamar simplisticamente de erro do piloto, é bastante complexa. As tripulações são fim de linha e na maioria dos casos precisam tomar decisões em poucos segundos, sob enorme pressão, e em circunstâncias onde a combinação de falhas e eventos (na maioria das vezes meteorológicos) prepara verdadeiras armadilhas. O tratamento atual desses casos traz sempre a pergunta porque o erro foi cometido?. A resposta a essa questão envolve análises bastante complexas, e as descobertas são surpreendentes, para não dizer desconcertantes, envolvendo erros dormentes de projeto, alarmes ambíguos ou enganosos, automatismos mal concebidos e comportamentos anômalos de software. Portanto, os números que indicam essa maioria dos acidentes como operacionais pode ser contestada sob essa ótica, transferindo para o avião uma parte da responsabilidade que muitas vezes é atribuída aos pilotos, e mudando o resultado das estatísticas. Voltamos então à manutenção, cuja contribuição passou de 3 a 4 % nas primeiras décadas da aviação comercial pósguerra para 8 a 9 % na década de 90, e para 30 a 40 % hoje. Mas esses números podem não ser comparáveis, pois decorrem de uma nova maneira de se analisar o problema, onde se vai buscar as causas nos chamados precursores, ou seja, fatores muitas vezes dormentes que acabam por criar condições propícias para que o acidente aconteça. Em dados de 2001, o NTSB (4), afirma que em 17 dos últimos 50 acidentes fatais ( pouco mais de um terço ) a manutenção foi um precursor, a causa direta ou um fator contribuinte importante. Se olharmos somente a aviação regional, esse número é ainda maior, podendo chegar a 40%. Figura 2 Evolução da contribuição da manutenção para acidentes fatais

Alguns dos exemplos mais representativos de causas, precursores e fatores contribuintes foram: - Alaska vôo 261, janeiro de 2000 ( falta de lubrificação do screwjack do estabilizador horizontal ) - Swissair vôo 111, setembro de 1998 ( fogo causado por instalação incorreta de cablagem elétrica ) - TWA vôo 800, julho de 1996 ( explosão do tanque central decorrente de manutenção inapropriada recorrente dos sistemas elétricos e de combustível ) - American Airlines vôo 267, novembro de 2001 ( manutenção precária recorrente dos yaw dampers ) - Japan Airlines vôo 123, agosto de 1985 ( reparos incorretos efetuados na caverna depressão traseira ) - Continental Airlines em Eagle Lake ( instalação incompleta do bordo de ataque do estabilizador ) - Helios vôo 522 ( sistema de pressurização esquecido pela manutenção em modo manual ) - AeroPeru vôo 603, outubro 1996 ( tomadas estáticas tapadas com fita adesiva ) - AirMidwest vôo 5481, janeiro 2003 ( regulagem incorreta do profundor ) - ValueJet vôo 592, maio de 1996 ( manuseio e carregamento incorreto de material perigoso ) - ATR-72 da TunisAir ( caiu no Mediterrâneo por pane seca devido à instalação incorreta de um medidor de quantidade de combustível ) Existe ainda o voo 5390 da British Airways em junho de 1990, que acabou não resultando em um acidente fatal, mas que é um dos casos mais clássicos de comprometimento da segurança de voo causada por manutenção, quando um mecânico consciencioso e experiente instalou um para brisa de um BAC 1-11 usando parafusos incorretos; o para brisa foi ejetado causando uma descompressão de cabine, e o comandante foi parcialmente sugado para fora do avião, tendo sido seguro pelas pernas por um comissário. A segurança de voo é montada em cima de um tripé, onde as pernas são: a integridade do produto, a integridade operacional e a integridade da manutenção. A missão da perna manutenção do tripé nos aviões modernos, justamente aqueles que foram projetados e homologados com a aplicação dos conceitos do 1309, é de preservar o nível de segurança intrínseco do avião aquele característico do projeto de um avião novo evitando que a sua utilização e o desgaste decorrente do uso diário comprometam a segurança de voo. Portanto, manutenção não cria segurança, apenas administra as perdas inevitáveis que decorrem da operação normal, impondo limites que salvaguardam um nível mínimo de aeronavegabilidade. Quando essa missão falha, todo o tripé desaba. A conjuntura geopolítica internacional vem colocando enorme pressão na economia das empresas aéreas desde o segundo choque do petróleo em 1991 (primeira guerra do Iraque), e essa situação teve duas pioras: o 11 de setembro de 2001, que afetou de forma dramática a indústria do transporte aéreo, e mais recentemente o chamado terceiro choque do petróleo, onde o preço do barril passou de 30 a 140 Dólares em um ano, caindo depois para a faixa de 70 a 80. Para compensar, as empresas aéreas vem reduzindo progressivamente os custos de treinamento, minimizando os custos de manutenção e utilizando os aviões de forma mais intensiva. Alguns elementos de explicação são propostos abaixo para reflexão e análise como possíveis causas dessa nova tendência. - A utilização média dos aviões passou de 7,5 para 10 horas por dia na Europa, e de 9,5 para 12,5 horas por dia nos US; algumas empresas chegam a voar uma média de 17 horas por dia; em consequência, o tempo médio de trânsito que era de 45 minutos a 1 hora passou para menos 30 minutos, com as empresas fazendo enorme pressão para reduzir para 20 minutos (5), - Nesse tipo de operação, qualquer pequeno atraso produz um efeito dominó e se propaga de forma irreversível, algumas vezes até para os dias seguintes, porque não há tempo de recuperação. É uma das causas do que a imprensa chamou de caos aéreo, porque provoca uma desorganização geral na malha, nos slots, complicando o tráfego aéreo e afetando também as outras empresas. - Como não há tempo durante o dia, a manutenção dos aviões é feita em geral de madrugada (os aviões são entregues à manutenção às 22 ou 23 horas e devem iniciar as operações às 6 horas do dia seguinte); como as áreas de aeroporto são caríssimas, os hangares são pequenos com relação às frotas, não tem espaço para acomodar muitos aviões, não raramente os trabalhos são feitos em pátio externo, com chuva, frio, iluminação deficiente, etc.,. Em termos de Fatores Humanos, essas são as piores condições para o desempenho de um ser humano. - Sabe-se que o número de itens de manutenção diferidos aumentou muito, mas não existam estatísticas confiáveis sobre o assunto porque uma boa parte dos casos não ficam registrados por motivos óbvios. Diferimento de manutenção é uma prática antiga que quando feita com critério, não compromete a segurança de voo. Mas quando é feita nesse ambiente de pressa, pressão e desorganização, toma um aspecto onde a análise técnica fica fortemente influenciada por outras motivações que acabam provocando um relaxamento nos padrões de manutenção, com teorias do tipo avião é feito pra voar, avião no chão só dá prejuízo, nada substitui o lucro, etc. - Uso abusivo do MMEL, com interpretações que muitas vezes estabelecem um compromisso desfavorável à segurança de voo, beneficiando a operacionalidade dos aviões, o cumprimento dos horários, e os custos. - O treinamento de mecânicos foi ficando progressivamente mais simplificado, ao mesmo tempo em que a complexidade dos aviões aumentou muito, requerendo uma capacitação tecnológica superior, especialmente em eletrônica e computação; questões salariais, condições de trabalho, intensas pressões operacionais, gestão em geral (coordenação, liderança, programação, etc.), e principalmente a cultura de segurança estão sendo progressivamente moídos pela máquina.

- A interferência cada vez mais clara do sistema jurídico na investigação de acidentes (no que se passou a chamar criminalização de acidentes aeronáuticos ) é polêmica, mas irreversível; o sistema tem que se adaptar a isso. Durante essa fase de adaptação a questão da cultura de impunidade - tradicional em aviação - está ameaçada; sentindo que poderá ser punido criminalmente, o autor de um erro pode ser tentado a escondê-lo, e em aviação esconder um erro pode ser muito pior do que o erro em si. Enquanto não houver uma diferenciação clara entre o erro (definido como um ato incorreto não intencional) e a violação (definida como um ato incorreto voluntário e consciente), todos os erros podem ser criminalizados, sem que se leve em consideração fatores importantes como negligência, imprudência e imperícia. Outro aspecto é até que ponto uma pessoa pode ser culpabilizada por um erro se não foi suficientemente treinada pelo seu empregador? Como uma pessoa com um treinamento sumário lidando com um avião moderno e sofisticado pode avaliar se o que ele está fazendo é uma imperícia ou uma imprudência? Qual a influência que a cultura da empresa, a sua gestão e as pressões operacionais exercem sobre o erro? - Uma nova forma de competição coloca mais pressão ainda sobre o sistema: as operadoras low-cost. Embora o conceito de low-cost seja válido e não comprometa diretamente a segurança de voo, ela acaba provocando um efeito secundário que é o alastramento da cultura do baixo custo em áreas de atividade que não comportam esse tipo de atitude. Redução de custos em aviação é possível, deve ser perseguida com competência até mesmo por uma questão de sobrevivência, mas não pode ser generalizada sob pena de forte comprometimento com a segurança. A gestão da segurança certamente conflita com a gestão de custos, mas a busca dos compromissos adequados é uma das atividades mais importantes da aviação moderna, exigindo a participação de pessoal de alto nível, com treinamento apropriado, ferramentas de engenharia modernas, etc. - Um outro fator citado com uma possível explicação é a questão da língua. O inglês é a língua oficial da aviação e por questões culturais a maioria dos mecânicos que trabalham com aviões no mundo inteiro não são fluentes em inglês. Esse argumento tem um ponto fraco: é justamente nos Estados Unidos que o problema é pior, e lá, pelo menos supostamente, todos falam fluentemente inglês... - A vocação aeronáutica, que tanto atraia jovens para a carreira do início do século XX até os anos 70, está hoje seriamente ameaçada por diversos fatores, entre os quais a competição de outras áreas de tecnologia (como a informática) o baixo nível de competitividade dos salários, a falta de motivação decorrente das crises cíclicas da aviação com demissões periódicas em massa, instabilidade de emprego, etc. Era um sonho alimentado pela evolução tecnológica constante, que atraia jovens com aviões revolucionários, conquista da Lua, etc. Esse sonho praticamente acabou. E a fonte de mão de obra qualificada para a aviação civil, que sempre foram as forças armadas, também praticamente acabou. - A terceirização de serviços de manutenção virou moda de alguns anos para cá. A busca pela redução de custos levou muitas empresas a buscar nessa alternativa um alívio para as suas contas. A terceirização em si não é um problema direto, mas envolve uma cultura diferente, a de-localização dos serviços, a despadronização de procedimentos, valores diferentes e diluição de responsabilidades. A fiscalização das autoridades fica muito mais difícil, senão impossível. Uma grande empresa aérea americana, que tinha a sua própria oficina de revisão de motores, resolve fechá-la e enviar os motores para revisão numa oficina recém estabelecida em Singapura, ou China, onde a mão de obra é muito mais barata. Por melhor que seja essa oficina, serão criadas tensões potenciais decorrentes das diferenças de cultura, entre tantas outras coisas. - No Brasil, vem crescendo de forma preocupante o numero de in-flight shutdowns ( desligamentos de motores em vôo ), ou seja, perda de motores em voo, um dos tradicionais precursores de acidentes. As estatísticas do CENIPA indicam que essa taxa era equivalente à média mundial até o início dessa década, mas hoje passou a ser muito superior a ela. As característica desses eventos revelam que na sua grande maioria são causados por problemas de manutenção. As perspectivas futuras infelizmente não são boas. Estudos recentes feitos pela Ascend Worldwide Ltd sob encomenda da IATA e da FSF demonstram um certo pessimismo quanto à evolução do problema: quase 60% dos profissionais de segurança de voo entrevistados acham que os atuais níveis de segurança operacional não vão melhorar ou vão piorar um pouco nos próximos anos. As motivações dessa opinião foram (os números entre parênteses são os pesos relativos atribuídos a cada item) : - a grande quantidade de pessoal inexperiente e sem treinamento adequado entrando no mercado de trabalho (73%) - as prática de trabalho, horários, quantidade de horas extra e a fadiga (71%) - atitudes administrativas, gestão inadequada, práticas de gestão de pessoal (66%) Alguns outros pontos desse estudo revelam as preocupações e perspectivas futuras: - Sabemos como tornar o sistema mais seguro, mas estamos perdendo terreno porque estamos limitados pela disponibilidade de recursos humanos ( Bill Voss, Presidente da FSF ) - A situação financeira das empresas aéreas está obrigando a fazer cada vez mais com menos recursos. Forças de trabalho cada vez menores e medidas de redução de custos tais como carregamentos e abastecimentos cada vez mais rápidos e em regime de grande afobação estão deixando cada vez menos margem para erros ( Giovanni Bisignani, Diretor da IATA ) - As frotas de jatos executivos cada vez mais sofisticados estão aumentando rapidamente e sugando pilotos e mecânicos experientes das linhas aéreas, com promessas de salários muito superiores e condições de trabalho muito mais amenas. Da mesma forma, as empresas de aviação regional que em geral trabalham com pilotos e pessoal de

manutenção menos experiente e menos treinados, estão substituindo suas frotas de aviões turbo-hélices antigos por novos e sofisticados jatos modernos, sem a adaptação e o treinamento requerido pelas novas tecnologias. - Em regiões onde a aviação está crescendo muito rapidamente, como Brasil, China, Índia, países do Oriente Médio, etc., as frotas de jatos estão crescendo tão rapidamente que os aeroportos, o tráfego aéreo, as autoridades fiscalizadoras, as equipes de manutenção, e toda a infraestrutura de segurança está saturada e não consegue mais acompanhar o crescimento. Em muitos países metade das vagas em setores governamentais de supervisão e fiscalização de segurança estão vagos. Países ricos estão contratando mão de obra capacitada de outros países (especialmente pilotos e pessoal de inspeção e segurança), pagando salários extremamente altos, o que desequilibra o mercado, e aumenta a crise nos países exportadores de mão de obra. Trata-se de um processo semelhante à importação de jogadores de futebol sul-americanos e africanos pelos grandes clubes Europeus. Temos, portanto, um extenso cardápio de elementos a serem explorados, estudados e trabalhados para enfrentar os desafios da aviação comercial moderna. Referências (1) Human Factors Training Manual ICAO Flight Safety Foundation Conference, Atenas, 2001 (2) Federal Aviation Regulations Part 25, 1309, e EASA European Aviation Safety Agency, Certification Specifications, Part 25, 1309 (3) Pesquisas pessoais do autor em arquivos do NTSB, AAIB e BEA (4) US National Transportation Safety Board Artigo publicado na Revista Air Safety Week, de 21/01/2002 (5) Reatórios operacionais publicados pelo FAA, EASA e ANAC Outras (6) EASA European Aviation Safety Agency - Guidelines of Safety and Human Factors approach for Part 145 Maintenance Organizations (7) EuroControl Review of Root Causes of Accidents EEC Note Nº 14/04 Project Safbuild (8) Human Factors Issues in aviation Maintenance and Inspection ( FAA ) (9) Safety Assessment of Aircraft Systems Paulo R. Serra 3º Edição Maio 2010 (10) Human Factors Process for reducing maintenance errors Boeing (11) AC 120-79 Continuing Analysis and Surveillance System ( CASS ) - FAA (12) IS 120-79 Sistema de análise e supervisão continuada ANAC (13) Maintenance Event Decision Error MEDA Boeing (14) Aviation Maintenance Human Factors Accident Analysis Maintenance US Navy (15) Human Error James Reason ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS FAA US Federal Aviation Administration EASA European Aviation Safety Agency DER Delegated Engineering Representative RCF Representante Credenciado em Fabricação FAR US Federal Aviation Regulations JAR European Joint Aviation Regulations CS EASA Certification Requirements MMEL Master Minimum Equipment List BAC British Aircraft Corporation IATA International Air Transport Association FSF Flight Safety Foundation