A Teoria do Jogo e a Psicanálise Benita Losada A. Lopes * Resumo: Artigo sobre a teoria dos jogos enquanto metáfora da partida analítica a partir de uma lógica, de uma estratégia e de uma tática cujo desenrolar não se aprende nos livros, somente se sabe das aberturas e dos finais. Palavras-chave: Estratégia Xadrez Bridge Lugar do Morto Aposta de Pascal Contratransferência. Em Homo Ludens John Huisinga aborda o jogo em termos filosóficos, especulativo e histórico como uma atividade com função social inegável, anterior à civilização. Em Huisinga o jogo é como um fermento, a necessidade de competição é constitutiva do sujeito, é da ordem de um instinto, é mola da vida. Huisinga refere-se ao Potlatch, festa citada por Lacan em 9/2/72 em...ou Pire, uma festa promovida por tribos canadenses e americanas, um desafio entre dois grupos. O Potlatch é uma festa na qual o grupo que oferece a festa, doa todos os bens acumulados ao competidor, em ritual dramático e ativos desafios, que assumem a forma de uma verdadeira competição. O Potlatch é uma festa com função social indiscutível, algo da ordem de um dom, uma estrutura simbólica, no fundamento do que se denomina circulação de economia. Huisinga também coloca o concurso de enigma, uma enunciação sem enunciado, cuja solução é brusca não racional, e o nó onde o interrogado está preso se desfaz e o interrogador fica impotente 1. Com o Potlatch e o concurso de enigmas Huisinga testemunha o jogo como divertimento e competição, nas dimensões simbólica e real. O jogo visto com função significante no jogo há algo em jogo... 2, afirma Huisinga. O jogo como confirmação da natureza humana, em que brincar e jogar estão além da razão. Mas o jogo também cria ordem, no jogo se está sujeito a uma lei, destaca o referido autor. Lacan em Problemas Cruciais assinala que o jogo não é pura e simples competição, simples oposição entre participantes, no jogo há acordo, submissão à regra. Em outro autor, Roger Caillois, em Os Jogos e os Homens compara as colocações de Huisinga com uma tese oposta acerca da teoria do jogo: enquanto uma hipótese considera que os jogos são a degradação das atividades dos adultos, são exclusivas distrações anedóticas, a outra defende que o jogo está na origem de convenções fecundas, que permitem o desenvolvimento da cultura, ensinam lealdade, evitam a monotonia, levam à aprendizagem e a construção de uma ordem e estabelecimento da equidade. Mas jogo, como verdadeira teoria, como estratégia, surge com John Von Neumann, a quem Lacan se refere no seminário XIII. Neumann encontra, através da matemática, uma solução para os jogos de soma zero, como o jogo do par ou ímpar, onde se ganha ou se perde tudo. * Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana 16
John E. Nash, matemático norte-americano, aquele da Mente Brilhante prêmio Nobel de Economia, introduz, em 1951, a noção de equilíbrio no jogo. Equilíbrio que ocorre quando cada estratégia é a melhor resposta possível às estratégias dos demais jogadores 3. Com este instrumento teórico de Nash foi possível estudar jogos mais amplos que os de soma zero, como o dilema dos prisioneiros pelo qual a pena seria de dois anos se ficassem em silêncio, se permanecessem calados e de quatro anos se confessarem. Em 1965 Salten introduz um refinamento a noção de equilíbrio de Nash. Assim, a teoria dos jogos ou estratégia vai atingindo novos campos de investigação, aplicando-se a diversos campos do saber, com os a teoria dos jogos ou estratégia sendo vista como essencial a qualquer processo de interação. 2. Freud e o Jogo de Xadrez Em Início de Tratamento (1913) Freud faz uma analogia entre o jogo de xadrez e a estrutura analítica, afirma que o xadrez é um jogo que consiste em relações progressivas de estratégias. No xadrez uma peça nada é, em si só, fora de seu lugar, isolada, nada representa para os jogadores, assim como o significante não se significa a si mesmo. Freud em 1913 coloca Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo saberá que somente as aberturas e os finais, do jogo, admitem apresentação sistemática... a infinita variedade de jogadas dos jogadores... após a abertura, desafia qualquer descrição 4. E Freud então conclui: como também as regras, que podem ser estabelecidas, para o exercício do tratamento psicanalítico, acham-se sujeitas a limitações semelhantes 5. No início de uma análise, para se entrar no jogo, na estratégia psicanalítica é sempre necessário fazer-se a retificação subjetiva, fazer emergir o sintoma analítico. No início da partida, tem-se a alienação narcísica até chegar-se a certeza da falta de saber, de saber não sabido ao campo da paixão da ignorância. Mas o percurso da análise, como no jogo de xadrez, é imprevisível. Não se aprende nos livros, há o singular, o particular de cada análise, um real, um impossível. O final de uma análise se expressa pelo discurso do analista, onde o agente é o a causa de desejo. 3. O Jogo em Lacan Lacan, na trilha de Freud, em seu ensino, também recorre a teoria do jogo ou estratégia como metáfora de partida analítica. E, neste sentido, em Problemas Cruciais coloca a cena analítica com todas as características de um jogo, dentro de regras:...o analista tem que conduzir o jogo, saber quais são as propriedades exigíveis de sua posição, para conduzir a operação de forma correta 6, não se trata de feeling. A psicanálise é um método, tem uma lógica, tem regras, uma estratégia e uma tática, além de ter uma política operando, a falta a ser, o desejo do analista, que não se aprende nos livros. Esta questão sobre o jogo sempre esteve presente em Lacan, desde seu primeiro seminário, em 1953, quando afirma:... a teoria dos jogos é um modo de estudo fundamental da relação entre analisando e analista, pelo simples fato de que a teoria dos jogos (ou estratégia) é uma teoria matemática enquanto inter-relações... 7. Os seminários, o ensino de Lacan sempre nos remetem à clínica, a constituição do sujeito, à cena analítica e, com a abordagem dos jogos não é diferente. No seminário de 1964, afirma que brincar ou jogar é a possibilidade de salto ao simbólico e a partir daí fazer borda ao real. Portanto no jogo articulam-se simbólico e real. 17
Em seqüência cronológica temos, em Lacan, referências aos seguintes jogos: 1945/1966/1974: o jogo dos prisioneiros. 1954: o jogo do par ou ímpar. 1958/1960: o jogo de bridge. 1965: jeu de mourre. 1966/1969: a aposta de Pascal. 3.1. O Jogo dos Prisioneiros Com o jogo dos prisioneiros, Lacan introduz o tempo lógico, a articulação lacaniana do Nachträglich freudiano e, com discos brancos e pretos, enquanto matrizes simbólicas, faz valer: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Três tempos lógicos da constituição do sujeito. O que Lacan, em Problemas Cruciais, relaciona ao Estádio do Espelho, ao Modelo Ótico: a imagem real i(a) como sincronia, o instante de ver. O tempo de compreender, em diacronia, como o intervalo, como latência entre i(a) imagem real e i (a) imagem virtual, que é o momento de concluir, é o terceiro tempo que, na verdade, é uma certeza antecipada. Tem-se o sujeito em três tempos: um prisioneiro que consegue a liberdade inscrevendo-se no simbólico. 3.2. O Jogo do Par ou Ímpar O par ou ímpar aparece na Carta Roubada, no seminário de 1954/55. Trata-se de um jogo de soma zero, onde se ganha ou se perde tudo. Lacan assinala que não cabe tentar adivinhar ou colocar-se no lugar do outro, no par em questão, somente se pode saber sobre o que estiver na sua própria mão, se seu número é par ou ímpar. Freud, desde A Psicopatologia da Vida Cotidiana, deixa claro que jamais há acaso que se faça com intenção de que seja acaso, tem-se somente probabilidades. Não há acaso a partir do sujeito, o acaso pertence ao campo do Outro, o que significa dizer que o Outro é aquele que não dá garantias. 3.3. O Jogo de Bridge O bridge, como a partida analítica, é um jogo de pura combinatória, onde simbólico e real estão claramente articulados. Ou seja, há regularidades, um código mas também probabilidades de perder ou ganhar. No bridge, a partir de um leilão, ocorre que, em um dos pares, um dos jogadores sai. Esta separação revela que se, aparentemente, eram dois, em realidade há somente um jogador, do suposto par como também só há um sujeito dividido na análise. O jogador que sai denomina-se morto. E o morto deixa todas as suas cartas ao jogador que fica. Este, então, passa a ter 26 cartas e não mais apenas 13. O morto fica reduzido a ser um parceiro de pura combinatória, conjunto de cartas, como tesouro dos significantes, campo do Outro, lugar do analista. Tanto na Direção da Cura (1958) como no seminário VIII (1960) Lacan afirma que o analista joga como e com o morto. Como morto joga no campo da neutralidade, sem sentimentos, sem preconceitos, fora de qualquer intersubjetividade, apagando os traços diferenciais em que, as características pessoais, ficam suspensas. Estar como morto é estar no campo do des-ser, de dessubjetivação, no lugar vazio, onde se possa instaurar o desejo em função de causa. O que é diferente do analista jogar com o morto, 18
ou seja, despido das vestes narcísicas. O analista estar com ou como morto referem-se tanto a função como a sua posição. E para concluir acerca desta questão de como ou com o morto, na Direção do Tratamento, quando Lacan refere-se a contratransferência temos:... os sentimentos do analista não têm senão um lugar possível neste jogo, o do morto e que, em se os reanimando, o jogo prossegue sem que se saiba, quem o conduz 8. Na verdade o jogo analítico termina, não há mais jogo, não há mais análise. Há que se destacar, ainda, que se estar à direita ou à esquerda do morto, ou quando se joga antes ou depois do quarto jogador, que é o analista, tendo por base o esquema L faz diferença. O que joga depois dispõe de mais recursos. À direta do morto, joga-se antes, se está na dimensão do dito, o discurso é para o Outro. O discurso do Outro virá depois, somente então se terá a mensagem. À esquerda do morto joga-se depois, dispõe-se da combinatória significante revelada pelo morto, já se teve acesso ao dizer. Portanto o jogador ou analisando está em melhores condições para decidir, está mais próximo de sua verdade. Na introdução a edição de bolso dos Escritos Lacan retoma esta questão sobre o lugar à direita ou à esquerda a partir do dispositivo da Carta Roubada e do Jogo de Bridge, em que o poder do rei é o do morto, em relação a que Marc Darmon escreve o seguinte:... podemos dizer que o ministro joga com o morto como parceiro, ou seja, joga com o rei. A rainha joga em segundo lugar, depois do ministro, exatamente antes do morto (Rei). Por esta razão o ministro joga uma carta de valor inferior, ela (rainha) decide com mais segurança, sabe que não pode jogar a dama, porque o morto (Rei) tem o rei 9. E Darmon completa... ela (a rainha) deve então, deixar passar, ou seja, deixar que a carta se vá em silêncio, a fim de não despertar o morto 10. 3.4. O Jeu de mourre Lacan refere-se ao jeu de mourre em Problemas Cruciais, um jogo popular na Itália. No jeu de mourre há três termos: tesoura, pedra, papel. Um jogo que se desenvolve num campo de circularidade, onde pedra (R) rompe tesoura (S) e o papel (I) envolve pedra (R), tesoura corta papel (I). Três termos que correspondem do RSI lacaniano. No Jeu de mourre o primeiro jogador, com os braços para trás, fora do olhar do parceiro, faz, com as mãos, gestos que ora representam uma pedra (R), ora uma tesoura (S), ora papel (I). O segundo jogador terá que adivinhar o gesto feito pelo primeiro 19
jogador: pedra, tesoura e papel. E, um terceiro jogador, que observa a cena, atrás do primeiro jogador, daquele que faz os gestos, ratifica, mas não nos termos do chiste. Não se trata, com este terceiro jogador, do campo do Outro. O terceiro jogador, no jeu de mourre, é aquele que dará consistência, que sustentará o nó entre o primeiro e o segundo, que o antecederam. No jeu de mourre é indispensável a intervenção do terceiro jogador para fechar a circularidade, fechar a cadeia, fazer o nó. O jeu de mourre, como a cadeia borromeana, é uma estratégia na qual são mantidos três termos, que não fazem par, três consistências, uma cadeia, na qual com ausência de um dos elos, de um dos termos, não se faz a cadeia, não há o jogo. 3.5. A Aposta de Pascal Lacan em 1965 (sem. XIII) refere-se a Pascal dizendo que o jogo encobre o risco, a prova é que os primeiros passos da teoria dos jogos não a de Neumann mas de Pascal que, com a teoria da divisão equitativa, do que estiver em jogo, onde a partilha seja inevitável, uma partilha igualitária, justa, que se tem como essencial 11, que é a possibilidade de um cálculo de esperança. A aposta de Pascal nos seminários XII (1965) e XIII (1966) enfatiza a posição do sujeito desejante, onde o que importa é o apostador que, como sujeito do inconsciente, intervém como objeto implicado em uma causa. A aposta de Pascal significa despertar 12. A aposta de Pascal é um campo onde se instaura as reivindicações do a, da causa de desejo. Mas, ainda, no sem. XIII (1966) e no sem. XVI (1968) o destacado é a falta de garantia do Outro, no campo da aposta se está só. Está bem claro que na aposta prevalece a relação simbólico/real, e o real como impossível está, destaca-se o tempo todo. No seminário de 1968 a insistência de Lacan é de que a decisão é uma estrutura, que Pascal inaugura com a regra das partidas. Tratase de uma escolha forçada, porque só haveria escolha se houvesse simetria, igual conseqüência. Na pergunta há somente ilusão de que o sujeito escolhe, somente há aparência de que há duas opções. A noção da aposta implica um risco calculado na estrutura. Trata-se de fazer como entrar o real, o acaso sem intenção, numa estrutura significante, ou seja, verificar este real, como se faz no passe. Com a teoria do jogo ou estratégia e com a aposta de Pascal, o tempo todo se tem Lacan abordando a relação do simbólico com o real, tendo o imaginário como suporte, como sustentação, como consistência. Na aposta se tem uma balança na qual somente entram infinito (sujeito) e o finito (objeto a ). Ou seja, o infinito com função de incompletude, de permanente falta, marca do sujeito desejante e o finito é o resto, o objeto, o nada. Uma oscilação permanente entre esses dois abismos: infinito e nada. Sobre esta questão da existência Freud, Pascal e Heidegger estão de mãos dadas. Em Pascal a aposta operação do sujeito desejante sem qualquer garantia do campo do Outro é a vida. Nascimento aposta (vida) Morte Freud indagado sobre as metas do tratamento analítico responde ser amar e trabalhar. Heidegger, reitor de uma universidade, ao dar uma palestra sobre Aristóteles, que todos sabem ser grande conhecedor, inicia, dizendo Ele nasceu, trabalhou e morreu faz equivaler trabalho à vida. A este trio, acrescentamos um quarto: Lacan, em 20
algum lugar, afirma que ele não é alguém iluminado, nem inspirado, mas que trabalha, aponta ao trabalhador decidido, faz valer a causa, coloca o sujeito na dimensão de um investimento, no campo de uma aposta. NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. HUISINGA, John. Homo Ludens, jogo como elemento da cultura. São Paulo, Perspectiva, p. 124. 2. Idem, p. 4. 3. FIANE, Ronaldo. Teoria dos jogos. Rio de Janeiro, Ed. Campus, p. 61. 4. FREUD, S. Sobre o início do tratamento in Obras Completas, vol. XII. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 164. 5. Ibidem. 6. LACAN, J. Seminário XII, Problemas Cruciais para a psicanálise, lição de 19/05/1976, inédito. 7. LACAN, J. O seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p. 256. 8. LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder in: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p. 595. 9. DARMON, Marc. Ensaio sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994, p. 66. 10. Idem, p. 48. 11. LACAN, J. Seminário XII, op.cit. 12. LACAN, J. Seminário XIII, Objeto da Psicanálise, lição de 09/02/67, inédito. 21