ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE COMO A PUBLICIDADE SE APROPRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO PARA SE LEGITIMAR

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Transcrição:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE COMO A PUBLICIDADE SE APROPRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO PARA SE LEGITIMAR Ana Luiza Coiro Moraes 1 Introduzir o tema discurso, qualquer que seja o endereçamento que se intente, passa necessariamente, por Aristóteles, que normatizou a Arte Retórica, isto é, a ciência de usar a linguagem com vistas a persuadir ou influenciar. O que de imediato sugere que se encaminhe a reflexão ao discurso publicitário, articulando-o aos princípios aristotélicos de estilo, clareza e coerência discursiva. O discurso, ensina Aristóteles, deve se desenvolver em quatro etapas: 1) O exórdio, que introduz o discurso e nos induz a fazer uma coisa ou dela nos afastar ; 2) a narração, onde se diz tudo quanto ilustra o assunto, ou prove que o fato se deu [...] que ele tem a importância que lhe atribuímos ; 3) as provas, que devem ser demonstrativas (citam exemplos para aconselhar); 4) e a peroração, o epílogo que, por seu turno, se divide em quatro momentos, que consistem em 1º) predispor o ouvinte em nosso favor, 2º) amplificar ou atenuar o que foi dito, 3º) excitar paixões e, por fim, 4º) recapitular ouvistes, estais a par da questão, julgai (p. 249-269). Esses princípios já permitem examinar uma das peças que compõem o corpus desta comunicação, que se constitui de exemplos emblemáticos e não de estudo de casos, encaminhando o debate para o tema desta conversa, a saber, como a publicidade se apropria do discurso científico para se legitimar. Fonte: Revista Veja 1 Professora do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), nos cursos de Publicidade e de Jornalismo, doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Notas de Pesquisa, Santa Maria, RS, v. 1, n. 0, p. 35-39, 2011. 35

Notas de Pesquisa, Santa Maria, RS, v. 1, n. 0, p. 35-39, 2011. 36

Figura 1: Anúncio do Boston Medical Group Na Figura 1, o anúncio do Boston Medical Group introduz o assunto não pelas doenças tratadas pelos seus médicos (como a disfunção erétil), que talvez afastasse o receptor da mensagem, mas pela ideia de que sexo está relacionado à vida e que a vida sexual do receptor da mensagem pode melhorar. Para conferir importância ao assunto, na narração, o discurso científico é convocado na forma de estatísticas (52% dos homens entre 40 e 70 anos têm algum grau de disfunção erétil), de citação de artigos supostamente acadêmicos estudos mostram (com notas remetendo a autores citados nas normas da ABNT); formando, assim, um corpo de provas que demonstram as razões pelas quais é aconselhável visitar os médicos do BMG e se dirigindo ao epílogo, quando o receptor da mensagem é alertado, acentuando o que foi dito pelo discurso da estatística (menos de 10% dos homens com disfunção erétil procuram um médico) e, recapitulando: visite os médicos do BMG e viva com mais bem-estar, autoestima e prazer. Finalmente, os eventuais temores residuais do receptor são aplacados com a garantia de discrição ( salas de espera individuais ). Fazer referência a discurso científico, no entanto, remete a duas outras questões: O que é ciência? Qual o tipo de ciência que pode legitimar outros discursos? Demo (2009, p. 19) indica que na tradição ocidental racionalista ciência é procedimento frontalmente diferente de outras formas de conhecer: universal, superior e definitivo, tendencialmente voltado para as ciências exatas e naturais, o que também implica o desapreço a outros modos de conhecer (o grifo é nosso). Ainda segundo este autor, ciência quando conectada com tecnologia representa a vantagem comparativa decisiva em termos de crescimento econômico e domínio do mundo, da natureza, da sociedade e da economia, ou seja, transmite, sobretudo, o pano de fundo ocidental, [...] hoje relacionado ao sistema produtivo neoliberal competitivo (DEMO, 2009, p. 19). Notas de Pesquisa, Santa Maria, RS, v. 1, n. 0, p. 35-39, 2011. 37

Cabe indagar também a que tipo de discurso científico a publicidade recorre para legitimar o próprio discurso. A publicidade se vale principalmente da função conotativa da linguagem, conforme proposta por Jakobson (1969), ou seja, aquela que é centrada no receptor, alvo dos conselhos de um emissor que, ao se dirigir diretamente ao consumidor, busca influenciar o seu comportamento e, em última instância, seus hábitos de compra. Além disso, a função conotativa é fundamental para o texto publicitário auratizar mercadorias que são produzidas em série, como aponta Carrascoza (1999, p. 40). Assim, é lícito pensar que a publicidade recorre ao tipo de ciência capaz de conferir glamour aos produtos que anuncia, isto é, àquela cujos representantes são o que o senso comum reconhece como especialistas em determinados assuntos, os doutores egressos de graduações na área da saúde, médicos e dentistas, por exemplo. Trata-se de outro recurso persuasivo utilizado pelo discurso publicitário o apelo à autoridade em busca de testemunhos que validem as suas afirmações, emprestando-lhes a credibilidade e o prestígio de que desfrutam. A este recurso recorre a empresa Reckitt Benckiser em 2010, quando do lançamento de sua linha de sabonetes bactericidas no mercado brasileiro: a marca Dettol. No filme veiculado na televisão (http://www.youtube.com/watch?v=56amm1vywlq) a forma como a publicidade responde a inimigos mais ou menos tangíveis ou imagináveis, os germes e as bactérias, é apelar ao testemunho de uma especialista, cuja autoridade é anunciada através do discurso eu sou microbiologista e reiterada pelo figurino, um jaleco. Porém, como o discurso publicitário é sempre resultado da união de vários fatores, dentre eles o psicológico, como lembra Paz (2002), e cumpre os seus propósitos fazendo uso de diversas técnicas argumentativas pinçadas dentre esquemas e fórmulas discursivas já consagradas; o filme da Dettol lança mão de um dos esquemas básicos apontados por Brown (1971) como recursos utilizados com a finalidade de obter o convencimento dos receptores: o estereótipo. Neste caso, a microbiologista, ao cruzar uma Notas de Pesquisa, Santa Maria, RS, v. 1, n. 0, p. 35-39, 2011. 38

porta, é despida do jaleco de cientista e se transforma na mãe preocupada que compartilha com outras mães o temor aos germes que ameaçam seus filhos. Além disso, neste filme a publicidade se apropria do discurso científico, legitimando o produto que anuncia ao apresentar um certificado da Sociedade Brasileira de Pediatria, o que equivale a dizer que médicos avalizam o poder bactericida do sabonete. E, por fim, o recurso persuasivo da afirmação e da repetição pode ser conferido no website da empresa (http://www.dettol.com.br/), que mais do que publicizar os seus produtos, assevera o compromisso e a responsabilidade socioambiental da empresa anunciante. Este, é claro, um dos discursos científicos recorrentes na publicidade contemporânea. CARRASCOZA, João A. - A evolução do texto publicitário: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. São Paulo: Futura, 1999. DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2009. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969. PAZ, Dioni Maria dos Santos. O texto publicitário na sala de aula: mais uma opção de leitura. Revista Linguagem e Cidadania, ed. nº 07, UFSM, Santa Maria, jun.2002. Disponível em http://www.ufsm.br/lec/01_02/dionil.htm. Acesso em 1222.abr.2011 Notas de Pesquisa, Santa Maria, RS, v. 1, n. 0, p. 35-39, 2011. 39