RESUMO. Descritores: Hematúria. Microscopia de contraste de fase. Dismorfismo eritrocitário. Cilindro hemático. Acantocitúria. Células G1 ABSTRACT

Documentos relacionados
Questionário - Proficiência Clínica

Caso Clínico. (abordagem de Glomerulopatias pós-transplante)

Abordagem do Paciente Renal. Abordagem do Paciente Renal. Abordagem do Paciente Renal. Síndromes Nefrológicas. Síndrome infecciosa: Infecciosa

Glomerulonefrite pós infecciosa

ATLAS DO DISMORFISMO ERITROCITÁRIO

GLOMERULOPATIAS. 5º ano médico. André Balbi

INVESTIGAÇÃO DA ORIGEM DA HEMATÚRIA NA SEDIMENTOSCOPIA URINÁRIA BASEADA NA MORFOLOGIA ERITROCITÁRIA.*

Diagnóstico Diferencial das Síndromes Glomerulares. Dra. Roberta M. Lima Sobral

1º Curso de Nefropatologia e Osteodistrofia Renal

HEMATÚRIA HEMATÚRIA, HEMATÚRIA MACROSCÓPICA, HEMATÚRIA MICROSCÓPICA.

INTERPRETAÇÃO E USO CLÍNICO DA PESQUISA DE DISMORFISMO ERITROCITÁRIO NO SEDIMENTO URINÁRIO

COMPLICAÇÕES RENAIS NO TRANSPLANTE HEPÁTICO

Glomerulopatias em pacientes idosos: aspectos clínicos e histológicos Glomerular diseases in the elderly: clinical and hystological features

UrináliseSedimentoscopia

SIMP.TCC/Sem.IC. 2018(13); FACULDADE ICESP / ISSN:

Avaliação Urinálise Sedimento

ENFERMAGEM EXAMES LABORATORIAIS. Aula 4. Profª. Tatiane da Silva Campos

A CORRELAÇÃO DAS UROCULTURAS E EAS DE URINA PARA O DIGNÓSTICO DE INFECÇÃO URINÁRIA

RESIDÊNCIA MÉDICA 2014 PROVA OBJETIVA

Artigo Original Original Article

Exames complementares em nefrologia pediátrica: Interpretação e conduta

.\IU1C() I)I~ RI~ IS ~O. ~CT~ \lédlc~ PORTI. GUESA 1998: 11: ÂC IA Ni TI Á A 1 TÁ IA M~ ISABEL DANIEL, JOAQUIM BORDALO

INDICADORES BIOQUÍMICOS DA FUNÇÃO RENAL EM IDOSOS

Padrões morfológicos de lesão glomerular e correlação com achados clinicolaboratoriais de 43 crianças com síndrome nefrótica

Etiologia: Etiologia:

Clique para editar o título mestre

Glomerulopatias Secundárias. Glomerulopatias Secundárias. Glomerulopatias Secundárias. Glomerulopatias Secundárias. Glomerulonefrites Bacterianas

AVALIAÇÃO LABORATORIAL DA FUNÇÃO RENAL

Síndromes glomerulares

ANÁLISE DOS SINTOMAS MOTORES NA DOENÇA DE PARKINSON EM PACIENTES DE HOSPITAL TERCIÁRIO DO RIO DE JANEIRO

Resultados. Grupo SK/aids

Síndroma Nefrótico Idiopático na Criança. Evolução a Longo Prazo. Experiência da Unidade de Nefrologia Pediátrica

Artigo Original TUMORES DO PALATO DURO: ANÁLISE DE 130 CASOS HARD PALATE TUMORS: ANALISYS OF 130 CASES ANTONIO AZOUBEL ANTUNES 2

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANSMISSIVEIS. Doenças Renais Parte 1. Profª. Tatiane da Silva Campos

AVALIAÇÃO DA RESPOSTA IMUNE EM PACIENTES COM LEISHMANIOSE MUCOSA TRATADOS COM ANTIMONIAL

Eduardo Henrique Costa Tibaldi 1) Introdução

AVALIAÇÃO DA TAXA DE FILTRAÇÃO GLOMERULAR EM CÃES OBESOS RESUMO

30 Anos de Experiência em Nefrologia Pediátrica: um Estudo Descritivo 30 Years of Experience in Pediatric Nephrology: a Descriptive Study.

SOBRECARGA DO CUIDADOR DE DEMÊNCIA FRONTOTEMPORAL E DOENÇA DE ALZHEIMER.

Hospital do Servidor Público Municipal

Perfil Epidemiológico de Pacientes Portadores de Doença Renal Crônica Terminal em Programa de Hemodiálise em Clínica de Santa Cruz do Sul - RS

INDICAÇÕES ACTUAIS PARA BIÓPSIA RENAL

A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO DE DISMORFISMO ERITROCITÁRIO NA HEMATÚRIA THE IMPORTANCE OF DIAGNOSIS DYSMORPHIC ERYTHROCYTES IN HEMATURIA

AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO RENAL EM DIABÉTICOS ADULTOS*

AB0 HLA-A HLA-B HLA-DR Paciente A 1,11 8,35 3,11 Pai O 1,2 8,44 3,15 Irmão 1 B 1,11 8,35 3,11 Irmão 2 O 2,24 44,51 8,15

Prochnow & Gonçalves. Hematúria

PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DO PACIENTE IDOSO INTERNADO EM UMA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA DE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE JOÃO PESSOA

ENFERMAGEM EXAMES LABORATORIAIS. Aula 3. Profª. Tatiane da Silva Campos

GESF no Transplante. Introdução

PEDIDO DE CREDENCIAMENTO DO SEGUNDO ANO NA ÁREA DE ATUAÇÃO NEFROLOGIA PEDIÁTRICA

Encaminhamento do paciente com Doença Renal Crônica ao nefrologista

Avaliação Diagnóstica de Hematúria Approach to Assessment of Hematuria

Síndrome Nefrótico na Diabetes Mellitus: Um Verfremdungseffekt

Particularidades no reconhecimento da IRA, padronização da definição e classificação.

Insuficiência Renal Aguda no Lúpus Eritematoso Sistêmico. Edna Solange Assis João Paulo Coelho Simone Chinwa Lo

HBsAg Quantitativo Sistema ARCHITECT / Abbott (Clareamento do HBsAg)

AVALIAÇÃO DOS ACHADOS MAMOGRÁFICOS CLASSIFICADOS CONFORME SISTEMA BI RADS¹. Beatriz Silva Souza², Eliangela Saraiva Oliveira Pinto³

Ensaios de Proficiência por Imagem: Ferramentas e Aplicabilidade Sedimento Urinário

MANUAL DE ORIENTAÇÃO DE CONTROLE DE QUALIDADE

Análise comparativa de duas metodologias para a identificação de cilindros hemáticos urinários

Glomerulonefrites Secundárias

Declaração de Conflitos de Interesse. Nada a declarar.

Obrigada por ver esta apresentação Gostaríamos de recordar-lhe que esta apresentação é propriedade do autor.

I Data: 24/05/05. II Grupo de Estudo: III Tema: IV Especialidade(s) envolvida(s):

Anemia da Doença Renal Crônica

Estudo das Doenças Glomerulares na Zona da Mata Mineira Study of Glomerular Diseases in the Zona da Mata Region of Minas Gerais

1 de 6. (1) Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias, Castelo Branco. (2) Associação Regional de Solidariedade p/ o Progresso do Alto Zêzere, Covilhã

Avaliação custo benefício da dosagem da relação albumina\ creatinina pela manhã em pacientes com pré-eclampsia.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

Profa Dra Rachel Breg

Importância do dismorfismo eritrocitário na investigação da origem da hematúria: revisão da literatura

GLOMERULOPATIAS NEFRITE E NEFROSE. Ms. Roberpaulo Anacleto

OCORRÊNCIA DE ANTECEDENTES FAMILIARES EM PACIENTES COM DISTÚRBIOS DO MOVIMENTO DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS NO ESTADO DE GOIÁS

USG do aparelho urinário: hidroureteronefrose bilateral, bexiga repleta com volume estimado de 350 ml com paredes espessadas e trabeculadas.

TÍTULO: AVALIAÇÃO DOS NÍVEIS SÉRICOS DE GLICOSE EM INDIVÍDUOS COM DIABETES MELLITUS E CREATININA E UREIA EM INDIVÍDUOS NEFROPATAS.

Síndrome Renal Hematúrico/Proteinúrica Idiopática Primária. (Nefropatia por IgA [Doença de Berger])

Vai estudar doenças glomerulares? Não se esqueça do elefantinho!

Seminário de Biopatologia. Glomerulonefrites. Leccionada por: Prof. Clara Sambade Desgravada por: Pedro Carvalho e Petra Gouveia

Identificação:SBR, 48 anos, feminino, parda, casada, funcionária administrativa, natural de Campos dos Goytacazes.

Doença com grande impacto no sistema de saúde

Análise comparativa de glomerulopatias primária e secundária no nordeste do Brasil: dados do Registro Pernambucano de Glomerulopatias - REPEG

Tabela 1- Dados demográficos e histológicos.

Tratamento da Doença Glomerular com Micofenolato Mofetil Treatment of Glomerular Disease With Mycophenolate Mofetil.

PERFIL CLÍNICO DE PACIENTES COM GLOMERULONEFRITE LÚPICA PROLIFERATIVA ATENDIDOS NO SERVIÇO DE NEFROLOGIA DO HC-UFPE

Doenças renais em pacientes idosos submetidos à biópsia percutânea de rins nativos

RESUMO OBESIDADE E ASMA: CARACTERIZAÇÃO CLÍNICA E LABORATORIAL DE UMA ASSOCIAÇÃO FREQUENTE. INTRODUÇÃO: A asma e a obesidade são doenças crônicas com

NEFROTOXICIDADE MEDICAMENTOSA. Dr. Carlos Alberto Balda Professor afiliado da Disciplina de Nefrologia da EPM - UNIFESP

Prof. Ms. Elton Pallone de Oliveira. Exames laboratoriais: definição, tipos, indicação, cuidados pré e pós exame. Urinálise

Hospital Central de Maputo Departamento de Pediatria Serviço de Pneumologia Pediátrica

Vai estudar doenças glomerulares? Não se esqueça do elefantinho!

PERFIL DE POPULAÇÃO QUANTO À PRESENÇA DE LITÍASE DO TRATO URINÁRIO: DADOS PRELIMINARES CLÍNICOS E BIOQUÍMICOS 1

VARIAÇÕES FISIOLÓGICAS DA PRESSÃO DO LÍQUIDO CEFALORRAQUEANO NA CISTERNA MAGNA

FREQUÊNCIA DE LEVEDURAS ENCONTRADAS EM URINA TIPO I DE PACIENTES DE UM HOSPITAL PRIVADO DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP

AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DO ATENDIMENTO FONOAUDIOLÓGICO DE PACIENTES TRATADOS DO CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO

INTRODUÇÃO LESÃO RENAL AGUDA

Relato de Caso Case Report

INFECÇÃO URINÁRIA EM ADULTO

BELISSA FERNANDES PERES HEMATÚRIA: TIPOS, ANÁLISE, VALOR DIAGNÓSTICO

Transcrição:

Artigo Original Avaliação Comparativa da Sedimentoscopia Urinária Realizada pelo Nefrologista e pelo Profissional de Análises Clínicas em Pacientes com Glomerulopatias Comparative Assessment of Urinary Sediment Done by the Nephrologist and by the Clinical Analyst Professional in Patients with Glomerulonephritis Priscylla Aparecida Vieira do Carmo 1, Simone S. Magalhães 1, Wander Barros do Carmo 1,2, Neimar da Silva Fernandes 1, Ricardo Bastos 3, Luiz Carlos F. Andrade 1,2 e Marcus G. Bastos 1,2 1 Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Extensão em Nefrologia NIEPEN da Faculdade de Medicina e Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora; 2 Fundação IMEPEN e 3 Laboratório Cortes-Villela RESUMO Introdução: A sedimentoscopia urinária com microscópio munido com contraste de fase (MCF) deveria ser a primeira etapa na determinação da origem das hematúrias. Objetivo: Avaliar discrepâncias nas descrições dos parâmetros urinários relacionados à origem das hematúrias, comparando as descrições do nefrologista (Nef) e do profissional de análises clínicas (PAC). Métodos: Urinas de pacientes com glomerulopatias (GP) confirmadas por biópsia renal foram analisadas sob MCF, por um Nef e um PAC, ambos sem conhecimento prévio da origem das amostras. Cilindros hemáticos, acantocitúria ou células G1 >5% e dismorfismo eritrocitário foram utilizados na localização glomerular das hematúrias. Resultados: Dos 28 pacientes, 13 pacientes (46,4%) apresentavam glomerulonefrites não proliferativas e 15 (53,6%) glomerulonefrites proliferativas. Comparativamente ao PAC, o Nef identificou maior número de hemácias (mediana/ml de urina, 80.000 vs 4.800, p=0,001), maior número de cilindros hemáticos (39,3% vs 0%, p=0,001), maior freqüência de acantocitúria ou células G1 >5% (35,7% vs. 7,14%, p=0,021) e de dismorfismo eritrocitário (96,2% vs 7,14%, p<0,001). As discrepâncias dos resultados permaneceram após a separação das glomerulopatias em proliferativas e não proliferativas. Conclusão: Os parâmetros urinários que caracterizam a origem da hematúria foram mais freqüentemente identificados pelo nefrologista e sugerem que a urinálise, pela sua simplicidade e grande valor informativo, deveria ser incluída obrigatoriamente nos programas de treinamento em nefrologia. Descritores: Hematúria. Microscopia de contraste de fase. Dismorfismo eritrocitário. Cilindro hemático. Acantocitúria. Células G1 ABSTRACT Introduction: In the assessment of hematuria, the first step should be the identification of the origin of the bleeding, which can be done easily by analyzing the urine under phase-contrast microscopy. Obective: To assess the discrepancy of reports of the urinary parameters utilized in the localization of the glomerular origin of hematuria, comparing reports by the nephrologists and by the clinical laboratory technologist. Methods: Urines of patients with biopsy proven glomerulonephritis were assessed under phase-contrast microscopy by a nephrologist and a clinical laboratory technologist, both without previous knowledge of the origin of the samples. Red blood cell (RBC) casts, urinary acanthocytes or G1 cells >5%, and erithrocyte dysmorphism were used to localize the glomerular bleeding. Results: Among 28 patients, 13 (46.4%) had non proliferative glomerulonephritis and 15 (53.6%) had proliferative glomerulonephritis. Relatively to the clinical laboratory technologist, the nephrologist identified more RBC (median of 80.000 vs 4.800, p= 0.001), more RBC casts (39.3% vs 0%, p=0.001), more urinary acanthocytes or G1 cells >5% (35.7% vs 7.14%, p=0.021) and more dysmorphic RBC (96.2% vs 7.14%, p<0.001). The discrepancies of the reports were maintained after the separation of the glomerulonephritis in proliferative and non proliferative. Conclusion: The urinary parameters used in characterization of the origin of the hematuria were more frequently identified by the nephrologist, and suggest that the urinalysis, a simple and very informative test, should be mandatory in programs of training in nephrology. Keywords: Hematuria. Phase contrast microscopy. Erithrocyte dysmorphism. Red blood cell cast. Acanthocytes. G1 cell. Recebido em 20/04/07 / Aprovado em 21/05/07 Endereço para correspondência: Priscylla Aparecida Vieira do Carmo Rua Delfim Moreira, 252 - apt 503, Centro Juiz de Fora - MG Telefone: (32) 3211-1638 E-mail: eubosco@terra.com.br

J Bras Nefrol Volume 29 - nº 2 - Junho de 2007 91 INTRODUÇÃO Hematúria é definida como a eliminação de um número anormal de hemácias na urina 1. Hematúrias isoladas e assintomáticas merecem especial atenção pela elevada freqüência entre os diagnósticos clínicos, causando grande ansiedade ao paciente e a seus familiares. A prevalência de hematúria microscópica assintomática, na população geral, varia de 0,5% a 22%, dependendo da idade da população estudada e do número de hemácias considerado normal 2. Na avaliação das hematúrias, o primeiro passo é estabelecer a sua origem. A identificação da origem glomerular ou pós-glomerular da hematúria é necessária e apropriada para que os exames complementares consecutivos sejam bem direcionados, poupando os pacientes de procedimentos invasivos e onerosos, muitas das vezes desnecessários 3. Em 1979, Birch e Fairley descreveram um método simples para diferenciar a origem das hematúrias, baseado na sedimentoscopia urinária, realizada com microscópio munido com sistema de contraste de fase. Na avaliação dos autores, as hematúrias compostas de 4 populações de hemácias (ou seja, hemácias de formas e tamanhos diferentes), por eles denominadas dismórficas, se associavam com uma causa glomerular e, as isomórficas ou com <4 populações de hemácias, com uma origem pós-glomerular 1,4,5. Adicionalmente, é sabido que a ocorrência simultânea de proteinúria 0,5-1,0 grama é altamente sugestiva de uma origem glomerular das hematúrias, assim como a presença de cilindros hemáticos 2,6. Finalmente, Kohler e cols. propõem que a presença de hemácias em forma de anéis e com projeções citoplasmáticas, também denominadas de acantócitos ou células G1, quando em percentual 5, se associa a uma origem glomerular para a hematúria 7,8. Infelizmente, a realização da urinálise tornou-se rara entre os nefrologistas, os quais transferem para os profissionais de análise clínica dos laboratórios, muitos dos quais ainda sem experiência e com equipamento inadequado, a responsabilidade de realizar este procedimento altamente informativo 9,10. Observação anedótica em nossos pacientes tem evidenciado discrepâncias importantes entre os resultados da urinálise obtidos nos diferentes laboratórios de análises clínicas e os realizados em nosso laboratório, particularmente nas urinas de pacientes com glomerulopatias. O objetivo deste estudo foi avaliar as possíveis discrepâncias nas descrições dos parâmetros urinários comumente empregados na localização das hematúrias glomerulares em pacientes com diagnóstico de glomerulopatias, comparando a urinálise realizada por nefrologista com a de um profissional de análises clínicas. MÉTODOS Foram recrutados, aleatoriamente, 28 pacientes adultos, portadores de glomerulonefrites, procedentes do ambulatório de glomerulopatias do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia NIEPEN da UFJF e da Fundação IMEPEN. Após consentimento informado, aos pacientes foi solicitado que colhessem urina para urinálise, conforme descrito abaixo. As variáveis demográficas para análise foram: idade, sexo, raça, diagnóstico por biópsia renal da doença glomerular. As glomerulopatias foram divididas em proliferativas e não proliferativas, baseado na presença ou ausência de proliferação intra ou extracapilar à biópsia renal, respectivamente 11. Foram excluídos os pacientes com infecção urinária, mulheres no período menstrual, pacientes com hematúria macroscópica e portadores de neoplasia do trato urinário. Coleta e preparo da amostra Os pacientes foram instruídos a coletarem, após higiene da genitália externa com água e sabão neutro, a segunda amostra de urina da manhã, após 12 horas de restrição hídrica, em frascos adequados 12. O volume mínimo de urina coletado por paciente foi de 20mL, sendo 10mL encaminhados para o nefrologista (no laboratório da Fundação IMEPEN) e 10mL para o profissional de análises clínicas, tendo sido a sedimentoscopia urinária realizada em microscópio munido com sistema de contraste de fase 13. As amostras urinárias foram analisadas juntamente com as urinas de outros pacientes, portanto ambos os observadores (o nefrologista e o profissional de análises clínicas) desconheciam o diagnóstico prévio dos pacientes. Sedimentoscopia da urina e parâmetros de localização da hematúria As amostras urinárias acondicionadas em frascos de 10mL e de fundo cônico foram centrifugadas em centrífuga RDE, por 5 minutos, a 2.500rpm. Em seguida, desprezavam-se 9,5mL de urina e o sedimento era ressuspendido, delicadamente, em 0,5mL do sobrenadante. A contagem de hemácias foi realizada empregando-se urinas não centrifugadas e, para a caracterização da morfologia das hemácias, pesquisa de cilindros hemáticos e contagem de acantócitos ou células G1, utilizaram-se urinas centrifugadas; ambas as amostras foram acondicionadas em câmaras de Fuchs-Rosenthal e avaliadas em microscópio Olympus BX41, munido de sistema de contraste de fase. A contagem de hemácias foi realizada empregando-se objetiva 100X, multiplicando-se por 80.000 o número de hemácias contadas em um pequeno quadrado de uma das placas de 16 quadrados. Os parâmetros urinários utilizados para caracterizar a origem da hematúria foram: presença de cilindros hemáticos, 4 populações de hemácias na urina e 5% de acantocitúria ou células G1 2,14-17.

92 Avaliação Comparativa de Sedimentoscopia Urinária ANÁLISE ESTATÍSTICA As variáveis quantitativas foram descritas através de média e desvio-padrão. Em situações de assimetria utilizou-se a mediana. Os dados categóricos foram descritos através de freqüência absoluta e percentual. As comparações entre hematúria quantitativa realizadas pelo nefrologista e pelo profissional de análises clínicas foram realizadas através do teste de Wilcoxon. Para a comparação da presença ou ausência de dismorfismo eritrocitário, de cilindros hemáticos e de acantocitúria 5% entre as análises realizadas pelos dois diferentes profissionais utilizamos o teste de McNemar. O nível de significância adotado foi de p 0,05. RESULTADOS A amostra totalizou 28 pacientes, cuja idade média foi de 37,3 ± 13,8 anos. Houve predominância do sexo feminino (71,4%) e de pacientes brancos (78,6%). Treze pacientes (46,4%) apresentavam glomerulonefrites não proliferativas: sete (25%), glomeruloesclerose segmentar e focal; quatro (14,3%), glomerulonefrite membranosa, e dois (7,1%), glomerulonefrite de lesões mínimas. Nos 15 pacientes restantes (53,6%), o diagnóstico histológico foi de algum padrão de glomerulonefrite proliferativa: sete (25%), nefropatia por depósito de IgA; quatro (14,3%), nefrite lúpica classe IV; dois (7,1%), nefrite lúpica classe V e dois (7,1%), glomerulonefrite membranoproliferativa (tabela 1). Com relação ao número de hemácias na urina, observamos maiores valores da mediana descritos pelo nefrologista comparativamente aos verificados pelo profissional de análises clínicas (80.000 hemácias/ml [mínimo de 4.000 e máximo de 375.000] vs 4.800 hemácias/ml [mínimo de 400 e máximo de 168.000], p=0,001) (figura 1). Quando comparamos a pesquisa de cilindros hemáticos, também observamos discrepâncias, já que nenhum cilindro hemático foi detectado pelo profissional de análises clínicas, enquanto 11 pacientes (39,3%) apresentavam cilindros hemáticos pela avaliação do nefrologista (p=0,001) (tabela 2). Tabela 1. Dados demográficos e diagnóstico histológico das glomerulopatias. Idade em anos (média ±DP) 37,3 ± 13,8 Sexo, n (%) Feminino 20 (71,4) Masculino 8 (28,6) Raça, n (%) Brancos 22 (78,6) Não-brancos 6 (21,4) Glomerulonefrites n(%) Não proliferativas GESF 7 (25) GM 4 (14,3) GNLM 2 (7,1) Proliferativas NxIgA 7 (25) NL classe IV 4 (14,3) NL classe V 2 (7,1) GNMP 2 (7,1) GESF: Glomeruloesclerose Segmentar e Focal, GM: Glomerulonefrite Membranosa, GNLM: Glomerulonefrite de Lesões Mínimas, NxIgA: Nefropatia por IgA, NL classe IV: Nefrite Lúpica Classe IV, NL Classe V: Nefrite Lúpica Classe V, GNMP: Glomerulonefrite Membranoproliferativa. Figura 1. Contagem do número de hemácias urinária de pacientes com glomerulopatias proliferativas e não proliferativas pelo nefrologiasta e pelo profissional de análise clínicas. Tabela 2. Parâmetros urinários descritos pelo nefrologista (Nef) e pelo profissional de análises clínicas (PAC) de acordo com o padrão proliferativo ou não das glomerulopatias. % de hemácias % de cilindros % de acantocitúria Glomerulopatias dismórficas P hemáticos P ou células G1 P (n= 28) Nef PAC Nef PAC Nef PAC Proliferativa (n= 15) 100 15,4 0,0001 38,5 0 0,025 38,5 15,4 0,257 Não proliferativa (n= 13) 93,3 0 0,0001 40 0 0,014 33,3 0 0,025

J Bras Nefrol Volume 29 - nº 2 - Junho de 2007 93 A presença de acantócitos urinários ou células G1 em percentual 5 das hemácias contadas foi observada em apenas dois (7,1%) casos avaliados pelo profissional de análises clínicas e em dez casos (35,7%) avaliados pelo nefrologista (p=0,021). (tabela 2) Ao analisarmos o padrão da morfologia da hematúria, observamos descrição de dismorfismo de hemácias, compatível com a origem glomerular, em apenas dois casos (7,1%) pelo profissional de análises clínicas e em 26 casos (96,2%) pelo nefrologista (p<0,001). Após separarmos as amostras urinárias dos pacientes com glomerulopatias proliferativas e não proliferativas, verificamos maior discrepância nas descrições dos parâmetros urinários de importância na determinação da origem glomerular da hematúria (tabela 2). Nas glomerulopatias proliferativas, os cilindros hemáticos foram observados em 38,5% dos casos pelo nefrologista e em nenhum caso pelo profissional de análises clínicas (p=0,025); a acantocitúria ou célula G1 5% foi descrita pelo nefrologista em 38,5% das amostras e em 15,4% pelos profissionais de análises clínicas (p=0,257); e o dismorfismo eritrocitário foi descrito em 100% das amostras analisadas pelo nefrologista e em 15,4% pelo profissional de análises clínicas (p =0,001). Nas glomerulopatias não proliferativas, dismorfismo eritrocitário, cilindros hemáticos e acantocitúria ou célula G1 5% foram descritos em 93,5% (p<0,001), 40% (p=0,014) e 33,3% (p=0,025), respectivamente, pelo nefrologista e em nenhuma das amostras avaliadas pelo profissional de análises clínicas (tabela 2). DISCUSSÃO A sedimentoscopia urinária realizada com microscópio munido com sistema de contraste de fase deveria ser o primeiro teste realizado em pacientes com hematúria 2,18,19. No passado, a urinálise era um procedimento realizado freqüentemente pelo clínico e pelo profissional de análises clínicas. Infelizmente, os clínicos, incluindo os nefrologistas, transferiram para os profissionais de análises clínicas a responsabilidade de realização do exame de urina, propedêutica fundamental na avaliação das diferentes formas de doenças renais. A realização da urinálise está se tornando uma arte agonizante entre os nefrologistas, em parte devido à falta de treinamento nos programas de residência em nefrologia. No presente estudo, avaliamos a contagem de hemácias e os parâmetros freqüentemente utilizados no diagnóstico diferencial da origem das hematúrias (morfologia das hemácias, presença de cilindros hemáticos e >5% de acantócios ou células G1), comparando os resultados descritos pelo nefrologista e pelo profissional de análises clínicas, ambos sem conhecimento prévio da origem das amostras urinárias e utilizando microscopia munida com sistema de contraste de fase. Uma das diferenças foi o quantitativo de hemácias por ml de urina, cujos maiores valores foram observados à análise pelo nefrologista (80.000 vs 4.800; p=0,001). A importância destes achados reside no fato de que a quantificação da hematúria nos permite prever o padrão histológico observado na biópsia renal e no prognóstico de algumas formas de glomerulopatias 20. Por exemplo, as glomerulopatias com presença de proliferação celular nos glomérulos freqüentemente cursam com número de hemácias na urina 60.000-100.00/mL. A ocorrência >10 5 hemácias/ml em pacientes com nefropatia IgA e micro-hematúria se associou com maior risco de progressão para terapia renal substitutiva 20. A associação da morfologia das hemácias urinárias com a origem da hematúria foi descrita em 1979 e revolucionou completamente a abordagem diagnóstica da hematúria 16. A utilidade da morfologia dos eritrócitos urinários no diagnóstico diferencial das hematúrias glomerulares e pós-glomerulares e sua utilidade clínica têm sido confirmadas por inúmeros outros estudos. No nosso estudo, analisando amostras urinárias de pacientes com diagnóstico de glomerulopatias confirmado por biópsia renal, observamos uma diferença relativamente importante: a descrição de dismorfismo eritrocitário, o qual foi descrito em 96,2% dos casos pelo nefrologista e em 7,1% pelo profissional de análises clínicas. A discrepância se torna mais evidente quando separamos as glomerulopatias em proliferativas e não proliferativas. Em 100% e 93,5%, respectivamente, o nefrologista descreveu dismorfismo eritrocitário nas amostras urinárias dos pacientes com glomerulopatias proliferativas e não proliferativas. Ao passo que, quando analisado pelo profissional de análises clínicas, o dismorfismo eritrocitário foi observado em apenas 15,4% das urinas de pacientes com glomerulopatias proliferativas e em nenhum caso de glomerulopatias não proliferativas. Um parâmetro urinário freqüentemente utilizado para determinar a origem glomerular das hematúrias é a presença de cilindro hemático. No presente estudo, o cilindro hemático foi descrito em cerca de 39% das urinas analisadas pelo nefrologista e em nenhuma das amostras avaliadas pelo profissional de análises clínicas. Os resultados evidenciam a importância de um observador com experiência, motivado e meticuloso no estudo da sedimentoscopia, além de confirmarem observações de outros autores da ausência de cilindros hemáticos em um alto percentual dos casos de glomerulopatias, 21 o que pode dificultar a localização da origem glomerular da hematúria 17.

94 Avaliação Comparativa de Sedimentoscopia Urinária Acantocitúria ou células G1 é um tipo de hemácia em forma de anel e com projeções citoplasmáticas. Quando presente num percentual 5%, a ocorrência de acantocitúria ou células G1 apresenta boa sensibilidade (52%) e excelente especificidade (98%) para a origem glomerular das hematúrias 17. No nosso estudo, o percentual de acantocitúria ou células G1 identificado pelo nefrologista e pelo profissional de análises clínicas foi relativamente muito baixo: nas glomerulopatias proliferativas (38,5% e 15,4%, respectivamente, p=0,257) e nas não proliferativas (33,3% e 0%, respectivamente, p<0,025), resultados discrepantes dos descritos por outros autores 17,22. É importante reconhecer algumas limitações no presente estudo. Primeiro, não foi possível parear o tempo de experiência na realização da avaliação da morfologia das hemácias pelo nefrologista e pelo profissional em análises clínicas. Segundo, o critério utilizado pelos dois avaliadores para caracterizar a morfologia da hematúria não foi o mesmo. O nefrologista adotou como dismorfismo a presença de 4 populações de hemácias (Birch DF, comunicação pessoal), enquanto o profissional de análises clínicas utilizou a presença de 80% de hemácias com diferentes formas e tamanhos e/ou ausência de codócitos ou acantócitos em 100 hemácias contadas. Terceiro, enquanto o nefrologista avaliou um pequeno número de amostras urinárias diariamente (cerca de seis - oito), o profissional de análises clínicas examinou um número em média nove dez vezes maior, o que pode ter limitado o tempo despendido na análise de cada urina estudada. Em suma, o nosso estudo evidencia uma discrepância nos parâmetros urinários comumente utilizados na prática nefrológica para caracterizar a origem glomerular da hematúria, nas urinálises realizadas por nefrologistas e profissionais de análises clínicas. Comparativamente ao profissional de análises clínicas, o nefrologista apresentou melhor performance na caracterização do dismorfismo eritrocitário, na identificação de cilindros hemáticos e na quantificação de acantocitúria ou células G1. Adicionalmente, o nefrologista também identificou mais hemácias que o profissional de análises clínicas, parâmetro importante no prognóstico de alguns tipos de glomerulopatias, particularmente na nefropatia por depósito de IgA 20. Os resultados sugerem que, tendo em vista a sua simplicidade e grande valor informativo, a urinálise deveria ser obrigatoriamente incorporada aos programas de treinamento em nefrologia, particularmente na residência médica. REFERÊNCIAS 1. Birch DF, Fairley KF, Whitworth JA, Forbes JK, Farley JK, Cheshire GR, Ryan GB. Urinary erythrocyte morphology in the diagnosis of glomerular hematurias. Clin Nephrol 1983; 20:78-84. 2. Bastos MG, Martin GA, Paula RB. Diagnóstico diferencial das hematúrias. J Bras Nefrol 1998;20(4):425-40. 3. Livaditis A, Ericsson LO. Essential hematuria in children 4. prognostic aspects. Acta Paediatr 1962;51:630-4. 5. Huussen J, Koene RA, Hilbrands LB. The (fixed) urinary sediment, a simple and useful diagnostic tool in patients with haematuria. Neth J Med 2004; 62(1):4-9. 6. Abdurrahman, MB. Diagnostic value of phase contrast microscopy in haematuria. Trop Geogr Med 1985;37:171-4. 7. Fasset RG, Horgan BA, Mathew TH. Detection of glomerular bleeding by phase-contrast microscopy. Lancet 1982; 1(8287):1432-4. 8. Fairley KF. Urinalysis. In Schrier RW, Gottschalk CW eds. Diseases of the Kidney, 5 th ed., Boston, Little, Brown and Co., 1983, 335-359. 9. Kitamoto Y, Tomita M, Akamine M, Inoue T, Itoh J, Takamori H, Sato T. Differentiation of hematuria using a uniquely shaped red cell. Nephron 1993;64(1)32-6. 10. Fogazzi GB and Garigali G. The clinical art and science of urine microscopy. Curr Opin Nephrol Hypertens 2003;12(6):625-32. 11. Tsai JJ, Yeun JY, Kumar VA, Don BR. Comparison and interpretation of urinalysis performed by a nephrologist versus a hospital-based clinical laboratory. Am J Kidney Dis 2005;46(5):820-9. 12. Fogazzi GB, Saglimbeni L, Banfi G, Cantu M, Moroni G, Garigali G, Cesana BM. Urinary sediment features in proliferative and non-proliferative glomerular diseases. J Nephrol 2005;18(6):703-10. 13. Xavier R, Albuquerque G, Barros E. Laboratório na prática clínica, Ed. Artmed, 2006. 14. Andriolo A, Schor N, Medicina laboratorial, Ed. Manole, 2005. 15. Fogazzi,G. The Urinary Sediment; Oxford University Press; 1994. 16. Bastos MG. Hematúria: glomerular ou pós-glomerular? Revista de APS 1999;2:43-7. 17. Birch DF, Fairley KF. Hematuria: glomerular or non glomerular? Lancet 1979;11:845-6. 18. Kohler H, Wandel E, Brunk B. Acathocyturia a characteristic marker for glomerular bleeding. Kidney Int 1991;40:115-20. 19. Fogazzi GB, Grignani S. Urine microscopic analysis an art abandoned by nephrologists? Nephrol Dial Transplant 1998;13(10):2485-7 20. Fairley KF, Birch DF. Hematuria: a simple method for identifying glomerular bleeding. Kidney Int 1982;21(1):105-8. 21. Kincaid-Smith P. Treatment of mesangial immunoglobulin A glomerulonephritis. Semin Nephrol 1999;19(2):166-72. 22. Birch DF, Fairley KF, Becker GJ. A Colour Atlas of Urine Microscopy. Melbourne, Chapman & Hall Medical,1994. 23. Heine GH, Sester U, Girndt M, Köhler H. Acanthocytes in the urine. Useful tool to differentiate diabetic nephropathy from glomerulonephritis? Diabetes Care 2004;27:190-4.