Crédito Direcionado e Direcionamento do Crédito: Situação Atual e Perspectivas



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Transcrição:

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 Crédito Direcionado e Direcionamento do Crédito: Situação Atual e Perspectivas ERNANI TEIXEIRA TORRES FILHO* RESUMO Atualmente, um terço do crédito bancário brasileiro recebe do governo algum tipo de direcionamento alocativo. É o chamado de crédito direcionado. O saldo dessas operações ao final de 2005 era de R$ 202,1 bilhões, dos quais 61% eram de responsabilidade do BNDES. No Brasil como no restante do mundo, o Estado direciona o crédito bancário ou não-bancário segundo prioridades políticas, inclusive com a mobilização de poupança fiscal ou parafiscal. Mesmo assim, nos últimos dois anos, o crédito direcionado vem sendo definido por seus críticos como sendo negativo ou mesmo ilegítimo. Alguns ghegam a propor simplesmente sua extinção. Diante desse quadro, este trabalho tem o objetivo de apresentar os diferentes instrumentos de direcionamento de crédito no Brasil, incluindo o modus operandi de cada um, em comparação com experiências semelhantes realizadas em outros países. Serão abordados os mecanismos que empregam fundos fiscais e, em seguida, os que se baseiam em recursos do mercado. Ao final, se buscará identificar as perspectivas do direcionamento do crédito no Brasil. ABSTRACT In Brazil, as well as in the rest of the world, the State earmarks banking and non-banking credit according to political and economical priorities. Currently, the government earmarks around one-third of Brazilian bank loans. The total amount of those operations at the end of 2005 reached R$ 202.1 billion, out of which 61% were BNDES liabilities. Still, in the last two years, earmarked credit has been criticized as being negative for economic development. Some critics have even proposed its immediate extinction. This paper aims at analyzing the different mechanism of credit earmarking in Brazil, on a comparative basis to similar experiences in other countries. It also points out some perspectives for earmarked credit in Brazil. * Economista do BNDES e professor adjunto do Instituto de Economia da UFRJ. Agradeço a Ana Marta Horta Veloso, Francisco Marcelo Rocha Ferreira e Aluysio Asti, bem como dos pareceristas da Revista do BNDES, as críticas e sugestões à versão preliminar deste texto.

36 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS 1. Introdução Ocrédito ao setor privado no Brasil chegou, no fim de 2005, a quase 30% do produto interno bruto (PIB) [ver Banco Central (2006)]. Trata-se de um fato auspicioso. É o nível mais elevado em uma década. Representa também a continuidade de um processo de recuperação que vem ocorrendo desde a forte contração do segundo semestre de 2002, gerada pela instabilidade eleitoral daquele ano. 1 Desde então, o crescimento do crédito já atingiu sete pontos percentuais do PIB (ver Gráfico 1). A despeito desse resultado, o crédito no Brasil continua a ser relativamente escasso. Nos países mais avançados, a relação com o PIB é, em geral, superior a 100% e mesmo em alguns países sul-americanos, como o Chile, esse percentual é superior a 70% [ver Banco Mundial (2005)]. O pior é que, além de escasso, o crédito brasileiro é caro e volátil, como mostram algumas comparações com outros países [ver BID (2005)]. GRÁFICO 1 Composição do Crédito ao Setor Privado (Em % do PIB) 35 30 25 20 15 HABITAÇÃO SERVIÇOS P. FÍSICA 10 COMÉRCIO RURAL 5 INDÚSTRIA 0 jun/88 jun/89 jun/90 jun/91 jun/92 jun/93 jun/94 jun/95 jun/96 jun/97 jun/98 jun/99 jun/00 jun/01 jun/02 jun/03 jun/04 jun/05 Fonte: Banco Central do Brasil (2006). 1 Entre setembro de 2002 e fevereiro de 2003, o crédito ao setor privado se contraiu de 25,5% para um mínimo de 22,7% do PIB.

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 37 Mais de 90% do crédito ao setor privado brasileiro são intermediados pelos bancos. A participação das demais instituições financeiras empresas de leasing, financeiras, cooperativas etc. ainda é muito pequena e volátil. O nosso sistema de crédito é, portanto, muito dependente da ação do sistema bancário, a exemplo de muitos outros países, particularmente da América Latina [ver OECD (2005) e BID (2005)]. Aproximadamente dois terços do crédito bancário são aplicados de acordo com critérios próprios dessas instituições, observadas as normas de prudência fixadas pelo Banco Central (Bacen). O terço restante recebe do governo algum tipo de direcionamento alocativo inclusive de taxa de juros, sendo por isso chamado de crédito direcionado. O saldo do crédito direcionado no fim de 2005 era de R$ 202,1 bilhões, o que representava 33% do crédito total. Desse valor, o BNDES respondia por 61%, o financiamento rural, por 22,1%, e o financiamento habitacional, por 13,9%. Os 3% restantes referiam-se a outras classificações. Nos últimos meses, as críticas ao crédito direcionado acentuaram-se. Recentemente, por exemplo, o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo de Rato, em visita oficial ao país, chegou a recomendar explicitamente a eliminação desses mecanismos [ver Valor Econômico (2006a)]. Outros interlocutores são menos radicais: advogam um processo de eliminação gradual do crédito direcionado, que inclui, até mesmo, a transferência aos bancos privados da gestão dos atuais fundos fiscais e parafiscais de financiamento, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) [Torres (2005) e Arida (2005)]. Ora, tratar o crédito direcionado como algo necessariamente negativo ou mesmo ilegítimo é, no mínimo, alimentar ainda mais a confusão que já reina nesse debate. Em qualquer lugar do mundo, o Estado direciona o crédito bancário ou não-bancário segundo prioridades políticas, até mesmo com a mobilização de poupança fiscal ou parafiscal. Desse ponto de vista, o Brasil não é exceção. Alguns países, principalmente os mais ricos, preferem atrair os fundos dos bancos ou do mercado de capitais de forma voluntária, por meio de subsídios ou de mecanismos de garantia. Outros, como o Brasil, também fazem uso de recursos fiscais ou parafiscais para direcionar empréstimos. A experiência internacional é, assim, muito rica e diversa. O próprio Banco Central do Brasil, ao escolher os dados que deveriam compor a estatística dos créditos direcionados, teve parte da respon-

38 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS sabilidade pela confusão reinante. O Bacen reuniu, sob uma mesma denominação, operações inteiramente diferentes. De um lado, estão empréstimos bancários realizados com recursos de origem fiscal ou parafiscal (FAT ou FGTS, por exemplo). De outro, estão depósitos captados diretamente pelos bancos comerciais perante o público, sujeitos a direcionamento pelo governo. Somaram-se assim, em uma mesma rubrica, recursos privados com recursos públicos como se fossem da mesma natureza. O fato de serem ambos aplicados de acordo com a orientação do Estado não é condição suficiente para se desconsiderar a origem desses fundos. Diante desse cenário, este trabalho tem o objetivo de apresentar os diferentes instrumentos de direcionamento de crédito no Brasil, incluindo o modus operandi de cada um, em comparação com experiências semelhantes realizadas em outros países. Serão abordados os mecanismos que empregam fundos fiscais e, em seguida, os que se baseiam em recursos do mercado. Ao final, se buscará identificar as perspectivas do direcionamento do crédito no Brasil. 2. O Crédito Direcionado com Recursos Fiscais 2. ou Parafiscais O crédito direcionado com recursos públicos nada mais é do que o destaque de parte da arrecadação fiscal para ser utilizada no financiamento a investimentos de empresas ou famílias. Nesse caso, a poupança é do setor público, mobilizada por meio de mecanismo compulsório, os impostos e contribuições, e o dispêndio é feito na forma de empréstimos. Os beneficiários finais dos fundos tomam esses financiamentos com a condição de realizar investimentos em setores ou atividades considerados prioritários, na forma da legislação existente. Um exemplo desse mecanismo no Brasil é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Existe uma contribuição fiscal compulsória, o PIS, feita pelas empresas sobre suas vendas, que tem por objetivo financiar o seguro-desemprego. A arrecadação, destinada ao FAT, se for superior às despesas correntes do Fundo, é aplicada em projetos prioritários de investimento, por meio dos bancos, a taxas e prazos mais favorecidos. É, assim, um instrumento que promove o desenvolvimento e o emprego. Uma variante desse mesmo mecanismo são as poupanças oriundas de mecanismos parafiscais. A diferença principal, nesse caso, é que os recursos

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 39 arrecadados por meio de um mecanismo compulsório não são de propriedade do governo, mas de entes privados, normalmente trabalhadores. A aplicação desses fundos também é feita de acordo com prioridades definidas em lei, mas o risco desses projetos para os depositantes é integralmente assumido pelo governo. Por causa de sua natureza parafiscal mecanismo compulsório de arrecadação e garantia pública o Estado limita os rendimentos e o direito de saque dos correntistas. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) é um exemplo de fundo parafiscal. Nesse caso, a contribuição das empresas é depositada diretamente em contas específicas de seus empregados, que só podem realizar retiradas em situações específicas como aquisição de casa própria, falecimento etc. Enquanto não são sacados, esses recursos deveriam ser utilizados pelo Estado para financiar projetos imobiliários ou de desenvolvimento urbano por meio de financiamento bancário. Os riscos desses empréstimos para os trabalhadores ficam sempre por conta do governo. Se os mutuários finais inadimplirem por qualquer motivo, os trabalhadores não sofrem perdas. O financiamento de empresas com recursos fiscais ou parafiscais não é uma atividade simples. Realiza-se um trabalho prévio específico de análise de projeto e de risco de cada investimento. Caso o empreendimento atenda aos critérios de prioridade determinados pela legislação e desde que a capacidade de pagamento esteja demonstrada, é necessário formalizar por meio de um contrato a relação entre financiador e financiado. Posteriormente, a aplicação do dinheiro público na finalidade acordada tem que ser fiscalizada. Por estes motivos, o sistema bancário público dispõe de um bom mecanismo para repassar recursos fiscais ou parafiscais aos investidores. Financiar e acompanhar empresas e projetos são atividades que esses bancos desempenham rotineiramente. Assim, em lugar de se criar uma burocracia pública a mais para isso, é racional fazer uso dessas instituições como mecanismo de distribuição. Ademais, esses bancos têm agências em todo o país, o que garante maior cobertura espacial e capilaridade no atendimento às empresas. Os bancos repassadores tomam voluntariamente a poupança pública e assumem, perante o governo, o risco de pagamento do empreendimento financiado. Para tanto, recebem uma remuneração tanto pelo trabalho de administração quanto pelo risco. O uso do sistema bancário como mecanismo de distribuição dos fundos públicos resolve alguns problemas, mas cria outros. Emprestar dinheiro para bancos comerciais não é, em si, uma atividade simples de ser administrada,

40 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS muito menos no caso de aplicações de poupança fiscal. A atividade bancária é uma atividade regulada pelo Banco Central mas sujeita a risco. Nem todos os bancos são iguais. Vez por outra, algum deles quebra e gera prejuízos para seus depositantes. Além disso, é necessário fiscalizar se os bancos estão administrando corretamente as poupanças públicas, principalmente no que se refere ao cumprimento das finalidades previstas em lei. É necessário que haja um organismo público capaz de desempenhar esse papel. Para tanto, esse órgão precisa ter condições de analisar o risco de bancos, estabelecer limites de crédito para essas instituições e acompanhar suas atividades. O Tesouro Nacional, como autoridade fiscal, não é o ente estatal talhado para realizar essas tarefas. O Banco Central, por sua vez, como autoridade monetária e fiscalizadora do sistema bancário, tem outras funções mais importantes a desempenhar. No caso do FAT, essa administração é realizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2005, o ativo de crédito do BNDES era de R$ 148 bilhões. Desse montante, 38,6% eram referentes a saldos de operações realizadas por meio de outros bancos. Os valores desembolsados no mesmo ano atingiram R$ 47 bilhões, dos quais 53% representaram repasses a esses bancos, por meio de mais de 114 mil operações. Assim como o Brasil, outros países utilizam mecanismos de crédito direcionado com recursos fiscais ou parafiscais. No Japão, por exemplo, existe um fundo semelhante ao FAT, denominado Fiscal Investment Loan Program (FILP Programa Fiscal de Investimentos e Empréstimos), que é gerenciado pelo Ministério da Fazenda japonês. No fim de 2003, o FILP possuía ativos no valor de mais de US$ 1 trilhão, sendo uma de suas fontes as contribuições do governo para o fundo de pensão dos servidores públicos. Esse fundo japonês destina-se, entre outras finalidades, ao financiamento de grandes projetos e de pequenas e médias empresas, diretamente ou por meio de instituições públicas de crédito. 2 Outro exemplo interessante, no Sudeste Asiático, é o de Cingapura, país que tem um mecanismo parafiscal, o Central Provident Fund (CPF), muito parecido com o nosso FGTS. Esse fundo é composto por contas individuais 2 Segundo o relatório anual do FILP (2004), o Programa Fiscal de Investimentos e Empréstimos (FILP) atua, por meio de investimentos e empréstimos, na execução de projetos de grande porte e de prazos muito longos que seriam difíceis para (serem financiados) pelo setor privado (...). Em suma, o FILP é um instrumento de execução de políticas fiscais usando técnicas financeiras.

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 41 dos trabalhadores, alimentadas por contribuições compulsórias de empresas e de empregados. Os recursos do fundo são investidos pelo governo e só podem ser movimentados pelos trabalhadores em casos especiais, como a aquisição de casa própria. No fim de 2004, o ativo total do CPF de Cingapura era equivalente a US$ 70 bilhões. 3. Crédito Direcionado com Recursos do 3. Sistema Bancário O crédito direcionado com recursos captados junto ao sistema bancário ou ao mercado de capitais é um mecanismo amplamente difundido em todas as economias capitalistas. Em lugar de usar recursos fiscais ou parafiscais para disponibilizar crédito para investimentos considerados prioritários, os governos atraem poupanças privadas voluntárias, por meio de garantias públicas, como o seguro de crédito, ou, em menor medida, por meio de equalização da taxas de juros. 3 Para os governos, esses dois instrumentos de direcionamento de crédito são mais econômicos do que os financiamentos com recursos públicos. Em lugar de se alocarem grandes somas de origem fiscal ou parafiscal, limita-se o dispêndio público a uma despesa certa, porém muito menor, equivalente a uma parte dos juros; ou a um gasto eventual, mas previsível probabilisticamente, decorrente dos inadimplementos que venham a ocorrer dentro de uma ampla carteira de operações seguradas. Nesse último caso, a despesa é ainda minimizada pelos prêmios pagos ao governo para a aquisição do seguro. Isso significa que a capacidade de alavancagem e, portanto, de direcionamento de crédito desses instrumentos voluntários é muito maior do que a dos financiamentos com recursos públicos. A efetividade do seguro de crédito depende, no entanto, do diferencial entre as taxas de juros e os prazos praticados pelo mercado na dívida pública e os que seriam aplicados a um crédito privado específico. Quanto maior for, maior será o benefício gerado pelo seguro de crédito, ou seja, redução de custos e aumento de prazos. Com a garantia do governo, um crédito privado 3 Pela equalização da taxa de juros, o governo paga uma parte da taxa de juros que seria devida pelo tomador final do financiamento, quer para reduzir o ônus dos juros, quer para tornar fixa uma taxa de juros flexível.

42 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS adquire a mesma qualidade da dívida pública e passa a gozar das mesmas condições de financiamento do governo. 4 A viabilidade do seguro de crédito depende, assim, fundamentalmente de que os Tesouros Nacionais consigam financiar sua dívida a taxas baixas e a prazos longos. Ademais, é necessário que os prêmios pagos pelos beneficiários sejam baixos, normalmente inferiores aos cobrados por seguradoras privadas, e que o mecanismo seja operacionalmente ágil e rápido, principalmente no que se refere a pagamentos de sinistros. Um exemplo de direcionamento com recursos privados muito comum em todo o mundo são os seguros de crédito à exportação. Por meio desse mecanismo, um país como a Alemanha, por exemplo, consegue reduzir o custo final de um financiamento à exportação para um país de elevado risco, como Cuba, ao nível das mais baixas taxas de juros e dos maiores prazos de pagamento praticados no mercado internacional. O subsídio implícito no mecanismo advém da redução obtida na taxa de juros, graças à garantia obtida, menos o percentual pago a título de prêmio. Além do crédito à exportação, vários países também utilizam a garantia pública como meio para direcionar crédito para setores domésticos considerados politicamente importantes. É o caso do mercado imobiliário dos Estados Unidos, no qual existe um mecanismo importante responsável por quase metade do crédito imobiliário. Instituições como National Mortgage Association (Fannie Mae), Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac) e Federal Home Loan Banks (FHLBs), que gozam de garantias do governo federal americano, dominam o financiamento de residências nos EUA. Reúnem, em conjunto, hipotecas no valor de mais de US$ 4 trilhões, o que as situa entre as maiores instituições financeiras do mundo. 5 Um exemplo brasileiro de garantias públicas para o direcionamento do crédito privado é o Fundo de Garantia para a Promoção da Competitividade (FGPC), que tem por objetivo ressarcir os bancos comerciais agentes do 4 Nos países desenvolvidos, os mercados financeiros cobram da dívida privada garantida pelo Estado uma taxa de juros minimamente superior à aplicada para uma dívida pública de mesmo prazo. 5 De acordo com Holtz-Eaken (2003), a garantia implícita (da Fannie Mae e da Freddie Mac) é comunicada aos investidores em mercados importantes através de várias provisões legais que criam uma percepção da melhor qualidade do crédito para as empresas em conseqüência de sua afiliação com o governo. Aquelas provisões incluem uma linha de crédito do Tesouro dos Estados Unidos; a isenção das exigências do registro e abertura de informações a Securities and Exchange Commission; isenção de impostos de renda estadual e local; e a nomeação de alguns diretores pelo presidente dos Estados Unidos ; ver também Greenspan (2004).

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 43 BNDES no caso do inadimplemento de empresas de pequeno porte. Para tanto, cobra o pagamento de uma taxa específica. Embora o FGPC tenha sido inicialmente bem recebido pelo mercado, os constantes atrasos do Tesouro Nacional no pagamento das obrigações do Fundo causaram uma crescente desconfiança em relação ao instrumento e levaram, conseqüentemente, ao seu desuso. Assim como no seguro de crédito, o problema da efetividade também está presente na equalização de taxas de juros. Nesse caso, os governos pagam aos bancos uma parte dos juros que seriam devidos pelo credor final. Os pagamentos são feitos ao longo do tempo, acompanhando a mesma sistemática de amortização e o prazo total do financiamento. Em troca, esses bancos fornecem os recursos e assumem o risco das operações, inclusive do pagamento da equalização. Assim, a capacidade da equalização de mobilizar recursos privados depende, em grande parte, da taxa que o mercado atribui ao risco do país envolvido na operação. Essa taxa será utilizada para descontar o fluxo de equalizações futuras. Caso o risco seja elevado, o valor presente desse fluxo, principalmente dos pagamentos mais distantes no tempo, tende a ser irrelevante. No Brasil, os mecanismos de direcionamento voluntário do crédito privado tiveram, até agora, um sucesso muito limitado. O seguro de crédito à exportação, apesar de existir desde a década de 1960, sempre foi pouco demandado. A última tentativa de reforma do mecanismo ocorreu em 1997, com a adoção do modelo institucional francês: o Tesouro Nacional arrecada o prêmio e se responsabiliza pelo pagamento de eventuais sinistros, mas o gerenciamento técnico do processo fica a cargo de uma seguradora privada voltada exclusivamente para o crédito à exportação. A reedição do seguro de crédito à exportação não alcançou a aceitação esperada. Os bancos privados continuam a não se interessar pelo mecanismo. Até o momento, a quase totalidade das apólices emitidas por meio desse novo esquema teve o BNDES como beneficiário. Diferentemente do seguro, a equalização para créditos voltados para exportação foi um instrumento que chegou a operar com relativo sucesso entre as décadas de 1960 e 1980. Entretanto, no início dos anos 1990, os pagamentos de equalizações já concedidas foram suspensos por alguns meses, por problemas legais. Desde então, a confiança das instituições privadas nesse instrumento nunca mais foi retomada. Hoje, os principais beneficiários de

44 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS equalizações de taxas de juros para financiamentos à exportação são os bancos públicos, particularmente o BNDES. Uma vez que os mecanismos de direcionamento voluntário de crédito ainda não se mostraram eficazes, e como há ainda escassez de crédito para setores prioritários, o governo mantém em operação esquemas compulsórios de direcionamento de parcela dos recursos captados pelos bancos. Das cadernetas de poupança, 65% deveriam, em princípio, ser destinados ao financiamento imobiliário. O setor rural, por sua vez, continua sendo o beneficiário compulsório de 25% dos depósitos à vista. Assim, os bancos comerciais brasileiros, 6 além de depósitos compulsórios que são obrigados a manter no Banco Central por motivos de política monetária, são forçados a realizar aplicações, segundo um critério governamental de prioridades setoriais, de um percentual mínimo de seus depósitos, em condições de prazo e de taxas mais favorecidas. Os fundos, nesse caso, não são do governo, mas dos depositantes. O risco dos empréstimos, por sua vez, é dos bancos e não do governo. No entanto, os principais operadores do crédito direcionado para os setores rural e habitacional são o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF), respectivamente, instituições que operam com garantia implícita do governo federal. Seus depositantes não correm, portanto, o risco dos empréstimos feitos com os seus recursos. Trata-se de uma forma de garantia alternativa ao seguro de crédito. Em vez de os investidores privados deterem uma apólice para o caso de inadimplemento de um ou mais credores finais específicos, os correntistas destes bancos gozam de uma garantia ampla para todos os seus depósitos. Desse ponto de vista, a diferença entre a CEF e o BB e, por exemplo, o Fannie Mae ou o Freddie Mac norte-americanos está na forma e não na substância. Todas são instituições que repassam a garantia pública ao público para, em troca, direcionar fundos para investimentos prioritários. No Brasil, a garantia pública tem de chegar ao público por um banco estatal, caso contrário seu custo seria elevado demais. Nos Estados Unidos, esse tipo de intermediação é muito pouco oneroso. A despeito de não existirem dados publicados, é razoável supor que o BB e a CEF, pelo porte dessas instituições, respondam, em conjunto, pela maior parte dos 39% que excedem a participação do BNDES no crédito direcionado. De acordo com o Banco Central (2006), os saldos dos empréstimos 6 Incluiu-se a Caixa Econômica Federal entre os bancos comerciais.

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 45 dos bancos privados destinados à habitação e ao setor rural em dezembro de 2005 eram de R$ 5,3 bilhões e R$ 15,8 bilhões, respectivamente, perfazendo um total de R$ 21,1 bilhões. Se todo esse montante fizesse parte da estatística do crédito direcionado, a participação dos bancos privados nesse segmento seria de no máximo 10,5%. Assim, a estatística de crédito direcionado publicada pelo Banco Central nada mais é do que um eufemismo para o crédito do setor público ao setor privado. 4. As Propostas Atuais de Reforma do Crédito 4. Direcionado A discussão em torno do crédito direcionado ainda está sendo feita de forma relativamente simplista e confusa. A idéia de que os atuais mecanismos possam ser simplesmente eliminados no curto prazo baseia-se, de alguma forma, em um wishful thinking, ou seja, a fé em algo que se deseja que seja verdade. Na ausência desses instrumentos, acredita-se que o mercado imediatamente responderá, atendendo plena e satisfatoriamente a demanda que estava insatisfeita. Como a quase totalidade do crédito direcionado é hoje satisfeita por bancos públicos, há também, implícita ou explicitamente, a idéia de que essas instituições deixariam, de alguma forma, de cumprir esse papel ou seriam simplesmente eliminadas. Esse tipo de crença esteve presente desde o início do debate recente, quando, no fim de 2003, o Banco Central do Brasil levantou pela primeira vez a questão do impacto que o crédito direcionado teria sobre as taxas de juros de mercado. Do seu ponto de vista, o crédito direcionado seria, juntamente com a inadimplência e o risco legal, uma das três principais causas dos elevados spreads bancários [Banco Central do Brasil (2004)]. O argumento poderia, grosso modo, ser resumido da seguinte forma: como o crédito direcionado representa 33% do total e sua taxa de juros é baixa, os bancos têm que compensar essa perda relativa, onerando o crédito nãodirecionado. De acordo com cálculos do Banco Central, haveria um subsídio cruzado equivalente a 8,2 % do spread aplicado aos créditos não-direcionados [ver Iedi (2004)]. Há indicações de que esse mesmo argumento também teria embasado a proposta de extinção do crédito direcionado feita pelo diretor geral do FMI, Rodrigo de Rato, no início do presente ano [ver Valor Econômico (2006a)].

46 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS Essa tese vem sendo contestada por outras instituições, particularmente pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e pelo BNDES [Iedi (2004), BNDES (2005) e Belluzzo (2004)]. Caberia ressaltar aqui que a participação dos bancos privados no crédito direcionado é relativamente pequena. Ora, os recursos captados e administrados pelos bancos públicos não podem ser incluídos nesse cálculo. Estas instituições são, por sua própria natureza, mecanismos de direcionamento de crédito. Seu objetivo principal é reduzir o custo financeiro de projetos prioritários para o governo, quer fazendo uso de suas captações em mercado, quer utilizando fundos fiscais ou parafiscais. Ademais, o valor dos recursos privados direcionados é pequeno na carteira total de crédito dos bancos privados. Segundo o Banco Central, o total das operações de crédito dessas instituições era, no fim de 2005, de R$ 248,6 bilhões. A parcela direcionada, portanto, respondia no máximo por R$ 21,1 bilhões, ou 8,5% do total. Caso o governo e as autoridades monetárias tivessem real interesse em compensar os bancos privados por seu aporte ao crédito direcionado, haveria outros instrumentos, menos traumáticos, que poderiam atingir o mesmo objetivo. Um exemplo seria a redução dos depósitos compulsórios do sistema bancário junto ao Banco Central, que chegou a quase R$ 150 bilhões no fim de 2005. Não houve até o momento, da parte dos que advogam a extinção imediata do crédito direcionado, uma proposta que indicasse como essa reforma deveria ser operada e quais suas possíveis conseqüências. 7 O único autor que se preocupou mais extensivamente com essa questão foi Arida (2005), cujas propostas foram objeto de crítica em Torres (2005). O aspecto mais importante da proposta de Arida que caberia aqui ser mencionado é sua recomendação de que a extinção dos atuais mecanismos fosse feita de forma lenta. No caso do FAT, seria iniciada pela redução a zero da alíquota do PIS-Pasep e pela criação de uma outra TJLP para os novos contratos, que seguiria uma metodologia baseada no IGP-M. Todo o sistema bancário e não só os bancos públicos seria autorizado a acessar diretamente o FAT por meio de leilões. O funding do novo FAT seria formado pelos recursos que retornassem das antigas operações. Não há menção a como seriam financiadas as obrigações correntes do seguro-desemprego que hoje estão atribuídas ao FAT. Admitindo-se que essas atribuições fossem mantidas, o Fundo e o BNDES estariam, ao longo do tempo, 7 Para os autores e seus respectivos trabalhos sobre o tema, ver Torres (2005).

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 47 condenados a desaparecer. Ao fim do seu texto, Arida menciona uma preocupação com eventuais conseqüências negativas de suas propostas sobre os novos investimentos. 5. Financiamento do Desenvolvimento: uma 5. Nova Agenda para a Discussão do Crédito 5. Direcionado A avaliação dos mecanismos de direcionamento do crédito no Brasil e no mundo mostra que o debate em curso sobre o crédito direcionado está fora de foco. Acabar com os atuais mecanismos de crédito direcionado não resolve por si só o problema de como operar o direcionamento do crédito no país. Privatizar a gestão dos fundos fiscais e parafiscais de financiamento também não parece ser uma solução factível [ver Arida (2005) e Torres (2005)]. Em nenhum lugar do mundo esses recursos são gerenciados livremente pelo setor privado. A agenda de discussão deveria hoje estar centrada em outros temas. O ponto inicial deveria ser como alargar e aprofundar o crédito no Brasil, que hoje é escasso, caro, volátil e de curto prazo. O segundo ponto importante seria como operar a substituição dos atuais mecanismos de direcionamento de crédito, particularmente os compulsórios, por voluntários. Finalmente, deveria ser discutido qual o papel dos bancos públicos nesse processo. Apesar de o mercado doméstico ser muito limitado, a principal fonte de financiamento das empresas, depois dos recursos próprios, continua a ser o crédito bancário [ver OECD (2005)]. O saldo das operações com o setor privado em 2005, apesar de ter crescido muito desde 2002, era pouco superior a 30% do PIB, enquanto nos países mais avançados esse percentual é, na maioria dos casos, maior que a 100%. Os motivos que levaram, no passado recente, a esse estreitamento do mercado de crédito são, principalmente, de natureza macroeconômica. A exemplo do que ocorre com outros países latino-americanos, a evolução do crédito interno foi contida pelas sucessivas crises de balança de pagamentos, inclusive por paradas súbitas da entrada de capital externo [ver BID (2005)]. A reestruturação recente da dívida externa, particularmente a pública, e os saldos comerciais elevados garantem atualmente um amplo conforto no

48 CRÉDITO DIRECIONADO E DIRECIONAMENTO DO CRÉDITO: SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS flanco internacional. Nesse sentido, uma vez que se eliminem as restrições internas, o crédito poderá crescer a taxas ainda mais elevadas. A questão central será como levar um mercado, que está acostumado a liquidez e a remuneração real elevadas, a aceitar taxas de juros mais baixas e prazos mais longos. É preciso descobrir a melhor forma de operar essa transformação da dívida pública. Caso essa mudança venha a acontecer, o processo de convergência dos mercados direcionado e não-direcionado teria condições de ocorrer naturalmente. Nesse quadro, poderão ser retomados, em novas bases, os mecanismos de direcionamento voluntário das poupanças privadas como seguro de crédito e equalização de taxas. Em um cenário de crescimento mais elevado com taxas de juros menores e prazos mais largos, a capacidade de financiamento corrente de novos projetos, por parte dos fundos fiscais e parafiscais, tende a ser mais limitada. O sucesso da implantação desses novos mecanismos de direcionamento de crédito fará com que sejam necessariamente revistos os mecanismos existentes atualmente. Nesse caso, as aplicações compulsórias dos bancos comerciais poderiam ser, por exemplo, extintas. 6. Conclusão Imaginar um mercado de crédito sem qualquer forma de direcionamento não parece ser uma visão realista nem desejável. Em todo o mundo, o direcionamento do crédito é um instrumento utilizado pelos Estados Nacionais para atingirem seus objetivos de política econômica e social. Os mecanismos utilizados para tanto variam em cada país conforme a história, a amplitude e a profundidade dos sistemas nacionais de crédito. A experiência internacional mostra que não há contradição entre a existência de um mercado nacional de crédito plenamente desenvolvido e internacionalmente integrado e de mecanismos públicos nacionais de direcionamento de crédito, inclusive de fundos fiscais e parafiscais. O caso de alguns países asiáticos e europeus é ilustrativo de como esse processo tende naturalmente a uma acomodação. À medida que o mercado de crédito se ampliou e se aprofundou, os bancos e instituições financeiras públicas desses países passaram a desempenhar novas funções ou encontraram nichos específicos. Nesse sentido, o debate atual deveria se afastar do wishful thinking daqueles que propõem a extinção pura e simples do crédito direcionado ou mesmo de

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 13, N. 25, P. 35-50, JUN. 2006 49 recomendações, como as de Arida, que pretendem acelerar esse processo. Em um cenário em que as taxas de juros estão caindo e a integração externa aumentando, qualquer movimento brusco ou ortopédico pode, não só comprometer o crescimento econômico, mas operar uma substancial transferência de ganhos patrimoniais do setor público para o privado. Seria mais prudente que o ritmo do processo de reforma dos atuais mecanismos de direcionamento de crédito fosse gradual, acompanhando a evolução do restante do mercado. Referências Bibliográficas ARIDA, P. Mecanismos compulsórios e mercados de capitais: propostas de política econômica. Washington: Instituto de Estudos de Política Econômica, Casa das Garças, maio de 2005 (Texto para Discussão, 8). BANCO CENTRAL DO BRASIL. Políticas de crédito no Brasil, nov. 2004.. Política monetária e operações de crédito do sistema financeiro. Nota para a imprensa, jan. 2006. BID Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Washington: 2005. BANCO MUNDIAL. Financial Structure Data Base. Washington: 2005. BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. BNDES, crédito direcionado e o financiamento do investimento. Rio de Janeiro: nov. 2005 (Sinopse do Investimento, 2). BELLUZZO, L. G. Os pesadelos do senhor Meireles. Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2004. CRIPPEN, D. L. Federal subsidies for the housing GSEs. Testimony before House Subcommittee on Capital Markets, Insurance and Government Sponsored Enterprises, 23 de maio de 2001. MINISTÉRIO DAS FINANÇAS DO JAPÃO. Fiscal Investiment Loan Program Annual Report. Tóquio: 2004. HOLTZ-EAKIN, D. Testimony before the Committee on Banking, Housing, and Urban Affairs of the United States Senate, 23 de outubro de 2003. GREENSPAN, A. Government-Sponsored Enterprises. Testimony before Committee on Banking, Housing and Urban Affairs. U.S. Senate, February 24, 2004.

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