Pensando as relações raciais no mundo do trabalho: Um olhar a partir da branquitude

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Transcrição:

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) Pensando as relações raciais no mundo do trabalho: Um olhar a partir da branquitude Josiane Barbosa Gouvêa (UEM) - josidapper@hotmail.com Resumo: O que pretendo no presente estudo é, através de uma abordagem teórica, compreender como as relações raciais, a partir da perspectiva da branquitude, podem moldar as relações de trabalho no Brasil. Falar de relações raciais no Brasil nos remete, invariavelmente, à dicotomia brancos e negros, justificada pelo grupo hegemônico como proveniente do passado escravocrata do país. No entanto, entendo que esta justificativa inicial não esgota as possibilidades quando falamos sobre o tema. Isto porque as diferenças entre brancos e negros continuam aparentes e, porque não dizer, fortalecidas, ainda em nossos dias. As relações de trabalho são também influenciadas por esta dicotomia. Desta forma, pensar as relações raciais no mundo do trabalho é necessário e urgente, tendo em vista que ainda existem abismos a serem transpostos para que se possa conquistar a igualdade que na percepção de muitos já existe no Brasil. Palavras-chave: Relações raciais; branquitude; relações de trabalho Área temática: GT-04 Sobre Desigualdades e Interseccionalidades: Discutindo Raça, Gênero, Sexualidade e Classe Social nos Estudos Organizacionais IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais - Porto Alegre, RS, Brasil, 19 a 21 de Outubro de 2016

Pensando as relações raciais no mundo do trabalho: Um olhar a partir da branquitude Falar de relações raciais no Brasil nos remete, invariavelmente, à dicotomia brancos e negros, justificada pelo grupo hegemônico como proveniente do passado escravocrata do país. No entanto, entendo que esta justificativa inicial não esgota as possibilidades quando falamos sobre o tema. Isto porque as diferenças entre brancos e negros continuam aparentes e, porque não dizer, fortalecidas, ainda em nossos dias. A dicotomia da qual falo aqui é perceptível em todos os nossos ambientes, inclusive no trabalho, desde as metrópoles até as pequenas cidades de interior. Utilizo as classificações brancos e negros tendo em vista que, conforme afirma Schucman (2010) mesmo com a diversidade de classificação racial brasileira (o IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística utiliza-se de cinco gradações: pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas), em termos de desigualdade social é possível estabelecer a classificação brancos e não brancos. Porém são ainda incipientes as discussões que dela tratam na academia, inclusive na Administração. Sequer nos ocupamos de tais questões, uma vez que na Administração transparece a imagem de que a cultura organizacional é capaz de homogeneizar as relações. Dissemina-se assim a ideia de que as organizações são campos neutros, nos quais uma única cultura é apreendida pelos trabalhadores e estes, passivamente, se adaptam a ela para estarem adequados aos padrões estabelecidos pelas empresas. Esta representação é bem notada por Saraiva e Irigaray (2009, p. 338) ao afirmarem que as organizações têm sido, historicamente, abordadas como entidades assépticas em que os indivíduos convivem de forma funcional e neutra em prol de objetivos econômicos, quando, na verdade, são campos repletos de diversidade. Ainda assim, quando pesquisadores se propõem a olhar para as relações raciais, via de regra, o fazem levando em conta apenas os grupos minoritários. O que pretendo no presente estudo é, através de uma abordagem teórica, compreender como as relações raciais, a partir da perspectiva da branquitude, podem moldar as relações de trabalho no Brasil. Neste contexto, pretendo lançar um olhar não apenas para o grupo tido como o ente frágil nestas relações, mas também para aquele construído como superior. Conforme salienta Steyn (2004), é esta uma maneira de transferir o olhar das margens para o centro.

Proponho esta discussão pois entendo ser imprescindível o rompimento do silêncio que ainda impera nos estudos organizacionais, bem como, o questionamento acerca da naturalização da inferioridade de determinados grupos sociais. Como salienta Gordon (2008, p. 16), nós devemos nos livrar de nossas barreiras, rumo a um corajoso engajamento com a realidade. Para Schucman (2012) falar sobre branquitude apresenta-nos a possibilidade de preencher uma lacuna existente nos estudos sobre relações raciais que por muito tempo ajudou a naturalizar a ideia de que quem tem raça é apenas o negro. Diante deste contexto, é possível perceber que não apenas o pensamento sobre o ser negro foi socialmente construído no decorrer do tempo. O conceito de branquitude, ou da superioridade do sujeito branco também passou por esse processo. A partir desta concepção inicio minhas reflexões acerca da branquitude com um questionamento: por que, para muitas pessoas, ser ou parecer branco é visto como fator de distinção? A construção social da branquitude permite responder a esta questão no momento em que percebemos que este pensamento não foi constituído a partir de um olhar para si, mas a partir de um olhar para o outro. A branquitude passou a ser ideologicamente construída a partir do processo de colonização do chamado Novo Mundo, quando a utilização dos negros na condição de escravos direcionava o pensamento dos brancos para uma posição de superioridade (SCHUCMAN, 2012). Assim, é possível perceber que as identidades brancas e não brancas foram sendo criadas e recriadas significadas e ressignificadas no decorrer do tempo, afirma Schucman (2012). Ou seja, o branco teoricamente não racializado olha para o negro, este sim visto como racializado e inferior e, a partir deste olhar, constrói a sua imagem. Diante deste contexto, Bento (2002, p. 30) afirma que É flagrante observar que alguns estudos das primeiras décadas do século XX focalizaram o branco, não para compreender seu papel nas relações entre negros e brancos, mas para garantir sua isenção no processo de escravização da parcela negra da população brasileira. Para falar sobre identidade branca, no entanto, considero ser fundamental definir, assim como afirma Schucman (2012), o que é a branquitude e quem são os sujeitos que ocupam os seus espaços. Neste sentido, Sovik (2004, p. 366) aponta algumas características do ser branco no Brasil, senão vejamos: Ser branco exige pele clara, feições europeias, cabelo liso; ser branco no Brasil é uma função social e implica desempenhar um papel que carrega em si uma certa autoridade ou respeito automático, permitindo trânsito, eliminando barreiras. Ser branco não exclui ter sangue negro.

Através da ideia de branquitude aqui apresentada, é possível perceber que o ser branco no Brasil, assim como o ser negro, estão vinculados não a questões genéticas, mas a traços fenotípicos que diferenciam um do outro. No entanto há um evidente silenciamento acerca do branco nos debates que se tem a respeito das relações raciais. Neste sentido Bento (2002, p. 26) destaca: [...] o primeiro e mais importante aspecto que chama a atenção nos debates, nas pesquisas, na implementação de programas institucionais de combate às desigualdades é o silêncio, a omissão ou a distorção que há em torno do lugar que o branco ocupou e ocupa, de fato, nas relações raciais brasileiras. A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado. Esta abordagem explicita que o branco desfruta de um privilégio nas diferentes instâncias em que ele atua. Isto, em alguma medida, desmente o argumento de que tanto brancos quanto negros, quando pobres, sofrem na mesma medida. Conforme afirma Bento (2002, p. 28), mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. É importante salientar, porém que ao falar do privilégio dos brancos não se pretende dizer que estes se sentem superiores em relação aos não brancos, mas que possuem benefícios simbólicos em virtude dessa pertença ainda que involuntariamente, conforme salienta Schucman (2012). Para a autora, cabe questionar: de que forma agem os sujeitos a fim de que os privilégios de sua branquitude sejam mantidos e perpetuados? Ou ainda: como muitos sujeitos desfrutam desses privilégios sem que sequer se deem conta disso? Bento (2002) apresenta uma abordagem que, a meu ver, poder ser considerada para responder os questionamentos apresentados. Para a autora os grupos se unem a partir do que chama de indignação narcísica, na qual há um sentimento de indignação com a violação dos direitos. No entanto, esta apenas se manifesta quando afeta o grupo de pertencimento dos sujeitos. Tem-se assim uma indignação seletiva, na qual os problemas dos outros não nos afetam, apenas tomamos conhecimento e nos manifestamos quando as questões se vinculam aos nossos grupos. No contexto das relações raciais, os resultados advindos desta forma de perceber o mundo se manifestam ainda com mais força, uma vez que visam justificar e legitimar a ideia de superioridade de um determinado grupo sobre outro, diz Bento (2002). Esta forma de organização possibilita a manutenção de privilégios e, via de regra, é tomada como discurso para justificar as diferentes posições ocupadas por brancos e negros em nossa sociedade. Neste contexto, tem-se que a estrutura das relações raciais no Brasil é

sustentada por três bases, quais sejam, o contínuo da cor, ideologia do embranquecimento e democracia racial (SOUZA, 1983). De acordo com Souza (1983) o contínuo da cor está atrelado ao fato de que branco e negro representam apenas os extremos de uma linha ininterrupta, a partir da qual, quanto maior a brancura, maiores as chances de sucesso e aceitação. Esta abordagem está, portanto intimamente atrelada à ideia de embranquecimento, uma vez que permite ao negro não se declarar como tal, mas utilizar-se de diversas nomenclaturas para falar de sua cor de pele. Guimarães (2011, p. 267) aponta, neste sentido, que o nosso sistema de classificação de cor se origina da intrincada teoria de embranquecimento. Para este autor, falar em cor não deve restringir nosso olhar a cor da pele do sujeito, mas esta ideia está vinculada também ao ideal fenotípico que deve ser atendido para ocupar determinadas posições em nossa sociedade. Nas palavras do autor: Cor é apenas um, o principal certamente, dos traços físicos junto com o cabelo, nariz e lábios que junto com traços culturais boas maneiras, domínio da cultura europeia, formavam um gradiente evolutivo de embranquecimento (GUIMARÃES, 2011, p. 267). Neste sentido Nogueira (2006) afirma que o preconceito brasileiro possui características que o diferenciam das manifestações racistas que podem ser percebidas em outros lugares do mundo. O autor chama as práticas exercidas no Brasil de preconceito de marca, que usa as características fenotípicas para definir se o sujeito é branco ou negro. Diferente do preconceito que pode ser identificado nos Estados Unidos, por exemplo, que segundo Nogueira (2006) leva em conta a constituição do genótipo. A maneira, portanto, como o preconceito é exercido no Brasil torna-o mais flexível, uma vez que diversos aspectos são determinantes para tal. Nos Estados Unidos utilizo-me aqui do exemplo apresentado por Nogueira (2006) a definição entre negros e não negros se dá pela ascendência. Logo uma gota de sangue negro classifica o sujeito como tal, ainda que seu fenótipo não o manifeste. No Brasil, no entanto, a classificação é realizada a partir de pressupostos que sobrepõem o genótipo. Para Teixeira (2015), o preconceito racial brasileiro é influenciado pela posição social do indivíduo, bem como, por aspectos comuns do cotidiano, como o lugar em que se está e quais os usos que se faz do mesmo. Isto de acordo com a autora não só gera diferentes matizes de comportamento diante dos negros, como também dificulta o reconhecimento do preconceito (TEIXEIRA, 2015, p. 67).

A ideia defendida por Teixeira (2015) pode ser percebida no contexto das relações de trabalho em nosso país. Não se trata de novidade dizer que o mercado de trabalho brasileiro é marcado por significativas e persistentes desigualdades. Apesar deste cenário os estudos organizacionais ainda se mantem distantes da temática das relações étnicoraciais, sendo ainda incipientes as iniciativas de autores para tratar do tema. Para Rosa (2014) dois são os motivos principais para este silenciamento: o primeiro diz respeito à dificuldade que ainda temos enquanto nação de assumir o racismo. Há uma reserva dos brasileiros em abordar o tema do racismo num país que ainda não resolveu muito bem essa questão, inclusive no campo acadêmico, afirma Rosa (2014, p. 243). O segundo está relacionado ao nítido distanciamento da área em relação aos estudos sobre relações raciais desenvolvidos no país. Visto também como fator determinante da identidade racial brasileira, como dito anteriormente, o mito da democracia racial sustenta a ideia da inexistência de segregação racial em nosso país, aliado à ideologia do embranquecimento, faz o negro perceber o seu grupo de pertencimento de forma negativa. É, portanto, lugar de onde teria que escapar para realizar, individualmente, as expectativas de mobilidade vertical ascendente (SOUZA, 1983, p. 22). O mito da democracia racial povoou o imaginário dos brasileiros durante muito tempo e, porque não dizer, em alguma medida ainda hoje se mantém implícito nas ações diárias às quais são submetidos os negros. Para Santos (2002, p. 161) o caráter da democracia racial brasileira está ancorado à seguinte noção: raça e cor não são abertamente mencionadas (é um assunto de alcova) desde que cada qual obedeça os limites estabelecidos pelo caráter de sua cultura, de sua origem étnica, de sua cor. Por outro lado, o discurso ideológico disseminado pelo mito da democracia racial enxerga o negro que não consegue ascender socialmente como um desqualificado, do ponto de vista individual (SOUZA, 1983). Assim, constitui-se e mantem-se a ideia de que a sociedade não tem qualquer responsabilidade pelas condições desiguais, afinal, o resultado deve ser alcançado individualmente. Quem consegue ascender, portanto, torna-se exceção e como exceção, perde a cor: deixa de ser preto ou mulato para muitos efeitos sociais, sendo encarado como uma figura importante, ou um grande homem (SOUZA, 1983, p. 23). A ideologia do embranquecimento, por sua vez, determina os rótulos de beleza e aceitação, e faz com que os sujeitos queiram de maneira consciente ou não fazer parte do grupo hegemônico e ter as características apresentadas por ele. Certamente esta ideia também foi articulada e ganhou força no decorrer do tempo. Para Fanon (2008) a ideia da

necessidade de branqueamento não foi aceita apenas pelos brancos. Para o autor os negros também adotaram esta ideia e passaram a, em alguma medida, não mais se aceitarem, tomando atitudes que pudessem embranquece-los de alguma maneira. A ideia de superioridade do branco e da necessidade de embranquecimento da população brasileira, portanto, foi pensamento constante em nosso país, principalmente a partir do momento em que se iniciam as pressões pelo fim da escravidão. No entanto, Seyferth (2002) afirma que a partir de 1850 esta ideia foi reforçada, após a publicação da tese determinista racial do conde de Gobineau. Esta tese tinha por pressuposto que o destino de uma civilização depende do grau de miscigenação do seu povo. Quanto mais miscigenado, ou seja, maior diluído o sangue branco, maior a sua decadência. Olhando para os nossos dias, é possível perceber que o mito da democracia racial e a ideologia do embranquecimento continuam presentes, ancorados pela ideia de que no Brasil não houve regulamentação que explicitasse a segregação e, por isso, esta não ocorreu. O discurso da convivência pacífica entre os grupos, portanto, permitiu a construção de sentidos que vincularam a experiência de proximidade à ideia de harmonia entre as raças, afirmam Santos e Scopinho (2015, p. 170). Desta forma consegue-se manter o Brasil na cômoda posição de país onde impera a harmônica convivência entre os diferentes. Como já mencionado neste estudo, temos no Brasil um modelo de racismo muito peculiar. Logo é a partir desta posição que precisamos olhar para as organizações brasileiras, no que tange as relações raciais. Para Rosa (2014, p. 254) podemos agora pensar as organizações como um microcosmo social, que reproduz uma série de fenômenos que tradicionalmente estiveram presentes na sociedade brasileira, entre os quais as relações raciais. Assim, não é possível que nos utilizemos de modelos prontos importados de outras realidades. Tampouco podemos aceitar a ideia de que, como dito anteriormente, o ambiente organizacional resolve o problema, uma vez que homogeneíza as relações entre os sujeitos. Está na hora de olharmos de frente para o problema racial nas organizações. É preciso admitir que o contexto brasileiro faz com que a competição entre brancos e não brancos, quando se trata de relações de trabalho, seja desigual, nos diz Rosa (2014). O autor complementa afirmando que isto se dá porque existem práticas discriminatórias sutis e mecanismos racistas mais gerais que acabam gerando maiores oportunidades para os brancos, com ganhos ocupacionais e de renda superiores (ROSA, 2014, p. 249).

Diante do exposto entendo que no país da democracia racial, pensar as relações raciais no mundo do trabalho é necessário e urgente, tendo em vista que ainda existem abismos a serem transpostos para que se possa conquistar a igualdade que na percepção de muitos já existe no Brasil. Referências BENTO, M. A. S. BRANQUEAMENTO E BRANQUITUDE NO BRASIL In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S. (Org.) Psicologia social do racismo estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58) FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GORDON, L. Prefácio. In.: FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GUIMARAES, A. S. A. Raça, cor, cor da pele e etnia. Cadernos de campo, São Paulo, n. 20, 2011, p. 265-271 NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem, sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social Revista de Sociologia da USP. V.19; N.1; Novembro 2006, p. 287-308. ROSA, A. R. Relações Raciais e Estudos Organizacionais no Brasil. RAC, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, art. 1, Maio/Jun. 2014, p. 240-260. SARAIVA, L. A. S.; IRIGARAY, H. A. R. Políticas De diversidade nas organizações: Uma questão de discurso? RAE, n.3, v.49, São Paulo, jul/set, 2009, p. 337-348. SANTOS, G. A. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ / Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002. SANTOS, E. F.; SCOPINHO, R. A. A questão étnico-racial no Brasil contemporâneo: notas sobre a contribuição da teoria das representações sociais. Psicologia e Saber Social, 4(2), 168-182, 2015. doi: 10.12957/psi.saber.soc., 2015 SCHUCMAN, L. V. Racismo e antirracismo: a categoria raça em questão. Psicologia Política, 19(10), 2010 p. 41-55.s SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo : Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, 2012, 122p. SCHUCMAN, L. V. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia e Sociedade. 26(1), 2014, p. 83-94. SEYFERTH, G. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre racismo. In.: SEYFERTH, G. et al. Racismo no Brasil. São Paulo: Peirópolis; ABONG, 2002. SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal,1983. SOVIK, L. Aqui ninguém é branco: hegemonia branca no Brasil. In.: WARE V. (Org.), Branquidade, identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. STEYN, M. Novos matizes da branquitude : a identidade branca numa África do Sul multicultural e democrática. In.: WARE, V. (Org.), Branquidade, identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. TEIXEIRA, J. C. As Artes e Práticas Cotidianas de Viver, Cuidar, Resistir e Fazer das Empregadas Domésticas. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Ciências Econômicas, Departamento de Ciências Administrativas, Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração, 2015, 412p.