Morte Súbita Cardíaca: a Fração de Ejeção pode não ser Suficiente para Identificar Pacientes de Risco

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Relato de Caso 24.2 : 79-86 2011 Morte Súbita Cardíaca: a Fração de Ejeção pode não ser Suficiente para Identificar Pacientes de Risco Ricardo Alkmim TEIXEIRA 1 Ana Cláudia Swerts OLIVEIRA 2 Andrei Alkmim TEIXEIRA 3 Thais Kirschner de SOUZA 4 RESUMO: A importância da taquicardia ventricular no mecanismo da morte súbita cardíaca é bastante conhecida. A presença de disfunção ventricular esquerda (FEVE < 35 a 40%) identifica pacientes de risco, independentemente da cardiopatia de base. Contudo, a associação entre a FEVE e a cardiopatia chagásica crônica ainda precisa ser melhor compreendida, uma vez que a arritmogenicidade dessa doença pode ocorrer mesmo em pacientes com função ventricular esquerda preservada ou pouco alterada. Relata-se o caso de uma paciente jovem com cardiopatia chagásica e que, a despeito de apresentar FEVE preservada e não ter sintomas de insuficiência cardíaca (NYHA), evoluiu com taquicardias ventriculares sustentadas de diferentes morfologias, refratárias à terapêutica farmacológica com amiodarona e procainamida e à ablação por radiofrequência. Durante a evolução, apresentou bloqueio atrioventricular transitório avançado como efeito colateral da terapia antiarrítmica. DESCRITORES: Morte Súbita, Taquicardia Ventricular, Doença de Chagas. Introdução As taquiarritmias ventriculares (TV) estão intimamente relacionadas à ocorrência de morte súbita cardíaca. Didadicamente, pode-se dividir os pacientes que apresentam TV em dois grupos: com e sem cardio-patia estrutural aparente. Os que não exibem cardiopatia estrutural aparente habitualmente apresentam disfunções genéticas dos canais iônicos (sódio, potássio ou cálcio) que podem resultar em TV polimórfica que degenera em fibrilação ventricular (FV). Já aqueles com cardiopatia estrutural aparente podem apresentar TV monomórfica em decorrência da existência de áreas de fibrose permea-das por tecido miocárdico viável e que funcionam como substrato para a ocorrência de reentradas para o impulso elétrico cardíaco. [1] Doutor em ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médico assistente da unidade clínica de estimulação cardíaca artificial do Instituto do Coração - InCor/HC-FMUSP. Responsável pelo departamento de arritmias e estimulação cardíaca artificial do Hospital Renascentista e da Universidade do Vale do Sapucaí de Pouso Alegre - MG. [2] Cardiologista da Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre - MG. Coordenadora da unidade ambulatorial do departamento de arritmias e estimulação cardíaca artificial da Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre - MG. [3] Mestre em nefrologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP/EPM, São Paulo, SP. Diretor da unidade de terapia intensiva do Hospital Renascentista de Pouso Alegre - MG. Médico intensivista da Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre - MG. [4] Cardiologista do Hospital Renascentista de Pouso Alegre. MG. Médico intensivista da unidade de terapia intensiva do Hospital Renascentista de Pouso Alegre - MG. 79

Os fármacos antiarrítmicos têm se mostrado ine-ficazes para a prevenção da morte súbita cardíaca em pacientes com cardiopatia estrutural 1. Estudos com cardiodesfibriladores implantáveis (CDI) demonstraram que tais dispositivos associam-se a taxas significativamente maiores de sobrevida, tanto na prevenção primária quanto na secundária 2. Embora os CDI sejam eficientes, a difusão de seu uso deve ser racional, em razão dos custos e das possíveis complicações inerentes ao procedimento cirúrgico de implante (infecções, hematomas, pneumotórax, deslocamento de eletrodos etc) e das possíveis complicações eletrônicas (falhas de captura e sensibilidade, choques inapropriados, desgaste precoce de bateria etc). Assim, a comunidade científica tem buscado encontrar indicadores clínicos e laboratoriais capazes de identificar pacientes com risco elevado de morte súbita. A medida da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) vem se mostrando um parâmetro extremamente útil, uma vez que tem fácil aplicação, é amplamente disponível e tem baixo custo. Já é bastante conhecido que portadores de disfunção ventricular grave (FEVE < 35-40%) estão especialmente propensos à ocorrência de morte súbita arrítmica por TV/FV. No entanto, embora a identificação da FEVE seja útil nas diversas cardiopatias, tal correlação pode não ser suficiente para identificar todos os pacientes de risco 3. Ademais, mesmo que a FEVE tenha valor, tanto em pacientes com cardiopatia isquêmica quanto nãoisquêmica, ainda faltam evidências definitivas em relação à cardiopatia chagásica crônica (CCC). Nesses pacientes, mesmo com FEVE preservada ou pouco alterada, os eventos arrítmicos potencialmente fatais são mais frequentes que em outras cardiopatias 4. Relata-se aqui o caso de uma paciente chagásica sem disfunção ventricular esquerda importante ou sintomas de insuficiência cardíaca (NYHA) que apresentou arritmias ventriculares complexas e de difícil tratamento. Relato de Caso MSLS, do sexo feminino, com 41 anos de idade, procedente de Minas Gerais, operadora de máquinas, foi admitida no Pronto Socorro municipal com queixa de palpitação taquicárdica rítmica, de início súbito havia uma hora, associado a cansaço limitante. Negava tonturas, pré-síncopes ou síncopes, mas referia que nos últimos três meses havia apresentado dois episódios semelhantes de palpitação, tendo recebido medicação IV em uma oca-sião e cardioversão elétrica em outra (sic). Desde então, fazia uso regular de amiodarona por via oral, na dose de 200 mg/dia, conforme prescrição do médico da unidade de emergência. Trouxe resultado de sorologia positiva para doença de Chagas realizado quatro anos antes. Negava uso de outros medicamentos ou outros sintomas, bem como outros antecedentes patológicos pessoais ou familiares. Ao exame físico, encontrava-se consciente, letárgica e pálida, com pressão arterial de 90/60 mmhg, frequência cardíaca em torno de 200 bpm, bulhas cardíacas rítmicas em 2T, perfusão periférica regular, pulsos finos e taquicárdicos, simétricos e sem edemas, pulmões limpos e abdome sem anormalidades. O eletrocardiograma de 12 derivações (ECG) de admissão evidenciou taquicardia ventricular monomórfica com frequência de 214 bpm, morfologia de bloqueio de ramo direito e vetor direcionado para baixo (V1 +, V6 -, DII/ DIII/ avf +) (FIGURA 1). Figura 1. Taquicardia ventricular sustentada com padrão de via desaída de ventrículo esquerdo. Na unidade de emergência, recebeu O2 por cateter nasal, foi estabelecido um acesso venoso e iniciado o monitoramento cardíaco. Após sedação, foi submetida a cardioversão elétrica (CVE), com choque monofásico de 200 J, que resultou em reversão da arritmia para o ritmo sinusal. Contudo, houve recorrência rápida do quadro, mesmo após novo choque com 300 J. Frente ao caráter incessante da taquicardia, recebeu 300 mg de amiodarona IV em bolus. Após a infusão de amiodarona IV, houve redução da frequência cardíaca para 120 bpm; contudo, embora se mantivesse o padrão de bloqueio de ramo direito, houve inversão do eixo para cima, comprovando origem diversa da taquicardia (DII/DIII/aVF-) (FIGURA 2). Figura 2. Taquicardia ventricular sustentada após dose de ataque de amiodarona, demonstrando inversão do sentido do eixo de despolarização. Endereço para correspondência: Hospital Renascentista. Rua Salvador dos Santos Nora, 25/207 - CEP: 37550-000. Pouso Alegre. MG. Artigo submetido em 02/2011 e publicado em 06/2011. 80 81

Não havendo reversão da arritmia para o ritmo sinusal, a paciente foi novamente submetida a CVE, sem interrupção do ritmo, mas com nova mudança do padrão da taquicardia, demonstrando nova alteração do eixo elétrico, com desvio de eixo para a direita, padrão de bloqueio de ramo esquerdo nas derivações do plano horizontal e eixo para baixo (FIGURA 3). Naquele momento, encontrava-se estável hemodinamicamenten (PA 125/70 mmhg, FC 120 bpm), com boa perfusão, consciência preservada, respiração espontânea, eupneica e sem ruídos adventícios. Iniciou- se então a infusão contínua de amiodarona IV, na dose de 1.200 mg/dia. Figura 5. Ritmo sinusal com condução AV espontânea, diminuição das forças septais e alterações difusas da repolarização ventricular (FC em torno de 56 bpm). Figura 3. Taquicardia ventricular sustentada após dose de ataque de amiodarona e nova CVE demonstrando nova alteração do eixo de despolarização. Após seis horas de infusão de amiodarona (cerca de 300 mg) sem reversão da arritmia, recebeu uma dose de ataque de procainamida IV (1,0 g), uma vez que voltara a apresentar sintomas. Houve reversão da taquicardia para bloqueio atrioventricular avançado (FIGURA 4), o que demandou o implante de marcapasso temporário. Na ocasião, todos os exames laborotoriais encontravam-se dentro dos limites da normalidade, inclusive eletrólitos, função renal e enzimas cardíacas. Após 24h com marcapasso transvenoso temporário, houve reversão ao ritmo sinusal com condução AV espontânea (FIGURA 5). Figura 4. Bloqueio atrioventricular avançado após diversas tentativas de reversão de taquicardia ventricular sustentada com amiodarona, procainamida e CVE repetidas. Tendo sido estabilizada, a paciente foi submetida a estudo de ecocardiografia transtorácica que identificou cavidade atrial esquerda de 42 mm de diâmetro, ventrículo esquerdo de 60x41 mm, septo 10 mm, parede posterior 9 mm, VD 17 mm e FEVE de 55% (método Simpson). A análise da contração do VE demonstrou hipocinesia apical com disfunção diastólica grau II e regurgitação mitral discreta. Frente à complexidade da arritmia, associada à anatomia cardíaca com discreta dilatação do VE, sem perda funcional significativa, realizou-se o estudo eletrofisiológico invasivo (EEF) para estratificação de risco e tentativa de ablação dos circuitos arritmogênicos. A função sinusal encontrava-se normal, com intervalo AH 110 ms e HV 52 ms. A estimulação atrial programada não resultou em arritmias sustentadas ou distúrbios da condução AV. A estimulação ventricular programada resultou em indução de três taquicardias monomórficas, sendo uma TVS monomórfica igual à TV inicial, que foi ablacionada com sucesso. Outras duas taquicardias foram induzidas e não ablacionadas, sendo que uma foi mal tolerada e revertida com CVE. Após o resultado do EEF, indicou-se o implante de CDI para prevenção secundária de morte súbita cardíaca. Horas antes do procedimento, ainda na unidade de terapia intensiva, a paciente apresentou parada cardíaca em FV refratária ao tratamento, que resultou em óbito. Discussão O caso clínico relatado, de arritmia ventricular fatal em paciente com CCC e função ventricular esquerda preservada ou pouco alterada, representa um cenário relativamente comum na prática clínica, embora pouco explorado na literatura nacional e internacional. É evidente que se reconhece que a presença de disfunção cardíaca afeta sensivelmente o prognóstico, à semelhança de outras etiologias. Em uma revisão sistemática de 2007, Rassi Jr. et al. identificaram preditores de mortalidade para pacientes com CCC: presença de disfunção ventricular esquerda, sintomas de insuficiência cardíaca avançada (NYHA III/IV), presença de cardiomegalia e ocorrência de TV não sustentada 5. Em outra publicação, os mesmos autores desenvolveram um escore de risco para pacientes com CCC que não incluiu um valor de corte para a FEVE. Os parâmetros utilizados na composição do escore foram: presença de alteração da contração segmentar, sinal de disfunção ventricular, NYHA III/IV, cardiomegalia, TV não-sustentada, baixa voltagem do QRS e sexo masculino 6. A estratificação de risco de pacientes com CCC não deve ser sintetizada em um valor de corte arbitrário da FEVE. A complexa análise da função e anatomia cardíaca, por meio da identificação de aneurisma no VE, 82 83

a alteração da contração segmentar ou global, o aumento do diâmetro sistólico ou do diâmetro diastólico do VE devem ser valorizadas e os pacientes que apresentam tais anormalidades, especialmente se associadas a hiperatividade elétrica ao Holter de 24h (arritmia ventricular complexa), devem ser acompanhados amiúde e estratégias preventivas devem ser adotadas. Embora a doença coronária aterosclerótica não faça parte da fisiopatologia da CCC, classicamente a doença cursa com distúrbios de perfusão e isquemia em decorrência do processo inflamatório miocárdico subjacente (miocardite). Esse fato, associado à denervação autonômica, costuma resultar em distúrbios expressivos da contração segmentar, inclusive com formação de dilatações aneurismáticas, mesmo antes de redução importante da FEVE 7. O aumento do estresse sistólico e a consequente redução significativa da contratilidade tendem a surgir em estágios ainda mais avançados na história natural da doença. Esses conceitos fisiopatológicos podem ser suficientes para o entendimento das limitações da FEVE como preditor da ocorrência de arritmias ventriculares fatais em pacientes com CCC. A abordagem emergencial de arritmias ventriculares instáveis deve seguir protocolos bem definidos, independente da etiologia da cardiopatia de base. Algoritmos como o Advanced Cardiac Life Support (ACLS) 8 devem nortear as decisões relacionadas à administração de fármacos e choques diretos. É importante ressaltar que, na presença de disfunção ventricular esquerda, mesmo com FEVE preservada ou pouco alterada, a prescrição de vasodilatadores (inibidores da enzima conversora da angiotensina e bloqueadores dos receptores da angiotensina) e β-bloqueadores é mais importante que o uso de antiarrítmicos na prevenção de morte súbita. A ablação por cateter (radiofrequência) tem sido indicada em pacientes com CCC, função ventricular esquerda preservada e TVS monomórfica recorrente e indutível, hemodinamicamente estável e bem tolerada. Também é indicada para pacientes já submetidos a implante de CDI e que evoluem com taquicardias recorrentes, resultando em múltiplos disparos de choques, habitualmente com o paciente consciente, o que resulta em grande impacto negativo em sua qualidade de vida 9. A ocorrência de efeitos colaterais de fármacos antiarrítmicos é previsível. Tanto distúrbios do sistema éxcito-condutor (bradicardia sinusal e bloqueios atrioventriculares) quanto a pró-arritmia (arritmia ventricular polimórfica) podem ocorrer à medida que se alcançam níveis tóxicos ou de associações. No caso relatado, o sinergismo de ação obtido com a associação de amiodarona e procainamida, a despeito de ter interrompido a TV, resultou em bradiarritmia com importante repercussão, condição em que o uso de marcapasso transvenoso temporário é mandatório. O desfecho fatal e a multiplicidade de focos arrítmicos podem estar relacionados à presença de miocardite multifocal. Também pode haver multiplicidade de focos arrítmicos, que pode estar relacionada à presença de miocardite multifocal. No presente relato, embora a paciente estivesse estável, em ritmo sinusal e sem complicações clínicas aparentes no momento em que ocorreu pela última vez a arritmia ventricular, especula-se que focos inflamatórios eletricamente instáveis ainda encontravam-se presentes e que a degeneração de TV para FV de maneira rápida e irreversível tenha sido resultado de grande instabilidade hemodinâmica, colapso circulatório e isquemia em uma região previamente alvo de lesão celular. Conclusão A cardiopatia chagásica crônica é uma doença cujo comportamento não pode ser plenamente comparado à cardiopatia isquêmica ou idiopática. Com base nos conhecimentos atuais, a prevenção de morte súbita cardíaca nessa população deve ser realizada por meio de avaliação detalhada dos sinais e sintomas clínicos, do remodelamento ventricular e das manifestações elétricas. Na falta de um preditor isolado, a apresentação clínica global deve ser sempre o ponto de partida para a definição da melhor estratégia terapêutica. O desenvolvimento de evidências científicas quanto à prevenção da morte súbita em pacientes chagásicos é extremamente desejável e deve ser encorajado em todos os centros que lidam com essa população. ABSTRACT: The importance of ventricular tachycardia in the mechanism of sudden cardiac death is well recognized, and the presence of left ventricular dysfunction (LVEF < 35-40%) identifies patients at risk, irrespective of underlying heart disease. However, the association between LVEF and chronic Chagas disease still needs to be better understood once the arrhythmogenicity of this disease can occur even in patients with preserved left ventricular function or only slightly altered. We present a case of a young patient with Chagas heart disease, preserved LVEF and no symptoms of heart failure (NYHA), and who evolved with sustained ventricular tachycardias with different morphologies, refractory to drug therapy with amiodarone and procainamide and radiofrequency ablation. During evolution the patient presented advanced atrioventricular block due to transient side effect of antiarrhythmic therapy. DESCRIPTORS: Sudden Death, Ventricular Tachycardia, Chagas Disease. RESUMEN: La importancia de la taquicardia ventricular en el mecanismo de muerte súbita cardiaca es bastante reconocida, siendo que la presencia de disfunción ventricular izquierda (FEVI < 35-40%) identifica a los pacientes de riesgo, independientemente de la cardiopatía de base. Sin embargo, la asociación entre FEVI y cardiopatía chagásica crónica todavía necesita ser más bien comprendida toda vez que la arritmogenicidad de dicha enfermedad también puede ocurrir en pacientes con función ventricular izquierda preservada o poco alterada. En este marco, presentamos un caso de una paciente joven con cardiopatía chagásica y que, a despecho de presentar FEVI preservada y no tener síntomas de insuficiencia cardiaca (NYHA), evolucionó con taquicardias ventriculares sostenidas de distintas morfologías, refractarias a la terapéutica farmacológica con amiodarona y procainamida y a la ablación por radiofrecuencia. Durante la evolución, la paciente presentó bloqueo auriculoventricular avanzado transitorio como efecto colateral de la terapia antiarrítmica. DESCRIPTORES: Muerte Súbita, Taquicardia Ventricular, Enfermedad de Chagas. Referências Bibliográficas 1. Fishman GI, Chugh SS, Dimarco JP, et al. Sudden cardiac death prediction and prevention: report from a National Heart, Lung, and Blood Institute and Heart Rhythm Society Workshop. Circulation 2010;122: 2335-48. 2. Martinelli Filho M, Lorga AM, Vasconcelos JTM, Rassi A Jr. Guidelines for Implantable Electronic Cardiac Devices of the Brazilian Society of Cardiology. Arq Bras Cardiol 2007;89:e210-38. 3. Santangeli P, Dello Russo A, Casella M, Pelargonio G, Di Biase L, Natale A. Left ventricular ejection fraction for the risk stratification of sudden cardiac death: friend or foe? Intern Med J 2011;41:55-60. 84 85

Referências Bibliográficas 4. Sternick EB, Martinelli Filho M, Sampaio R, et al. Sudden cardiac death in patients with chagas heart disease and preserved left ventricular function. J Cardiovasc Electrophysiol 2006;17:113-6. 5. Rassi A Jr, Rassi A, Rassi SG. Predictors of mortality in chronic Chagas disease: a systematic review of observational studies. Circulation 2007;115:1101-8. 8. Field JM, Hazinski MF, Sayre MR, et al. Part 1: executive summary: 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Circulation 2010;122:S640-56. 9. Scanavacca MI. Estudo eletrofisiológico na cardiopatia chagásica crônica. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1994;4:168-76. 6. Rassi A Jr, Rassi A, Little WC, et al. Development and validation of a risk score for predicting death in Chagas heart disease. N Engl J Med 2006;355: 799-808. 7. Patel AR, Lima C, Parro A, Arsenault M, Vannan MA, Pandian NG. Echocardiographic analysis of regional and global left ventricular shape in Chagas cardiomyopathy. Am J Cardiol 1998;82:197-202. 86