o humor é só-riso? Algumas considerações sobre os estudos em humor*

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Transcrição:

EPISTEMOLOGIA, PESQUISA E DIAGNóSTICO EM PSICOLOGIA o humor é só-riso? Algumas considerações sobre os estudos em humor* BERNAROO JABLONSKI BERNARD RANGÉ** Uma revisão das principais contribuições e um exame do papel de fatores tais como incongruências, surpresa, superioridade e alívio de tensão no processo humorístico são realizados. Ao final são feitas considerações sobre novos caminhos significativos para as pesquisas na área, inclusive o uso do humor no contexto psicoterápico. 1. O canguru debruça-se no balcão do bar e pede um bloody mary. O barman, surpreso e confuso, começa a preparar o drinque solicitado, mas não consegue evitar o comentário: "Sabe que é raríssimo um canguru vir aqui?", ao que respondeu o animal: "Com estes preços, não é de se admirar... " 2. "Ter talento político é saber prever o que vai acontecer amanhã, na próxima semana, no próximo mês, no próximo ano, e depois saber explicar por que nada do previsto aconteceu." 3. "Dissecar o humor é uma operação interessante na qual o paciente usualmente morre... " 4. "O rir e o brincar são comportamentos tão comuns nas sociedades humanas que indivíduos que se abstêm de fazê-los são julgados anormais." Das quatro frases acima, a última é uma constatação de Ber1yne (1968), sobre a extensão do fenômeno humor. A primeira pretende ser uma piada, e as duas seguintes o que se convencionou chamar de ditos espirituosos (a frase número 2 é comumente atribuída a Winston Churchill) e a de número 3 é de * Artigo apresentado à Redação em 16.6.83. *. Do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. (Endereço do autor: PUC-RJ - Departamento de Psicologia - Rua Marquês de São Vi: cente, 225-22.453 - Gávea - Rio de Janeiro, RJ.) Arq. bras. Psic. Rio de Janeiro 36(3): 133-140 jul./ set. 1984

Berger (1976). Vamos supor que o leitor tenha rido ou esboçado um sorriso diante das três primeiras (se você riu da quarta, puxa, que senso de humor, hem?). Muito bem, o que exatamente teria provocado o riso nessas frases? Ou, nesse sentido, o que há de comum entre elas? Estas e outras indagações similares fazem parte de uma constelação de dúvidas, para as quais, infelizmente, não se tem uma resposta satisfatória. Muitos esforços foram e continuam sendo feitos para alcançá-la. Examinemos, por exemplo, a seguinte descrição de Charles Darwin para o humor: "Uma coisa incongruente ou chocante, produtora de surpresa e de um sentimento mais ou menos marcado de superioridade - achando-se por outro lado o espírito em uma feliz disposição - parece ser na maioria dos casos a causa provocadora do riso (...). As circunstâncias que as produzam não devem ser de uma importante natureza" (Darwin, 1872). Esta frase, escrita em 1871, permanece hoje, mais de 100 anos depois, bastante atual. Nem tanto pela indiscutível genialidade de seu autor, indisfarçável especialmente na transcrição acima, quanto pelo pouco progresso obtido de lá para cá. E a finalidade do presente trabalho é a de fornecer um quadro dos muitos estudos que têm sido feitos sobre o humor, na esperança, inclusive, de que também entre nós surjam pesquisadores interessados em deslindar os estranhos mistérios que cercam os tópicos em questão. Uma primeira pergunta, perfeitamente cabível, é a de saber se se trata de um assunto suficientemente importante para merecer um tratamento "sério", científico, rigoroso, exaustivo etc. Quando começamos a nos interessar pelo assunto, achamos que bastante rapidamente estaríamos a par da literatura existente, uma vez que poucos autores teriam se pronunciado a respeito. Ingenuamente, acreditávamos que, afora os filósofos e pensadores mais conhecidos na área - Aristóteles, Hobbes, Bergson, Kant, Spencer e evidentemente S. Freud - não seria difícil compilar - e ler - as outras contribuições existentes. Mas, uma carta de A. Chapman, co-editor do respeitável Humour and laughter: theory, research and applications, que incluía uma lista de artigos diretamente ligados ao humor, e publicados até o ano de 1976, nos fez mudar de idéia: continha tal lista mais de mil referências!! Por pura vingança e para não ver nossa auto-estima jogada no chão, esperamos que vocês também tenham compartilhado do mesmo espanto que nós. E do que tratam todos estes trabalhos? Basicamente, pode-se dizer que todos eles procuram investigar o cerne da questão, qual seja, o de saber o que faz algo ficar engraçado. Melancolicamente, podemos confessar que isso ainda não se sabe. Ou dito de outra forma: "... Nothing is funny to everyone and anything seems potentially funny to somenone" (La Fave, 1976). Mas isso também não quer dizer que não haja boas pistas e que muito já não tenha sido feito a respeito. Os seguintes tópicos, por exemplo, sabe-se que têm, sem sombra de dúvida, um papel significativo na mediação do humor, e, têm sido! Uma consulta realizada pela biblioteca do ISOP na Psychological Abstracts, anos de 1979, 80, 81 e parte de 1982, adicionou mais cento e tantas contribuições à lista anterior. 134 A.B.P. 3/84

analisados constantemente desde sua "descoberta": incongruência (objetiva ou percebida) (KoestIer, 1964, Rothbart, 1976); contraste súbito (Hobbes, 1651); alívio de tensão (Freud, 1969); mudanças na ativação (arousal) (Berlyne, 1968); presença de elementos mecânicos/automáticos, onde deveria se esperar uma resposta flexível/"viva" (Bergson, 1900); superioridade (Hobbes, 1651); fortalecimento do ego (Kris, 1952); colocação do "outro" em situação inferior (Zillman, 1976); importância de um contexto específico (Rothbart, 1976); um certo distanciamento emocional (Darwin, 1872); o fato de o estímulo do qual se ri não poder ser de grande magnitude (Darwin, 1872); diferenças culturais e diferenças sexuais (Cantor, 1976; Fine, 1976). Ora, cada um destes tópicos de uma maneira ou de outra pode ser enquadrado em um dos quatro grupos de fatores que os resumem: (a) incongruência; (b) surpresa; (c) superioridade; (d) alívio de tensão. Os três primeiros são descritos na conceituação de Darwin; o último é mais um efeito do humor e foi destacado por Freud. A incongruência, por exemplo, é um dos itens mais pesquisados. A idéia básica é a de que há sempre um elemento de inconsistência, de inusitado, ou de algo que se revele distoante em um quadro ou situação inicialmente percebido como unitário. Com relação a isso, o problema não é que a assunção em si esteja incorreta. A questão é que ela está apenas parcialmente correta: é condição necessária, mas não suficiente. O inesperado, o incongruente provoca o riso, mas pode provocar o medo, ou melhor: provoca o riso talvez porque provoque o medo (ver adiante); pode servir como estímulo a se tentar resolver aquilo que, diante dos olhos de quem percebe, se afigure como um desafio intelectual, um problema a ser solucionado (problem-solving); ou pode ainda simplesmente elicitar curiosidade e tensão. Por outro lado, é possível haver humor sem o elemento incongruência? Ao que tudo indica, não. O bolo não é feito só com este ingrediente, mas também, sem este ingrediente, não será um bolo! A surpresa talvez possa ser até conceituada como uma subclasse de incongruência. Uma situação é surpreendente quando ela não é esperada dentro de uma certa lógica dos acontecimentos. E, portanto, um elemento incongruente em uma cadeia. A superioridade parece ser uma outra condição necessária mas também não suficiente. Se é um elemento tão imprescindível quanto parece ser, somente testes empíricos poderão responder, mas de imediato poderemos tecer algumas considerações a respeito. Como se sabe, um material incongruente produz reações de natureza cognitiva (por exemplo: curiosidade, comportamento de solucionar problemas) e emocionais (que podem ir de um pequeno mal-estar a grandes sentimentos de angústia, dependendo da natureza do objeto e do tamanho da incongruência). Ora, como veremos adiante, uma forma que temos para lidar com situações frente às quais nos sentimos fragilizados são atitudes mágicas, sejam defensivas (exemplo: mecanismos de defesa), sejam ofensivas como é o caso do humor. Por que ofensivas? Pois representam um esforço ativo de atacar um objeto, de ressaltar suas fraquezas (exagerar incongruências), para nos fazer sentir superiores. Somente quando isto é possível é que se dá o humor; senão experenciamos medo, angústia existencial, ansiedade, crises de pânico etc. Humor é só-riso? 135

B possivelmente por este motivo que o humor também envolve alívio de tensão. De acordo com os defensores da teoria psicanalítica, piadas/ chistes serviriam de válvulas de escape para a liberação de impulsos agressivos e/ou sexuais. (Cite-se, a bem da verdade, que para Freud, humor não seria apenas isso. Há de sua parte o reconhecimento da existência de um humor sem elementos patológicos e voltado para um contato com a realidade que implica um ego forte e "vitorioso".) De fato, o exame temático de uma grande quantidade de situações humorísticas apóia essa noção. Examinemos, por exemplo, a seguinte piada: "Uma atriz famosa, após a publicação de sua autobiografia, é abordada em uma festa por um colega ator, que lhe diz: 'Eu li seu novo livro e gostei muito. Quem o escreveu para você?' E a atriz, rapidamente, responde: 'Fico muito satisfeita em saber que você gostou. Mas antes que eu responda, diga-me uma coisa: quem o leu para você?' B indiscutível o aspecto agressivo envolvido na piada acima. Quantas piadas semelhantes, ligadas ou não, à inveja, rivalidade, ciúmes, querelas antigas etc., já não ouvimos antes? Em todas essas situações, o que se constata é o caráter de relativa incontrolabilidade, pois são situações com as quais, por não sabermos bem como lidar, atacamos com o riso. O critério estatístico premia também a sexualidade, por via principalmente, das piadas obscenas ou pornográficas. Sua prevalência espraia-se inclusive pela maioria das culturas conhecidas. Nesse caso - união sexo-humor -, não se pode negar também um papel redutor de ansiedade, pois aqui também está envolvido outro tipo de situação com a qual não sabemos bem como lidar pois possui certos aspectos de tabu. Portanto, contornamos o problema com o riso, pois assim ajuda. mos a desmitificá-io. Pode-se, por outro lado, questionar o modelo hidráulico que costuma embasar esse ponto de vista ("válvula de escape"). Além de ser alvo de severas críticas teóricas, as evidências a favor dessa posição são insuficientes - não há sequer provas fisiológicas de estimulação espontânea para a agressão oriunda exclusivamente do organismo. No entanto, a tese da liberação da tensão pode ser justificável se for modificada para redução de tensão provocada por situações incontroláveis. O maior problema a nosso ver entre todas as teorias do riso é o de que freqüentemente cada um dos seus defensores tende a eleger um tema como o dominante, passando a encarar os demais como insignificantes. A esse respeito, inclusive, Belyne observou (1968) que cada um dos teóricos "oferece fórmulas que conseguem capturar certo momento do humor com muita propriedade, mas falham completamente quando tentam ser mais abrangentes". Todas as posições parecem sofrer desse mal; vêem com clareza certos aspectos do humor e são "visivelmente cegas para outros tantos". Deixando de lado os problemas e tentando vislumbrar as soluções, o próprio Ber1yne sugere um sistema aditivo, procurando levar em conta o maior número de variáveis possível, e, obviamente, verificar o peso de cada uma delas em dado momento. Por outro lado, a maioria dos pesquisadores atuais (Rothbart, Nerhardt, La Fave, MacGhee, Zillman, Koestler, entre outros), espelhando um ponto de vista corrente em psicologia, adotam a postura de abandonar qualquer tipo 136 A.B.P. 3/84

de visão mais ampla e se concentrar preferencialmente em mini teorias que sirvam para explanar pequenos fenômenos da maneira a mais clara e inequívoca possível. Espera-se a partir disso a formação de um painel gigantesco, que posteriormente venha a ser colocado em ordem, e que essa ordem signifique a descoberta de leis e normas gerais. De nossa parte, pensamos que uma alternativa interessante seria retomar os conceitos emitidos por Darwin - que em parte a etologia tem desenvolvido - dentro de uma perspectiva funcionalista. Afinal para que serviria o senso de humor e o riso? Como o choro, o riso deve ter uma finalidade que transcenda o âmbito da simples comunicação. As duas máscaras do teatro nos mostram a universalidade dos fenômenos em questão e podem nos dar uma base adequada para futuras pesquisas. Em primeiro lugar, o riso parece ser uma forma que indivíduos ou grupos sociais encontram para lidar com temas "sérios", "grandiosos" e, em certo sentido, "insolúveis" que por sua natureza nos colocam em uma posição de relativa inferioridade ou impotência. A produção de um ato humorístico por um lado destaca as contradições e incongruências do "inimigo" e/ou da "ameaça" - dividir para vencer - e por outro, ao realizar este efeito, permite que o humorista inverta a relação que mantém com o objeto de seu escárnio de forma tal que sente-se transformar, momentânea e idealmente, em alguém superior ou mais poderoso. Ridicularizar é um poder: é a capacidade e a liberdade de tornar algo objeto de riso, portanto, algo muito frágil, do qual não se tem medo mas de quem se acha graça. Ao realizar essa operação, a ameaça se desvanece, o que automaticamente acarreta um alívio de tensão. O humor recria - magicamente - a percepção de controle, de domínio sobre os eventos e esse estado é sempre inversamente relacionado com a tensão. Compreende-se, portanto, o espaço que jornais, revistas e redes de televisão reservam para comentários ou programas humorísticos, freqüentemente nas páginas mais "sérias" ao lado de editoriais onde são tratados os "grandes problemas", ou nos momentos mais marcantes da programação. Vale lembrar ainda, nessa mesma linha, o papel desempenhado pelos bobos das cortes, que tinham que ter senso de humor suficiente para fazer rir nos momentos mais sérios e de maior tensão. Infelizmente para eles, às vezes não conseguiam, com tristes resultados. Analogamente, os mitos são também tentativas de lidar com aspectos da realidade que, dada sua grandiosidade, não permitem respostas claras, racionais. Esses aspectos são tão importantes, incontroláveis e incongruentes que exigem uma "solução" crítica não humorística: uma história que organize e dê sentido a material tão incompreensível quanto nossa origem e destino. Outros aspectos da realidade permitem uma solução humorística pois são incongruentes, mas não misteriosos e grandiloqüentes; são importantes mas nem tanto; e são fugazes, pois a incongruência percebida repentinamente, com surpresa, imediatamente sucumbe ao humor que a torna congruentemente ridícula. Num plano social ou grupal, o humor parece ter outras funções. As emoções precisam ser comunicadas. Assim como a expressão da raiva pode evitar agressões que implicam injúrias fatais, a expressão humorística parece servi~ ao propósito social de criar um certo senso de comunalidade, de aproximação entre pessoas, o que contribui para fortalecer o tecido social. Como mostrou T.A.R.A.M. Van Hoof (1972) (não é piada: o nome dele é assim mesmo!), o sorriso serve para criar uma atmosfera pacífica, socializante, de sobrepujar Humor 'é só-riso? 137

reservas e de formar laços; e o riso permite a manutenção de uma atmosfera livre, franca e relaxada. Arriscaríamos acrescentar que o riso também parece "aquecer" um grupo pelo aumento das interações reais ou possíveis, tal qual água em processo de ebulição, através da aproximação coletiva pela via do destino comum: o escárnio de algum objeto, pessoa ou situação que, por alguma razão, se preste como objeto de riso para todo o grupo. Ainda uma outra alternativa seria abordar a questão da definição de humor ou de senso de humor. Embora não haja nada que impeça isso, na verdade, não existe um consenso acerca da questão. Mesmo as "melhores" tentativas de definição estão hoje sob fogo cerrado, por confundirem simplisticamente riso com humor; isto é, por supor que ambos são sempre a mesma coisa. Mas não são. O riso indica o humor, assim como o choro denuncia a tristeza, é certo, mas nem por isso podem ser tomados como uma entidade única. Chorar de raiva e rir por nervosismo são exemplos óbvios de um processo nem sempre tão óbvio, mormente quando se sabe que riso ou sorriso se constituem na única variável dependente em muitas e muitas pesquisas. Com relação ao senso de humor, não se está em melhor posição. A colocação tradicional aponta a "habilidade de se divertir às próprias custas", ou ainda, "algo que o indivíduo possui se - e apenas se - ele realmente se diverte". Assim, se X considera uma grande variedade de estímulos engraçados, e Y, não, então X possui um maior senso de humor que Y. Temos de concordar que se trata de uma definição algo vaga e descritiva, ou, dito de forma mais clara, francamente circular. Uma vez definido em algumas de suas principais características e esclarecidas algumas de suas funções em prol de um ajustamento às condições de vida, seria o caso de começarmos a pensar no uso que poderíamos fazer desse conhecimento. Acreditamos firmemente, especialmente por experiência própria, nas possibilidades terapêuticas de seu uso em psicoterapia. Mindess, por exemplo, sugere algumas possibilidades terapêuticas para o riso: redutor de estresse, restaurador do equilíbrio mental, evento capaz de diminuir a magnitude da estimulação estressante aos olhos do paciente, e facilitador na reestruturação cognitiva de ambientes vistos como desfavoráveis. Acho que poderíamos acrescentar a essa lista um aumento de auto-estima e da acuracidade perceptual. Se é verdade que a neurose significa ver a realidade através de um só ponto de vista - impossibilitando a escolha de respostas alternativas -, nada melhor do que proporcionar ao paciente um novo modo de ver as coisas. Também não é menos verdadeiro, como aponta o próprio Mindess, o fato de que alguns autores consideram o humor em terapia mais como um obstáculo a ser vencido. Essa ótica fala de defesas contra a ansiedade, táticas de sedução, hostilidade mascarada e incapacidade de levar a doença a sério, entre outros malefícios, como sinônimos do humor. Não consideramos essa crítica muito preocupante, por parecer óbvia no caso a questão da "dose do remédio". Qualquer medicação em doses excessivas é prejudicial, e um terapeuta sensível deve saber discriminar a tolerância e sensibilidade do paciente para cada arma do arsenal terapêutico. E pode desse modo evitar "os perigos" supracitados. In medio, virtus, certo? ~ evidente que pacientes neuróticos podem vir a utilizar o humor a serviço de suas reações defensivas. Mas isto não invalida que se tente utilizá-lo no contexto psicoterápico, sabendo-se lidar adequadamente com aquele tipo 138 A.B.P. 3/84

de manipulação. Eliminar do nosso arsenal uma poderosa arma, que temos para enfrentar nossas dificuldades no dia-a-dia, parece uma solução mais típica de. avestruzes. Entretanto, muita pesquisa ainda resta ser feita de forma a c0- nhecer as vantagens, desvantagens, limitações, indicações e contra-indicações desse procedimento. E certamente algumas nos fornecerão dados para avaliar a eficácia do que denominaríamos a "reestruturação cognitiva salutar por intermédio do humor". O título é meio ridículo, mas pode estar dando um nome a uma propriedade do humor e indicando um caminho a ser seguido. Uma avaliação mais real da função de humor servirá seguramente para ajudar a responder a todas essas indagações, e, de quebra, ajudará na melhoria da nossa qualidade de vida. Gostaríamos de proceder, à guisa de encerramento, a outras sugestões, todas elas ricas, inteligentes, claras, perspicazes etc. Mas a simplicidade enganosa do tema tem escapado às tentativas de aprimoramento conceitual. Não fora um medo de sermos rotulados de paranóicos, diríamos que alguém lá em cima deve estar rindo de nossos esforços em tentar compreender algo tão simples e corriqueiro, e que ocorre - literalmente - bem embaixo de nossos narizes. E de tirar o bom humor de qualquer um (seja lá o que isso for... ). Abstract A review is made of the main contributions and an examination of the role that factors, such as incongruency, surprise, superiority and tension relieve, play in the humoristic processo Finally, considerations are made about new significant ways to carry out research into the area, including the use of in the psychotherapeutic contexto Referências bibliográficas Como indicamos no texto, a lista de referências é enorme. Daremos a seguir apenas a lista das principais obras citadas e colocamo-nos ao inteiro dispor dos interessados para fornecer a lista completa do que possuímos sobre o humor. Berger, A. A. Anatomy of the joke. Journal 01 Communication, 26(3), Summer 1976. Bergson. O riso, Rio de Janeiro, Zahar, 1980. Berlyne, D. E. Laughter, Humour and Play. In: Handbook 01 experimental social psychology. 2. ed. Reading, Mass., Addison-Wesley, 1968. Cantor, J. R. What is funny to whom? J. 01 Communication, 26(3), 1976. Chapman, A. J. & Foot, H. C. Humour and laughter: theory, research and applications. London, John Wiley and Sons, 1976. Darwin. C. La expresión de las emociones en' el hombre y en los animales. Valencia, Promete0, 1872. Fine, G. A. Obscene joking across cultures. J. 01 Communication, 26(3), 1976. Freud, S. Chistes e sua relação com o inconsciente. Trad. Standard Edition. Rio de Janeiro, Imago, 1969. Hobbes, T. Leviathan. London, 1651. Hooff, J.A.R.A.M. Van. A comparative approach to the phylogeny of laughter and smil!ing. In: Hinde, Robert A., ed. Non-verbal communication. Cambridge, Cambridge Universlty Press, 1972. Koestler, A. The act 01 creation. New York, Macmillan, 1964. Kris, E. Psychoanalytic explorations in art. New York, International University Press, 1952 Humor é só-riso? 139

La Fave, L. & Manuel, R. Does ethnic humour serve prejudice? Journal of Communication, 26(3), 1976. Maluf, U. Elementos de uma epistemologia irracional para a psicologia. Trabalho apresen tado ao I Simpósio Fluminense de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência. Rio de Janeiro, 1982. --. Comunicação pessoal. Rothbart, K. Incongruity, problem-solving and laughter. In: Chapman and Foot, 1976. Zillman, D. & Stockins, S. H. Putdown humor. J. of Communication, 26(3), 1976. Ou você compra nas livrarias da. Fundação Getulio Vargas (Rio - Praia de Botafogo, 188 e Av. Graça Aranha, 26 - lojas C e H; São Paulo - Av. Nove de Julho, 2029; Brasília - CLS 104, Bloco A, Loja 37).. ou pede pelo Reembolso Postal. (Fundação Getulio Vargas/Editora, Divisão de Vendas, Caixa Postal 9. 05~, CEP 20.000, Rio de Janeiro, RJ) 140 A.B.P. 3/84